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A procura do método de pesquisa sociológica de Norbert Elias

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A pesquisa estribada em Elias encontrará seu método através das leituras de seus tex- tos, em especial O processo civilizador. Elias nunca apresentou uma “receita” que deva ser seguida claramente ponto por ponto para se fazer pesquisa sociológica, mesmo porque, coe- rentemente com sua opção processual que reconhece a possibilidade de mudanças de rumo não imaginadas e não planejadas, jamais foi dogmático, mas sempre construiu sua obra em uma tessitura intelectual coerente.

Até hoje não tenho a sensação de ser totalmente compreendido. Há ainda tantos assuntos não retomados em minha obra. Ainda não tenho a sensação de ter concluído meu trabalho. Só o fato de o tipo de teoria que busquei desenvolver ser diferente do que tradicionalmente se tem o hábito de considerar uma teoria, apoiando-se sobre modelos das ciências físicas, sempre cria enormes mal-entendidos. (ELIAS, 2001, p. 82).

O tempo é fator determinante na pesquisa em Elias e no tempo as estruturas soci- ais devem ser percebidas no longo prazo de forma linear ou alinear em comparações que produzirão o conhecimento do rumo que essas estruturas seguiram, como surgiram, como se transformaram. A longa visada que Elias faz no processo de formação dos Estados nacionais europeus é relacionada com as transformações processuais nos hábitos das pessoas perten- centes a diversas classes sociais. Não há dissociação entre a vida cotidiana individual e a vida cotidiana coletiva, ou entre o ser e a sociedade em que ele vive. Toda a vida se relacio- na e interage continuamente. “Deve-se considerar ainda que os padrões de comportamento socialmente sancionados permeiam todas as estruturas e desempenham a importante tarefa de manter as características próprias de cada elemento.” (RIBEIRO, 2010, p. 152).

O auto-ditadismo de Karl Marx sobre história e diversos outros campos do saber é reconhecido por Elias que assinalada que outros sociólogos pioneiros também olharam para a história com um interesse sociológico e não apenas histórico. A perspectiva sociológica da história é diferente das questões colocadas pelos historiadores especialistas. No início da formação da sociologia e posterior profissionalização da matéria, muitos dos sociólogos pioneiros oriundos de outras áreas do saber também olharam para a história, tais como, se- gundo Elias, o próprio Marx; posteriormente, Sombart, os irmãos Max e Alfred Weber e Mannheim. Norbert Elias tem clareza ao se considerar um profissional da sociologia que, também oriundo de outra área do saber (filosofia e psicologia) chega tardiamente ao campo da sociologia. Na verdade quando o jovem Elias é recebido nos círculos de discussão socio- lógica alemã, como o da viúva de Max Weber, a profissão de sociólogo ainda era recente e em assentamento. O que Elias vai perceber e dissentir é o fato de que a sociologia havia construído teorias sociológicas jungidas a ideologias ou alinhadas aos partidos políticos representantes de interesses de classes sociais distintas. Os modelos teóricos estavam como que maculados pelas ideologias de fundo.

O fato de eu ter chegado tarde nesse cenário trouxe-me certos inconvenientes mas também certas vantagens. Foi mais fácil eu enxergar a que ponto os modelos de processos sociais de longa duração estavam saturados de ideologia. Faltavam estudos que permitissem compreender as mutações da sociedade num longo lapso de tempo com a ajuda de provas empíricas detalhadas, e isso de maneira que fosse possível substituir os modelos existentes, frequentemente muito especulativos por um outro tipo de modelos teóricos, isto é, modelos verificáveis empiricamente e, caso necessário, emendáveis e ou refutáveis. Mas isso só era claramente possível se o autor do estudo não estivesse ligado de maneira doutrinária a

axiomas preestabelecidos ou a essa ou aquela ideologia contrária presente no leque político de sua época (ELIAS, 2001, p. 147).

Pretendeu Elias livrar a sociologia de qualquer amarra ideológica com a criação de um corpo teórico para além daqueles já então cientificamente consagrados. Os resultados obtidos através de uma sociologia ideologizada também refletirão tal e qual ideologia.

A teoria do processo civilizador e da formação do Estado, a teoria simbólica do saber e das ciências e, num sentido mais amplo, a teoria do processo e figuração [Prozess- und Figurationstheorie], que me empenhei em elaborar, não são marxistas, liberais, socialistas ou conservadoras. As doutrinas partidárias ocultas, os ideais sociais mascarados pelo véu da ciência, parecem-me falsificações; acho-as, além disso, estéreis. Era – e ainda é – sem dúvida uma das razões que explicam as dificuldades colocadas por essas teorias e as obras que as contêm (ELIAS, 2001, p. 148).

