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Engoliu o sol de fim de tarde que queimou dentro do peito

Fonte: Correspondência incompleta, p. 225.

É difícil precisar em qual momento Ana Cristina se movimenta em direção ao trabalho de tradução como um suplemento, pois, como se verá mais adiante, muito cedo ela começou a minar seus poemas e mesmo sua escrita em prosa – ou as cartas pessoais – com outras línguas, como se à procura da palavra adequada ou da palavra certa (?).

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LACAN. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 166.

99LACAN. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 167. 100LACAN. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p.170.

59 Essa busca de um domínio dos signos levou Ana Cristina a trocar o mestrado de Sociologia da Literatura para o de Literacy Theory Translation, na Inglaterra:

Colchester é cidade do interior, não tem nada para fazer a não ser pubs e campus. [...] acho que vou me chatear fazendo Sociologia da Literatura (por que foi mesmo que eu inventei esse curso e não outra bobagem qualquer? [...] Já sei de uma casa chamada Fine Papers em Covent Garden e acho que vou transar um curso de impressão num Technical College aqui. Tudo, menos Sociologia da Literatura.101

Passado o primeiro momento de euforia da chegada, ela começa a criticar a cidade, sentindo-se sozinha na rua onde mora com casas & melancolia de outono . Confessa que precisa de alguém para conversar coisas íntimas e que dançou o astral da chegada. Talvez tenha que dar uma virada .102 Essa virada foi radical: decidiu trocar de curso.

Helô, querida do coração.

[...] Tomei horror total ao curso de Sociologia da Literatura – era simplesmente idiota, todo mundo adorando ser marxista, e principalmente saquei que não ia nunca conseguir ler Lukács [...]. Em nome de que, pode me dizer? Senti aversão, fiquei 2 dias entre o cinismo e o tédio [...] troquei o curso para teoria e prática da tradução literária . Um baratão (embora com menos ibope no Brasil, não te parece?) Traduzimos poemas e aí discutimos o que foi que aconteceu. Uma maneira muito incrível de discutir teoria. [...] fiquei estudiosa, estou lendo ensaios de Ezra Pound e coisas afins.103

Embora, no excerto, ela demonstre contentamento com o curso de tradução, no dia a dia ela não se mostrava muito feliz. Afirmava que os ingleses gostam muito de ficar no seu cantinho , que ela gostava de família e que o astral tem que ficar bom porque cadê aquele nosso círculo protetor? Fez amizade com um poeta local num pub – Anthony Barnett , assistiu a filmes, deu conferências sobre o Brasil, melhorou muito o inglês e pediu à amiga para olhar em alguma faculdade se não [queriam] implantar um curso de tradução literária, mas não pode ser um curso de línguas tipo português- inglês que nessa eu não entro .104

101CESAR. Correspondência incompleta, p. 32. 102

CESAR. Correspondência incompleta, p. 33.

103CESAR. Correspondência incompleta, p. 36. 104CESAR. Correspondência incompleta, p. 45.

60 Entre melancólica e eufórica, procurava amizades, conhecia alguém, namorava um, namorava outro por uma noite ou umas noites até que conheceu um inglês, Chris, com o qual ficou morando por alguns meses, com quem viajou, de quem conheceu a família e com quem fez lua de mel na Itália. Lia T.S. Elliot, Melanie Klein que devoro , diz em outra carta, ou então a psicanálise outra vez, mas quem escapa? , [que] não dá a menor conta da modernidade, coitada , e achava que a amiga psicanalista Maria Elena era uma daquelas pessoas que têm o consolo eterno das ciências psicológicas .105

Afirmava estar se divertindo muito fazendo tradução: fico absorvida e feliz .106 A essas alturas, 28 de abril de 1980, já encaminhara meia tese sobre

Katherine Mansfield que, em carta a Heloísa de 27 de outubro do mesmo ano, conta que terminou de redigir com o título The Annotaded Bliss O conto Bliss anotado e então começa a datilografá-lo.

Nessa tradução, colocou 80 notas que ela mesma classificou na Introdução e enfatizou que, ao contrário das notas de rodapé dos trabalhos acadêmicos que, em geral, são sinais evidentes da fecundidade de suas pesquisas de back-ground , as suas notas de pé de página,

[...] essencialmente discretas, são promovidas à categoria da própria substância do texto. Trata-se, na realidade, de uma dissertação formada por notas de pé de página, expressão essa que deixa de ter propriedade, uma vez que as notas ultrapassam o espaço reduzido de um pé de página e passam, efetivamente, a ocupar o lugar mais privilegiado.107

Como se observa, Ana Cristina gostava de explicitar seu processo de escrita também no trabalho de tradução. E, como sempre, incluía o corpo como uma espécie de componente do processo ao dizer que as notas de rodapé integram os seus próprios movimentos da mão e da mente enquanto tradutora, incluindo digressões que não são eruditas , problemas de interpretação literária e algumas perplexidades sobre os próprios personagens, que não puderam ser adequadamente resolvidas.

