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A produção da Hist ória e a const rução do passado

DE I NÍ CI O, PRA COMEÇO DE CONVERSA

1.2 A produção da Hist ória e a const rução do passado

I niciem os essa discussão com um breve debat e sobre a produção e o sent ido de um a Hist ória para, post eriorm ent e, refletir sobre a finalidade e o uso dessa const rução pela com unidade de Bom Jesus. Escrevo “ um a Hist ória” porque elaborada a part ir de um suj eit o idealizado, um a espécie de herói que, m esm o sem um nom e específico, ident ificado apenas por sua at ividade, o t ropeiro, é, em sua t raj et ória pela hist oriografia, em diferent es cont ext os, apresentado quase que poet icam ent e. Seus at os de bravura, narrados com at enção especial às dificuldades enfrent adas durant e as t ropeadas, num a dem onst ração de superação dos lim it es do hom em para o desenvolvim ent o local, denot am sentim ent os patrióticos, apontados, anacronicam ente, pela dita hist oriografia tradicional com o part e do contexto colonial.

Em um prim eiro m om ent o é im port ant e quest ionar: por que a hum anidade se int eressa pela hist ória? Ou ent ão, por que se int eressa pelo passado? Para Paul Veyne ( 1987) , dois são os m otivos:

a) porque os agent es pert encem a grupos sociais, fam iliares, et c., e seu passado pode despertar interesses de diferent es obj et ivos para diversos agent es envolvidos;

b) por sim ples curiosidade.

Ent re os dois m otivos Veyne ( 1987, p. 95) apont a o prim eiro com o m ais frequent em ent e referenciado por diferent es agent es, um a vez que envolve “ o sent im ent o nacional, a t radição: a hist ória seria a consciência que os povos t êm de si próprios” para const ruir um passado digno de ser ident ificável com o seu. Cont udo, os diferentes m otivos que j ust ificam a confort ante “ retom ada” do passado se dão de diversas form as: de acordo com a finalidade e o context o de uso e ident ificação com est e, da perspect iva de fut uro lançada, bem com o de sua at ualização. A part ir desses aspect os poderem os abordar a busca, por part e da sociedade bom - j esuense, no t ropeirism o, pela origem da cidade, por seu m it o fundant e e ident idade cult ural.

Nesse m ít ico ret orno ao passado, deve- se considerar a ação de diferent es agent es, com o, por exem plo: part e da com unidade local diret am ent e envolvida com a const rução da Terra do Tropeirism o; part e da com unidade que não se envolve, ao m enos diret am ent e, nesse processo; “ os de fora” , aqueles que visitam o m unicípio com finalidades turísticas e out ras. Ou sej a, considera- se quem produz e vivencia a hist ória const ruída com o sua; quem não se envolve na const rução dest a ou não a conhece – por com preender out ras dim ensões históricas, com as quais se sente partícipe e/ ou representado – e quem a consom e pela curiosidade de conhecer o outro diferente do “ seu” .

Para Hobsbawm ( 1998, p. 17) , “ se não há nenhum passado sat isfat ório, sem pre é possível invent á- lo. [ …] O passado legit im a. O passado fornece um pano de fundo m ais glorioso a um present e que não t em m uit o o que com em orar.” De m aneira que, para a com unidade local, diret am ent e envolvida no processo de const rução do passado relacionado ao t ropeirism o, a Hist ória t ransform a o sent im ent o do grupo em si e de seu papel com o agent e sociocult ural, inclusive no cont ext o regional. Da m esm a form a, podem os apont ar com o efeit o t ransform ador de cont ext os a passagem da m em ória para a hist ória. Processo que “ obrigou cada grupo a redefinir sua ident idade pela revit alização de

sua própria hist ória. O dever da m em ória faz de cada um o hist oriador de si m esm o.” ( NORA, 1993, p. 17) .

Para que t ais t ransform ações fossem possíveis e para que o passado t om asse lugar ent re as dem ais const ruções do t em po present e, fez- se necessário que a com unidade se posicionasse com o agente ativo e cont asse suas histórias. Que a escrevesse, não apenas com o lem branças, m as com a consciência do conhecim ent o produzido a part ir dest as. Com o at o de criação, frut o de um a at ividade int elect ual que apresent a, no t em po present e, a hist ória na qual os grupos sociais em presença reivindicam sua ident idade, na perspect iva de que “ não se poderia considerar o passado sem o ver através das inquietações do present e” ( VEYNE, 1987, p. 102) . Da m esm a form a, a busca das origens engrandece as populações, quant o m ais buscam os origens, m ais “ veneram os a nós m esm os através do passado” ( NORA, 1993, p. 19) .