O exercício sociológico não é praticado por alguém alheio às figurações compostas de indivíduos interdependentes que se relacionam com outras figurações em determinada estrutura processual. O sociólogo tem que ter consciência de que não é um indivíduo isolado observando uma figuração, mas que também é parte de uma figuração e transita por entre outras. É necessário um ato de autodistanciamento que se dá pela (1) necessária consciência de si enquanto indivíduo não isolado do conjunto da sociedade, além de (2) um proceder desengajado.

Encontram-se, nas teorias sociológicas anteriores, esboços que vão nesse sentido. Certas teorias de Marx e de Weber dão prova de um grande distanciamento. Mas nem uma nem outra, ainda, fazem do engajamento algo de problemático. Elas não fazem aflorar à consciência o procedimento do autodistanciamento como tal. Enquanto não se executa esse procedimento, vê-se a si mesmo sempre e involuntariamente como um indivíduo isolado face à sociedade; vê-se a si mesmo, portanto, face a todos os outros homens enquanto “indivíduo” se situando para além do indivíduo e fora dele. Enquanto não se recorrer ao procedimento do autodistanciamento, enquanto não se for capaz de dominá-lo pelo pensamento, será difícil, para resumir, fazer navegar o barco da sociologia, assim como o das ciências humanas em geral, entre as ideologias do individualismo e do coletivismo (aspas no original) (ELIAS, 2001, p. 149).

Logo na introdução da obra Sociología fundamental, Norbert Elias observa que se alguém quer entender do que trata a sociologia, deve desenvolver uma operação de interpe- lação mental de consciência de ser uma pessoa entre as outras (ELIAS, 1999, p. 13).3 Esse exercício pessoal objetiva possibilitar que não se vejam as coisas como “objetos” fora da própria pessoa. Assim, uma criança, uma família e uma escola, não são objetos estáticos sob os quais se deve olhar individualmente. São mais do que objetos estáticos desumanizados como “coisas” que não se relacionam. Uma família é família enquanto tem filhos que se relacionam entre si e entre os pais. Este por sua vez relacionam-se com outros membros da família, com os professores da escola, com os pais de alunos que frequentam a escola, com os funcionários da escola e em alguma instância com os poderes públicos da área escolar.

A tarefa de uma teoria dos processos sociais consiste no diagnóstico e na explicação das tendências de longo prazo e não-planejadas, mas ao mesmo tempo estruturadas e orientadas, no desenvolvimento de estruturas da sociedade e estruturas da personalidade, que constituem a infra-estrutura daquilo que em geral denominamos “história”. A recepção de uma tal abordagem teórica vem sendo dificultada pela autocompreensão da sociologia contemporânea como uma disciplina primordialmente orientada para o presente, que investiga as transformações e as relações de curto prazo no interior de sistemas sociais dados. Essa autocompreensão é uma consequência da divisão acadêmica entre história e sociologia, mas também da proximidade crescente da sociologia com a prática, ou seja, sua inclusão em projetos de planejamento burocraticamente controlados. Com isso, acaba-se por não compreender o processo de desenvolvimento não- planejado e de longo prazo, que produziu as condições para a prática de planejamento de nossos dias e ao qual todo desenvolvimento social planejado continua intrinsecamente ligado. Processos complementares, como os processos de divisão de funções, de integração e de civilização são partes desse desenvolvimento complexo e de longo prazo (ELIAS, 2006, p. 107).

O pesquisador deve olhar para a sociedade com a consciência de que a mesma não é estática e estanque e que, ele mesmo faz parte desse movimento constante na sociedade. ‘O modelo mental que as pessoas têm em vista quando pensam sobre a relação entre si mesmas e a “sociedade”, coincide frequentemente com a seguinte figura:’ (ELIAS, 1999, p. 14).

3 Esta obra foi publicada originalmente em alemão no ano de 1970 sob o título Was ist Soziologie? (O que é sociologia?).

Figura 1 – Reprodução fac-simile do “Esquema básico da imagem egocêntrica da so- ciedade (ELIAS, 1999, p. 15)

O esquema pictorial acima é formado por um “eu” fechado que está ao centro de cír- culos concêntricos. Esse ego fechado interpreta a sociedade externa a si mesmo como uma composição departamentada em níveis mais próximos e outros mais afastados. Não se vê como parte de relações familiares ou no outro extremo, parte das relações com o Estado no qual convive.

