• Nenhum resultado encontrado

Henriqueta Lisboa, em uma conferência proferida em Brasília, em abril de , já citada neste trabalho e intitulada Poesia: minha profissão de fé , afirmou que não podia parar de escrever, ela tinha que prosseguir a caminho do que foi concebido para tormento e júbilo .406

É preciso compreender que – assim como outros dessa mesma linhagem – Henriqueta parece escrever não para apaziguar-se, mas para atormentar-se. O tormento chega antes do júbilo, em sua construção frasal. Urge o gesto, esse canto de sereia que seduz o escritor para uma estranha navegação que o arrasta ao incessante, ao interminável do seu próprio tormento (e júbilo). O que a teria obrigado a vivenciar essa experiência tão extensa – e intensa?

Henriqueta, em sua reflexão, nos aponta uma questão que pode encontrar-se aí nesse jogo de palavras: a caminho do que foi concebido para tormento e júbilo. As duas características que, juntas resultam, simplificadamente – Júbilo pelo tormento?! – nas ideias que Freud desenvolve em Além do Princípio de Prazer .407 Nesse texto,

ele trata especificamente da Pulsão de morte, que tem a compulsão à repetição como uma de suas principais expressões, O Princípio de prazer é um dos dois princípios do funcionamento mental apresentados por Freud na sua série de textos metapsicológicos. O outro princípio seria o de Realidade . O primeiro ele caracteriza como a procura, pelo ser humano, de evitar o desprazer, evitar a dor e procurando o prazer. O prazer estaria relacionado à diminuição da quantidade de excitação no psiquismo e o desprazer relacionado ao aumento da excitação.

O conceito de Gozo, para Lacan, refere-se à necessidade de um excesso, de uma transgressão à lei do Princípio de Prazer; seria a necessidade de alguém ir além dos limites , ou, como Freud intitulou em seu texto de : Além do Princípio de prazer . Esse texto é considerado um divisor de águas na teoria psicanalítica porque,

405

LACAN. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, p. 157.

406LISBOA. Vivência poética, p. 11.

189 até então, Freud considerava o princípio de prazer como o princípio regulador do aparelho psíquico, o que conduziria o ser humano à busca do prazer, evitando o desprazer, a dor. A partir da publicação desse texto, pode-se reconhecer que há algo além do princípio de prazer que o criador da psicanálise denomina Pulsão de morte.

Assim, a compulsão à repetição e a pulsão de morte são as duas características que serviram de referencial teórico para Lacan construir o conceito de Gozo que, sendo da ordem do excesso, da transgressão, causa sofrimento. Pode-se definir, então, o Gozo como uma irresistível atração para o sofrimento – essa foi a manifestação clínica que levou Freud a construir o conceito de Pulsão de morte. O Princípio de prazer funcionaria, assim, como um limite ao Gozo e, portanto, o sujeito teria que gozar apenas o necessário para que não adviesse o desprazer.

Entretanto, observa-se que não há compatibilidade entre a cultura em que vivemos e a pulsão. Exemplificando mais simplesmente: atualmente, cada vez mais, a mídia empurra as pessoas para viver o aqui e agora. Uma espécie de Carpe diem sem limites. Aqui e agora e o mais intensamente possível o prazer ilimitado. Esse prazer ilimitado, entretanto, vai se relacionar diretamente com o sofrimento Aí, grosso modo, a transgressão ao Princípio de prazer torna-se um sofrimento, um mais além do princípio de prazer – que seria o fundamento do Gozo: prazer por um lado e desprazer por outro: Pulsão de vida versus Pulsão de morte.

Aonde o sujeito pode chegar se ele tem a compulsão à repetição dessa transgressão? Provavelmente, essa transgressão ao Princípio de prazer pode levá-lo à morte, considerando-se que o imperativo de gozo – a Pulsão de morte – é mais forte que a Pulsão de vida.

Para iluminar, à minha maneira, esses conceitos tão complexos, cito mais um exceto de poema de Henriqueta. Retifico: para iluminar, à maneira de Henriqueta, esses conceitos tão complexos, cito o seguinte poema:

Esta é a graça Esta é a graça dos pássaros: Cantam enquanto esperam.

E nem ao menos sabem o que esperam. Será porventura a morte, o amor? Talvez a noite com uma nova estrela, A pátina de ouro do tempo,

190 Alguma coisa de precário

Assim como para o soldado a paz? [...]

No ladrido dos cães à vista da lua, Acima do desejo e da fome, Pervaga um longo desespero Em busca de tangente inefável. [...]

E minha voz perdura neste concerto Com a vibração e o temor de um violino Pronto a estalar, em holocausto,

As próprias cordas – demasiado tensas.408

Dos últimos versos é possível pensar o estado de tensão – de espera mesmo – em que vive o eu lírico: entre a tormenta e o júbilo , entre a flor e o abismo para usar expressões dela mesma, pronta a estalar, em holocausto,/ as próprias cordas – demasiado tensas .