Nessa perspect iva, a busca pelo passado acaba por criar a idealização de um a hist ória que segue o desenvolvim ent o dos obj et ivos t raçados pela com unidade e o poder público, em suas expect at ivas com o present e- fut uro. E a construção do t ropeirism o com o m it o profano fundant e da cidade é o cent ro da discussão. “ Os m it os são essenciais à polít ica de ident idade pela qual grupos de pessoas, ao se definirem hoj e por et nias, religião ou front eiras nacionais passadas ou present es, t entam encont rar algum a cert eza em um m undo incert o e inst ável.” ( HOBSBAWM, 1998, p. 19) .

Pode- se dizer que um m it o é, ent ão, a ( re- ) elaboração, a organização e a represent ação de um a realidade const ruída, com a função de nat uralizar, de m anter determ inados aspect os hist óricos ( OLSEN, 1990, p. 170) . Aceitos universalm ent e, ou dent ro de um cont ext o sociocult ural específico, os m it os possuem arquét ipos universais e, ao discut i- los, é necessário depurá- los, buscar os m últ iplos papéis e significados que lhes foram atribuídos nos processos que os const ruíram . Dessa form a,

t udo pode const it uir um m it o, desde que sej a suscetível de ser j ulgado por um discurso… o discurso escrito, assim com o a fotografia, o cinem a, a reportagem , o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo pode servir de apoio à fala m ítica. O m ito não pode se definir pelo seu obj et o nem pela sua m atéria, pois qualquer m atéria pode ser arbitrariam ente dotada de significação. ( BARTHES, 2007, p. 200) .

Desde a produção historiográfica at é nos inst rum ent os de divulgação turística, nas produções artesanais, nos m ateriais didáticos, etc., em Bom Jesus percebe- se a construção do m ito, com o verem os nos capítulos seguint es. Um m ito que não foi iniciado pela população, m as sim alim ent ado por Hist órias que fizeram dele referência.

Na produção hist oriográfica que, de diferent es form as, apresent a o t ropeirism o, percebem os, por vezes, a reprodução de ideias de uns pelos out ros. Ao passo que a “ versão t ransm it ida” pelos predecessores form a um a t radição. Assim , as t radições hist oriográficas, repet idas inúm eras vezes e acrescidas das at it udes de coragem dos grandes heróis e da necessidade de narrar fat os e suj eit os enaltecedores do passado, acaba por criar heróis – com o o tão m encionado nos t rabalhos sobre t ropeirism o, Crist óvão Pereira de Abreu – em det rim ent o de out ros que, sem t erem t ido seus nom es escrit os nas linhas const ruídas pelas hist órias oficiais, desem penharam papéis t ão im port ant es e significat ivos quant o os “ heróis oficiais” .14

Ao analisar o t ropeirism o, a part ir da produção hist oriográfica t radicional, o que t em os encont rado em inúm eros t ext os é um suj eit o bravo ident ificado apenas com o “ t ropeiro” . Um herói sem nom e, à exceção de Crist óvão Pereira de Abreu, que, conhecido unicam ent e por seu t rabalho, desenhou t raj et os nunca antes percorridos, cruzou t errenos intransponíveis, desbravou m at os, enfrent ou e venceu feras indom áveis e índios de diferentes parcialidades culturais.15 É j ust am ent e a t ão cit ada bravura do t ropeiro, fechada no t em po passado, que perpassou, nos últim os anos, por boa part e da hist oriografia, apesar dos ainda

14 No capítulo 2 tratarei das ações de suj eitos que, de variadas form as, fazem de Bom Jesus a Terra do Tropeirism o. Muitos desses agentes, em parte a partir das atividades e do papel social desem penhado pelo Senatro, encontraram seus espaços na história local. Um a história que, construída no presente, coloca a com unidade local na condição de suj eitos ativos na construção do passado- presente- futuro.

15 Poucos tropeiros são nom eados pela historiografia tradicional. Essa honraria ficou guardada aos grandes desbravadores a serviço da Coroa portuguesa ou, posteriorm ente, do I m pério. Em situações onde, em algum as obras, foram necessárias referências a esse agente, bastou cham á- lo de tropeiro. Atualm ente, principalm ente nos anais do Senatro, com o verem os no capítulo 2, os tropeiros e tropeiras têm nom e. São suj eitos que, de diferentes form as e intensidades, m ovim entaram a econom ia local e experienciaram um m odo de vida que, do m undo da prática, passou a com por um ser cultural. Nas produções contem porâneas os heróis da historiografia tradicional não foram esquecidos; pelo contrário, são m otores que im pulsionam as elaborações de outros heróis, construídos no tem po presente, m as com os m esm os at ributos especiais dos antecessores.