Pode compreender-se perfeitamente que para muitas pessoas, lhes repugne reconhecer que a sociedade que elas mesmas constituem junto com outras é um âmbito funcional dotado de autonomia relativa frente às intenções e aos objetos dos indivíduos que a integram [...] Para poder contemplar a natureza como um âmbito de funcionamento mecânico e sujeito às leis, os homens tiveram que desprender-se da figuração, muito mais tranquilizadora, de que por detrás de cada feito natural, atuava como força determinante, uma intenção cheia de sentido em si mesma. (ELIAS, 1999, p. 69).

Não há autonomia absoluta nas relações sociais, assim como não há autonomia nos eventos naturais. Estes são interrelacionais e aleatórios assim como as relações sociais. A constatação recorrente de que os raios caem aleatoriamente sobre a superfície da terra, não se sabe quando e nem onde, é o ponto de partida para a pesquisa que explica as espeficida-

des desse fenômeno da natureza. Também a partir da constatação de que as relações soci- ais ocorrem aleatoriamente e em conexão por entre as figurações, é que se pode delinear suas especificidades.

O paradoxo da situação está no fato de que só graças a possibilidade de constatar a ausência de finalidade e de sentido, o jogo de leis cegas e mecânicas nas conexões funcionais da realidade física, esteve o homem em condição de fazer frente a constante ameaça que para ele supunha os feitos naturais e dar-lhes um sentido e uma finalidade por si mesmos. Nos esforços por fazer prevalecer o ponto de vista segundo o qual também os processos sociais possuem uma autonomia relativa frente às intenções e finalidades humanas, nos encontramos com idênticas dificuldades e idêntico paradoxo. Para muitos homens lhes repugna essa ideia. É terrível pensar que as pessoas configuram entre si, contextos funcionais que se movem em grande parte às cegas, inermes, sem objetivo. Sem dúvida, seria mais tranquilizante poder imaginar que a história – que é sempre a história de determinadas sociedades humanas – possui um sentido e uma determinação, talvez inclusa uma finalidade. (ELIAS, 1999, p. 70).

Elias propõe um novo esquema conceitual para se olhar a sociedade, isto é, deve-se mudar o entendimento de se visar objetos estáticos externos e isolados (Ex: “eu”, família, escola, indústria, Estado) por um modelo que enxerga figurações que permitam indetermi- nados e ilimitados números de arranjos e rearranjos.’A compreensão das tarefas da sociolo- gia, do que usualmente se designa como seu “objeto”, fica facilitada ao se reorientar de a- cordo com a seguinte figura’ (ELIAS, 1999, p. 15).

Figura 2 – Reprodução fac-simile da “Figuração de indivíduos interdependentes” (ELIAS, 1999, p. 15)

A imagem acima representa uma impressão da sociedade como compostas de vários “eus” em convívio simultâneo e sem barreiras aparentes, entremeadas por entre as figura- ções e ligadas umas às outras pelos modos mais diversos e possíveis de serem arranjados. O pesquisador nada mais é do que apenas um entre aqueles que compõem a figuração, mas com seus valores abertos acoplados na instabilidade dessa mesma figuração.

O uso cotidiano dos pronomes pessoais possessivos por parte dos pesquisadores so- ciais, segundo Elias, reflete a realidade de que estes fazem parte de figurações que se com- põem com e por entre outras figurações. Pari passu com a portabilidade dessa consciência, é mandatório que o exercício da pesquisa sociológica fique isento de apropriação pessoal por parte do pesquisador. A consciência de si por entre as figurações e a não apropriação dessa ou daquela figuração, é o obrigatório exercício de compromisso e distanciamento pró- prio de um empreendimento científico que se diga com esteio na sociologia.

Para compreender do que trata a sociologia é preciso – como já dissemos – entender-se a si mesmo como uma pessoa entre outras. Em princípio isso soa como uma trivialidade. Povos e cidades, universidades e fábricas, estamentos e classes, famílias e grupos profissionais, sociedades feudais e

sociedades industriais, estados comunistas e estados capitalistas, todos são redes de indivíduos. A si mesmo se deve contar também entre esses indivíduos. Quando se diz “meu povo, minha universidade, minha classe,

meu país”, está-se expressando isto. Mas da mesma maneira que hoje se

ascende do plano do cotidiano em que tais expressões são completamente usuais e compreensíveis, no plano da reflexão científica, a possibilidade de se falar de todas as figurações sociais em termo de “minha”, “tua”, “sua”, ou ainda “nossas”, “vossas”, “deles”, fica fora de consideração (itálicos e aspas no original) (ELIAS, 1999, p. 16).