Não foi à toa que ela queria escrever o poema total . A escrita, embora já fosse (in)tensa, causava-lhe muita inquietação e ela precisava – assim como Ana Cristina Cesar – falar, falar, falar, falar, falar, falar... para abrir brecha. Se não, a gente angustia muito .409É também o que Henriqueta parece querer dizer no ensaio Poesia,

imagem da realidade : De fato, que impele o artista ao sacrifício da obra, senão a necessidade de projetar o seu próprio ser para além das contingências? .410 Essa

necessidade pode ser traduzida como uma atração mesmo pelo canto das sereias no qual ela submerge, não somente encantada pela escrita poética própria, como também pela criação poética na tradução que seria um suplemento, um canto dos pássaros, que cantam enquanto esperam:

A intuição do artista empresta nova significação ao que vê, de modo que a obra de arte independe do modelo. A causa que produziu aquela sensação primeira já não interessa, quando o espírito criador atingiu sua finalidade. Todas as faculdades da alma entraram em jogo; a memória cooperou com a fantasia, evocando outros motivos.411

408LISBOA. Flor da morte, p. 24. 409

CESAR. Crítica e tradução, p. 273.

410LISBOA. Convívio poético, p. 85. 411LISBOA. Convívio poético, p. 84.

191 Logo em seguida, ela conclui que, às faculdades da alma que entram em jogo no processo criativo, repete-se, com ele a aventura de Ulisses: de ouvido alerta à voz infinita, queda de membros deliberadamente algemados junto ao seu meio físico .412

Esse discurso é semelhante ao de Blanchot que, alguns anos depois dela, elabora reflexões por meio da metáfora do canto das sereias como um chamado à escrita. Ulisses, de ouvido alerta à voz infinita foi genial: deixou-se algemar para manter-se vivo, na realidade, no seu posto de honra . Porque o canto é infinitamente atraente, como a escrita. Ulisses foi até esse ponto de encontro e não quis jogar o jogo dos deuses. Permaneceu limitado a um pequeno quadrado de espaço na ponte, enquanto outros desceram até o fundo do navio e nunca souberam o que é a esperança de mar, o chamado, o abismo – a escrita para alguns como Ana Cristina Cesar, Henriqueta, Soror Juana, Marguerite Duras, Sylvia Plath, Emily Dickinson.

Escritoras como Ana Cristina Cesar, Sóror Juana Inés de la Cruz e Henriqueta Lisboa parecem ter se sentido atraídas a reescrever os invisíveis de textos alheios, recriar palavras, expressões, frases que vivem e respiram no plasma de outras escritas. Sentiram-se atraídas por textos, cujo movimento interno, sonoro, elas se dispuseram, sensíveis, a escutar.

Interessante também é a declaração de Henriqueta em carta a Helena Antipoff: Considero-a [a poesia] em estágio virtual, como força interior capaz de transfigurar seres e coisas, até mesmo capaz de salvar o mundo, hoje sob o domínio do materialismo e, paralelamente, da angústia . 413.

Dessa declaração de Henriqueta é possível fazer uma analogia com uma das ideias concebidas por Benjamin no texto de 1921 – A tarefa do tradutor – que serviu de prefácio à tradução dos poemas de Baudelaire sobre o trabalho de tradução como uma operação de salvação, resultado do movimento ao mesmo tempo violento e redentor do original ao transportá-lo para outra língua e cultura.

Extrapolando o sentido que Benjamim queria dar a essa ideia de salvação , parece que certa metáfora ronda Henriqueta quando sua amiga Gabriela Mistral, em carta manuscrita, refere-se ao empenho da poetisa mineira no trabalho de tradução de sua poesia para o português: Su traducción me honra y me salva dentro de su

412LISBOA. Convívio poético, p. 85.

192 lengua .414 Não haveria nessa metáfora um duplo sentido de dar visibilidade à obra de

Mistral no Brasil e também salvar a tradutora das suas angústias ao buscar dominar o signo linguístico não somente em português, porém em mais seis ou sete línguas?

Novamente busco na teoria algo que ajude a compreender esse tipo de escritora. Não se pode esquecer que a angústia (um afeto privilegiado pela psicanálise) é, sem dúvida inconfundível, posto que não engana. Freud em diversos trabalhos abordou o estatuto da angústia, de tal modo que podemos no conjunto dos seus textos reconhecer pelo menos duas teorias: ou a angústia provem de um excesso pulsional não eliminado, ou aponta ao eu a iminência de um perigo.

Nesse ponto, a iminência de um perigo, é que se pode – talvez – situar o que Henriqueta classifica como tormento e júbilo na escrita poética. Para reiterar, lembro que Mário de Andrade, em uma de suas cartas para Henriqueta, chamava a atenção para o momento poético em que viviam, na década de 40, momento marcado pela essencialidade da poesia:

Enfim, dona Henriqueta, gostei muito de sua poesia nova. Mas tome cuidado em não perder o equilíbrio e não intelectualizar demais os estados de sensibilidade, que entre o clássico e o frio, entre a perfeição e o impassível, a distância é mínima. [...]415

Essa advertência de Mário de Andrade aponta para A face lívida, assim como

Flor da morte, uma obra que, como já disse, apresenta um eu lírico a caminhar em um beirabismo perigoso. A poetisa se apossa de instante, momento, espaço ou qualquer

coisa que a mantenha na e para a escrita que, de um modo ou de outro a mantém entre o júbilo e a tormenta ou ainda entre a flor e o abismo . Entre a Pulsão de vida e a Pulsão de morte (ou Preensão persecutória).

414

Carta contida no Acerto de Henriqueta Lisboa no AEM da UFMG, sem informação de data e local.

193