t ím idos t rabalhos que buscam out ras perspect ivas e abrem espaços a novos suj eit os e abordagens, ainda que inspirados nos heróis do passado.16

Para abordar os tropeiros na historiografia, visando dem onst rar com o a est es foram at ribuídos novos significados e papéis sociais, sendo m it ificados pela sociedade na busca de sua ident idade cult ural, iniciarem os com a análise de aut ores que seguem um viés t radicional,17 em contraponto com as novas produções. O prim eiro passo é o próprio conceit o de “ t ropeiro” que, para Flores ( 1996, p. 519) , é o

[ …] dono ou quem dirigia a tropa de gado vacum ou de m uares. Docum entos do séc. XVI I I , em Viam ão, referem - se indiferentem ente a tropeiro e com boieiro, um a das figuras m ais t radicionais do Planalto Meridional do Brasil e dos Cam pos de Viam ão. É condutor de tropa de gado, o peão da tropa, que leva tropas de seu patrão [ …] .

O tropeiro é apresentado com o alguém a serviço de out ros ou a seu próprio serviço, no t ransport e de anim ais ou produt os em lom bo de anim ais; é o condut or e/ ou propriet ário da t ropa. No ent ant o, para além do papel funcional por eles assum ido e exercido diant e de um a t ropa, a hist oriográfica cont em porânea, inspirada em est udos t radicionais, em linhas gerais, m ost ra- nos a vida dos t ropeiros da seguint e form a: “ at ravessavam ext ensos sert ões onde só havia indígenas e feras bravias, e rasgavam a solidão da s cam pinas até os cantos m ais distantes do Rio Grande, chegando, por vezes, at é as part es

cast elhanas, at rás de m ercadoria e de negócios m ais vant aj osos” ( TRI NDADE,

1992, p. 58, grifo m eu) . Apesar de o aut or apont ar para a exist ência de indígenas, indica que o espaço “ rasgado” pelos t ropeiros est ava na solidão, sem

16 Nesse sentido, não desej o afirm ar que os tropeiros não foram im portantes no processo de colonização europeia, na área correspondente ao atual estado do Rio Grande do Sul. No entanto, tais abordagens pouco ou nunca trataram de etnias que representam suj eitos ativos desse contexto. A bravura, a coragem e outros adj etivos heroicos narrados fazem parte de um discurso elaborado desde os anos 1920. Um discurso historiográfico que buscou, nesses hom ens, a brasilidade necessária para o contexto de construção da dita identidade nacional ( GUTFREI ND, 1992) . Em trabalhos recentes outros suj eitos, índios, negros, m ulheres, etc., têm sido abordados ( JACOBUS, 1997; SANTOS; BARROSO, 2004; SANTOS; SI LVA, 2003; SANTOS; VI ANNA; BARROSO, 1995; SANTOS et al., 2000; SI LVA, A., 2006; SI LVA; BARCELOS, 2009; SOUZA, 2004) . 17 Alguns autores são identificados com o positivistas, no entanto, segundo I eda Gutfreind ( 1992, p. 24- 25) : “ I nsiste- se em afirm ar que a influência do positivism o com tiano foi flagrante entre os m em bros do I HGRGS, porém a caracterização m ais correta que se pode dar à produção historiográfica de seus m em bros é a do ecletism o teórico, sem um a discrim inação filosófica específica, com um a todos, daí a preferência às expressões História e historiografia tradicional.”

ninguém . Ao não reconhecer a ocupação indígena, Trindade com part ilha da ideia de um t ropeirism o nat uralm ent e luso- brasileiro, m as que, “ por vezes, at é” avançava espaços castelhanos. Aspectos que serão aprofundados m ais adiante.

Já a pesquisadora e escrit ora Anit a Mart ins Fraga ( 2004) apresenta o t ropeiro de form a m ais det alhada. Vej am os:

O tropeiro, desde o Brasil nascente, até m eados do século XX,

arquit et ou nossa Pát ria, de sul a nort e. Foi aquele hom em

destem ido e laborioso – que ( tanto na sua em presa rural, com o a repontar as tropas de alim árias, por longo tem po e distância) se constituiu no form ador de com unidades rurais e urbanas [ …] . Hom em , quiçá rude, ao m esm o tem po dócil, porque lapidado pelas arestas de sua faina a desbravar cam inhos inóspitos, onde por vezes, obrigava- se dorm ir ao relent o [ …] . Todavia, de sem elhant e am adurecido pelos galopes e corcovos dessas tropeadas, tam bém irradiava bondade e alegria não só pelo sucesso, sobretudo, pela em oção da volta ao aconchego fam iliar, após o dever cum prido. ( FRAGA, 2004, p. 601, grifo m eu) .