105

CESAR. Correspondência incompleta, p. 48.

106CESAR. Correspondência incompleta, p. 58. 107CESAR. Crítica e tradução, p. 285.

61 A respeito do primeiro tipo de notas, que se relaciona com os problemas gerais de interpretação, do ponto de vista psicológico – diz ela – podem revelar a gênese do seu interesse pelo conto Bliss , bem como a insistência em determinados pontos que poderiam revelar – futuramente – um estudo sobre a personalidade literária de Katherine Mansfield. Como autora da tradução, a fusão de ficção e de autobiografia a seduz, afirma Ana.108 E, na qualidade de tradutora, alguém que procura absorver e reproduzir em outra língua a presença literária de um autor , confessa que não conseguiu deixar de estabelecer uma relação pessoal entre Bliss e a figura de Mansfield. Os dois processos – problemas técnicos encontrados no trabalho da tradução e uma leitura pessoal – se fundiam constantemente no decorrer da tradução .109

E prossegue explicitando o método escolhido para essa tradução, afirmando, inclusive, que a principal intervenção idiossincrática se centralizou no problema de

dicção e de tom. Em Bliss , a oposição entre o poético e o prosaico ultrapassa o

campo estilístico e tem algo a ver com o tema da história e seu mais profundo significado ,110 principalmente, ela diz, em determinados trechos-chave, que

expressam uma percepção e sensibilidade especiais por parte de Bertha Young, sob o encantamento de seu Bliss .

Sempre pensava no leitor brasileiro – na possibilidade de publicar a tradução no Brasil, a presença do leitor virtual ficava mais forte e eu me detinha em explicar detalhadamente uma metáfora obscura . Enfim, termina a Introdução da dissertação: Ao redigir essas oitenta notas, não pude evitar algumas exclamações subjetivas impróprias de um tradutor . Espero que o leitor atento e culto releve o fato .111 Segue

ainda explicando com detalhes, por mais algumas páginas, o movimento e os motivos ocultos por trás da tradução .

É perceptível que Ana Cristina demonstra certa obsessão mesmo pela persona do tradutor , a exemplo da seguinte citação:

Depois de Emily Dickinson, estou em fase de Katherine Mansfield, leio tudo, inclusive biografias ordinárias (que leio arrepiada, I must

108CESAR. Crítica e tradução, p. 287. 109

CESAR. Crítica e tradução, p. 287.

110CESAR. Crítica e tradução, p. 288. 111 CESAR. Crítica e tradução, p. 290.

62 confess que para dizer a verdade estou achando cartas e biografias mais arrepiantes que a literatura) e fico sonhando com essa personagem. Também escrevo um caderno, quero fazer um livro que é prosa, que é quase um diário, que conta grandes coisas se passando nos quartinhos [onde mora na Inglaterra durante o mestrado] [...] Muitos sentimentos passaram, acho que talvez o que mais incomode, porque é muito insinuante, seja uma certa vergonha de perder o controle sobre o desespero.112

É curioso observar que sua angústia, nas cartas e mesmo nos poemas, vem – quase sempre – atrelada a reflexões sobre a escrita, sobre literatura ou sobre tradução. Em carta para Ana Cândida Perez, aborda seu fascínio pelo conflito entre versões e pelo conflito ente as cartas de Mansfield para diferentes interlocutores:

[...] e pela tentativa de fazer da literatura um lugar menos obsceno que toda essa aparente confusão da verdade – higher up. Sei que alguns modernos já brincaram com isso, as várias versões por onde se filtra ou escapa a verdade, os mosaicos e focos narrativos da vida. [...] Uma coisa improvisada, talvez imprevista, que toma jeito nas cartas. Aquelas coisas metalinguísticas, delírios de Derrida que a escritura jaz lá desamparada, me revoltam, ou não interessam mais.113

Entre as reflexões e confissões, ela se perde em colecionar livros de puro prazer : Cavafis, Bearbley, Laforgue, Woolf, KlLimt, Paul Klee. Não quer voltar para o Brasil, está apaixonada por Chris e com ele se sente mais interessante e descontraída. Minha alta percentagem de moodiness e brooding over encontra possibilidade de virar outra coisa .114 Estes são seus últimos meses na Inglaterra. Sua

carta de de julho de é de angústia. Quer ficar, mas não quer: Não sei, não sei, não sei .

Retorna ao Brasil em janeiro de 1981 e, pelo teor das últimas cartas, com uma espécie de nó na garganta, ou, como a personagem Bertha Young, do conto Bliss , como se tivesse de repente engolido o sol do fim de tarde e ele queimasse dentro do peito .115

112CESAR. Correspondência incompleta, p. 281. 113

CESAR. Correspondência incompleta, p. 283.

114CESAR. Correspondência incompleta, p. 289. 115CESAR. Escritos da Inglaterra, p. 23.

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