Ao mesmo tempo em que o pesquisador precisa assumir o conhecimento de si mes- mo e de sua pessoa como parte da sociedade em configuração, portanto com pensamento e valores próprios, não pode exercer seu trabalho de forma científica se tiver intenções apro- priativas. Apesar de carregar seus valores pessoais, o pesquisador também não pode ter me- do de encarar a verdade encontrada, ainda que esta ou estas verdades choquem ou firam tais valores pessoais.

As investigações independentes nas ciências da humanidade, mais do que nas ciên- cias exatas ou biológicas, são mais suscetíveis de interferências externas e internas. Exter- nas tais como pressões por validação de postulados ou teorias prestigiadas em um espaço acadêmico. Internas tais como conflitos gerados no íntimo do pesquisador pelo confronto em que este pode ser levado a ter consigo mesmo, ao ser desafiado pelo confronto com seus próprios valores e ainda assim, manter uma postura acadêmica responsável e não direciona- da pelas suas próprias crenças. Nessa linha, Elias abordou a relação entre os pesquisadores sociais e os cientistas das outras áreas do conhecimento.

Em outras palavras, os problemas que os cientistas planejam e intentam resolver mediante suas teorias, possuem um grau relativamente elevado de autonomia frente às questões cotidianas pessoais ou sociais. O mesmo cabe afirmar sobre os valores que intervêm em seus projetos de investigação. Seu trabalho não está absolutamente “isento de valores”, mas, diferente do que acontece com o trabalho de muitos estudiosos das Ciências Sociais, existem padrões profissionais estabelecidos e outras garantias institucionais que o protege em boa medida da intromissão dos valores heterônomos (aspas no original) (ELIAS, 1990, p. 15).

Ainda discorrendo sobre a temática do compromisso do pesquisador e a problemáti- ca do distanciamento, Elias afirma que o cientista não pode renunciar as funções de membro de um grupo em favor das investigações em que se vê envolvido. Os cientistas sociais en- quanto membros das figurações, e nos seus exercícios de observadores, são afetados pelas relações políticas e sociais de sua época. “Além do mais, sua participação pessoal, seu com-

promisso, constituem uma das condições prévias para compreender o problema que hão de resolver como cientistas.” (ELIAS, 1990, p. 28).

Segundo Elias, as investigações executadas pelas ciências da natureza no que diz respeito à relação entre sujeito e objeto da pesquisa enfrentam uma possibilidade de relações interpessoais mais baixa. Já no trabalho científico das Ciências Sociais, a relação entre su- jeito e objeto da pesquisa sofre a possibilidade de um alto grau de relacionamento interpes- soal. ‘Aqui o ser humano se encontra consigo mesmo e com os demais; os “objetos” são ao mesmo tempo “sujeitos” ’ (ELIAS, 1990, p. 15) .

O distanciamento necessário que o pesquisador é obrigado a exercer, nos termos ex- plicitados por Norbert Elias, passa por uma aparente contradição, isto é, a de se manter dis- tante estando inserido. Mas não há contradição quando o pesquisador ao encontrar-se consi- go mesmo assume de forma segura a realidade do impositivo relacionamento dentro da ou das figurações sob pesquisa.

Sem dúvida, continua de pé a seguinte pergunta: Até que ponto são os seres humanos capazes de “encontrar-se consigo mesmos”; de ver-se a si mesmos desprovidos da brilhante armadura da fantasia que lhes protege dos sofrimentos passados, presentes e futuros? Pode-se afirmar com alguma certeza que a capacidade de vêr-se a si mesmo desprovido de armaduras aumenta ou decresce de acordo com o grau de segurança que se há alcançado. Mas provavelmente esta capacidade tem limites. (ELIAS, 1990, p. 52.).

Observa Elias que essa tarefa é mais fácil para os antropólogos que, em geral, pes- quisam sobre pequenas unidades sociais da qual não fazem parte e das quais não possuem vínculo algum de comprometimento. Já a tarefa é mais difícil para os sociólogos, pois estes, em geral, possuem certo nível de comprometimento sobre aquilo que estudam. Em geral, os sociólogos carregam uma marca de pertencimento, enquanto os antropólogos não pertencem às sociedades estudadas (ELIAS, 1990, p. 53).

1.2 Sobre a utilização do método eliasiano em pesquisas so-

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