Nesses excert os dos t ext os de Trindade ( 1992) e Fraga ( 2004) , m esm o que inconscient em ent e, os aut ores represent am bons exem plos da m aneira com o a historiografia tradicional aborda esse agente social, fazendo- o ícone heroico que rasgou solitariam ente cam pos e m atas, ficou m eses longe de sua fam ília e percorreu cam inhos inóspit os. Trat a- se de um hom em que est á acim a do bem e do m al, um hom em rude e, paradoxalm ent e, afável, sem m uit os luxos, sério e de grande coração. O exem plo clássico de dedicação à causa port uguesa, à int egração nacional brasileira18 e de grande honest idade. Adj et ivos que geraram , nas com unidades contem porâneas, m uit o m ais do que o enalt ecim ent o, m as um a verdadeira dívida com um t em po passado que lhes deixou com o “ herança” t am anhas virt udes.

A aut ora cit ada acim a finaliza seu art igo coroando definit ivam ent e o t ropeiro com o herói: “ a guardilha, t enacidade e habilidade no agir do t ropeiro, ent re t ant os perigos, onde ent ra em j ogo a própria vida. Aí, percebe- se a presença de Deus escondida sob os sinais da Hist ória de cada um desses heróis.” ( FRAGA, 2004, p. 605) .

18 Parte da historiografia atribui aos tropeiros o papel de terem feito do Rio Grande um espaço português e, anacronicam ente, por se tratar do período colonial, o elem ento unificador da nação brasileira, ao m enos de sua parte sul. Esse discurso historiográfico apresent a o território do atual Rio Grande do Sul com o naturalm ente português e, consequentem ent e, brasileiro, conform e discutirem os aqui.

Meu obj et ivo, com esses com entários, não é ignorar a im port ância de t ais agent es para o processo de colonização e expansão da Am érica port uguesa. No ent ant o, se t ropeiros dinam izaram as relações com erciais ent re áreas da Am érica port uguesa, t am bém o fizeram com a Am érica de colonização espanhola,19 bem com o t iveram ent re seus contat os, t ensos ou não, diferent es parcialidades indígenas, as quais t am bém abriram cam inhos e picadas que fom ent aram cont at os cult urais e com erciais ignorados por part e da hist oriografia que m arcou o sul da Am érica port uguesa com o “ t erra de ninguém ” ( SI LVA, A., 2008; SI LVA; BARCELOS, 2009) . As relações ent re índios e t ropeiros ainda são pouco abordadas pela hist oriografia ( SI LVA, A., 2006; SOUZA, 2004) , por isso, com o coloca Souza ( 2004, p. 479) , acredito que a

[ …] diversidade cult ural tornou- se traço m arcante da Região Sul, result ante direta do tropeirism o. O tropeirism o auxiliou sucessivam ente para expulsar e dom inar os am eríndios, para trazer portugueses, negros e im igrantes e para abastecer a todos com produtos im portados e fazer escoar a produção local [ …] . O tropeirism o contribui m uito para o desenvolvim ento de conflitos e de com plem entaridade entre nativos, africanos, luso- brasileiros e im igrant es sobrepost os no m esm o t errit ório, originando com plexas e diversas conj unturas interétnicas.

Cont udo, com o dit o, não podem os negar a im port ância da at ividade e do ir e vir desses agent es para a form ação social contem porânea do Sul do Brasil. No entanto, m ost ra- se interessante tecer alguns com entários não som ente sobre a base hist oriográfica a part ir da qual t ais abordagens contem porâneas surgiam , m as tam bém quest ionar os enunciados discursivos que apresent am o t ropeirism o com o único fat or int egrador do Rio Grande de São Pedro à Am érica port uguesa, e os t ropeiros, a part ir de discursos que pecam pelo anacronism o hist órico, com o “ arquit et os da pát ria” .

19 Nietto ( 2000, p. 89) aborda tais fluxos por vezes ignorados pelo reducionism o ao m undo português: “ [ …] aquí, hasta ahora, todos m iram os a las m ulas y m iram os lo que se llevaba para Sorocaba. Pero no contam os que los troperos que iban para m i país, no iban con las m anos vacías. I ban con m ulas, sí, pero las m ulas iban cargadas de contrabando [ …] . Entonces, tengam os cuidado que el cam ino de los troperos no es en un solo sentido. Es un trillo o cam ino que debem os saber se fij a en un sent ido de ida y vuelt a.”