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3 REFERÊNCIAS TEÓRICO CONCEITUAIS

3 REFERÊNCIAS TEÓRICO-CONCEITUAIS

3.1 A produção do espaço em Lefebvre

A questão da produção do espaço está na base da discussão que Lefebvre (2000) empreende. De início, cabe destacar que o espaço lefebvriano é o espaço social³⁹. É necessário deixar claro esse ponto, pois, para Lefebvre, o espaço físico é uma expressão do espaço social.

Para o autor, a urbanização decorrente do desenvolvimento do capitalismo, mais detidamente capitaneada pela industrialização, foi a fonte de modificações da cidade trazendo transformações não só para essa, mas também para o campo, uma vez que o rural passou a responder ao modo de produção capitalista.

Em A revolução urbana, escrito em 1970, o autor busca analisar a urbanização

em processo. Urbanização entendida ainda como um fenômeno “virtual”, em vias de transformação da cidade. Em A produção do espaço⁴⁰, de 1974, Lefebvre se propõe a entender “o espaço lógico-epistemológico – o espaço da prática social” (2000, p.17).

³⁹ Ver artigo intitulado “O espaço na geografia e o espaço da arquitetura: reflexões epistemológicas” publicado em Cadernos Metrópole, v.18, n.37. As autoras Leitão e Lacerda (2016) discutem a questão do espaço em Lefebvre.

⁴⁰ A versão da obra traduzida para o português e utilizada nesta tese foi elaborada pelo grupo de pesquisa denominado “As (Im)possibilidades do urbano na metrópole contemporânea”, do Núcleo de Geografia Urbana da UFMG.

O objeto aqui analisado é o espaço que se materializa a partir de uma prática social de produção do mesmo.

Portanto, como esclarecimento inicial, ressaltamos que o espaço lefebvriano é o espaço da prática social que tem no espaço construído as suas formas de representação. Sua pesquisa analisa a produção do espaço sob a ótica marxista, a partir da lógica que o capitalismo e o mercado impõem. Contudo, o autor não se furta a analisar a produção do espaço anterior ao período da Revolução Industrial. Embora seu olhar alcance a produção do espaço pré-capitalista e a data dessa obra reporte à década de 1970, parece-nos que suas observações quanto a produção do espaço, estão na base de uma discussão contemporânea sobre o assunto, como abordamos a partir de agora.

Segundo o autor, “o espaço (social) é um produto (social)” (2000, p. 29). Esse produto tendeu a se distanciar do espaço natural. Distanciamento que se deu cada vez mais em razão do próprio processo de urbanização, levado a escala mundial, que apartou o espaço social do espaço da natureza em seu estado mais primitivo. A segunda observação decorrente daquela afirmação é que “cada sociedade produz um espaço, o seu” (2000, p.30), o que nos remete à questão da prática espacial. Em Lefebvre, essa prática, diz respeito a uma prática de produção do espaço das atividades humanas. A prática de espaço aqui tem um caráter mais amplo, diferenciando-se das práticas espaciais cotidianas como trataremos mais adiante. Fazemos essa ressalva, para compreendermos o que o autor entende por prática de espaço que se diferencia de outros autores. Lefebvre afirma que: “A prática espacial de uma sociedade secreta seu espaço; ela o põe e o supõe, numa interação dialética: ela o produz lenta e seguramente, dominando-o e dele se apropriando” (2000, p. 34).

A prática espacial em Lefebvre contempla, pois, uma produção e reprodução do espaço e, nesse sentido, coloca em destaque as relações de localização das funções que o espaço comporta. Lefebvre destaca como a prática espacial no neo-capitalismo se voltou para a prática cotidiana a partir dos percursos de trabalho que o modo de produção assim exigia. Esse fato nos chama a atenção para a questão do espaço público construído⁴¹ nesta tese, para distinguirmos do espaço de que trata o autor. Embora Lefebvre discuta o espaço num âmbito mais amplo, a correlação é possível quando as abordagens acerca do espaço público passam do espaço da prática política e cívica para o espaço cotidiano de reprodução do sistema capitalista. Essa mudança

⁴¹ Destaca-se a expressão no texto espaço público construído para evidenciar a dimensão do espaço público trabalhado nesta tese.

de enfoque surge no livro A revolução urbana, quando o autor se questiona e tece argumentos sobre o papel da rua como o lugar do encontro. Ele se pergunta: “quais encontros? [...] Na rua, caminha-se lado a lado, não se encontra” (2008, p.28). O autor complementa:

A rua converteu-se em rede organizada pelo/ para o consumo. A velocidade da circulação de pedestres, ainda tolerada, é aí determinada e demarcada pela possibilidade de perceber as vitrinas, de comprar os objetos expostos. O tempo torna-se o “tempo-mercadoria” (tempo de compra e venda, tempo comprado e vendido). A rua regula o tempo além do tempo de trabalho; ela o submete ao mesmo sistema, o do rendimento e do lucro. Ela não é mais que a transição obrigatória entre o trabalho forçado, os lazeres programados e a habitação como lugar de consumo. (LEFEBVRE, 2008, p.28 e 29)

A questão da produção do espaço, para o autor, interliga-se à performance espacial dos espaços construídos que passaram a ser concebidos para reafirmar o sistema de produção capitalista e também as relações entre a vida privada e os espaços de lazer. Em confirmação a estas observações, Lefebvre aponta:

Cada um sabe do que se trata quando se fala de um “cômodo” num apartamento, da “esquina” da rua, da “praça”, do mercado, do “centro” comercial ou cultural, de um “lugar” público etc. Estas palavras do discurso cotidiano discernem espaços sem isolá-los, e descrevem um espaço social. Elas correspondem a um uso desse espaço, portanto a uma prática espacial da qual elas dizem e compõem. De início, não seria preciso inventariá-los, depois procurar qual paradigma lhes confere uma significação e segundo a qual sintaxe eles se organizam? (LEFEBVRE, 2000, p. 20)

Para o autor, “a prática espacial de uma sociedade é descoberta decifrando o seu espaço” (2000, p. 34). Decifrar o espaço pressupõe compreender quem o concebe e qual a lógica por trás do processo de concepção, quem o vivencia e como o faz, e como esse espaço é percebido. Nesse sentido, as práticas espaciais podem ser entendidas a partir dos três aspectos seguintes, o concebido, o vivido e o percebido. O concebido diz respeito às representações do espaço que Lefebvre define

como:

Aquele dos cientistas, dos planificadores, dos urbanistas, dos tecnocratas “retalhadores” e “agenciadores”, de certos artistas próximos da cientificidade, identificando o vivido e o percebido ao

concebido (...). É o espaço dominante numa sociedade (um modo de produção). As concepções do espaço tenderiam (com algumas reservas sobre as quais será preciso retornar) para um sistema de signos verbais, portanto elaborados intelectualmente. (LEFEBVRE, 2000, p. 35, aspas do autor)

O espaço concebido seria, dentro da perspectiva desta tese, o espaço dos

fabricantes como apontado no capítulo 1. Diz respeito a um corpo técnico e político

que domina a produção física do espaço. Produção essa intrínseca à lógica de um sistema econômico e político vigente.

Enquanto o espaço concebido diz respeito ao espaço do poder, o espaço vivido diz respeito ao dos usuários, daqueles que se apropriam do espaço, também denominado por Lefebvre como os espaços de representação.

Os espaços de representação, ou seja, o espaço vivido através das imagens e símbolos que o acompanham, portanto espaço dos “habitantes”, dos “usadores”⁴², mas também de certos artistas e talvez dos que descrevem e acreditam somente descrever: os escritores, os filósofos. Trata-se do espaço dominado, portanto, submetido, que a imaginação tenta modificar e apropriar. De modo que esses espaços de representação tenderiam (feitas as mesmas reservas precedentes) para sistemas mais ou menos coerentes de símbolos e signos não verbais. (LEFEBVRE, 2000, p. 35)

Por considerar um produto social, Lefebvre (2000) observa que o espaço deveria ser vivido antes de ser concebido⁴³. Contudo, destaca que o concebido tem se colocado anterior ao vivido dado a lógica especulativa que o próprio sistema capitalista se utiliza para dominar o vivido.

Ao concebido e ao vivido agrega-se o percebido. Lefebvre destaca também

para a importância dessa triplicidade, uma vez que reduzir a prática de espaço ao

concebido e ao vivido traria uma ideia de oposição e contraste para pensar o espaço,

quando, na realidade, deve existir uma relação dialética entre os três aspectos apontados (LEFEBVRE, 2000). Assim, o percebido, tem algo de sensorial que diz respeito às formas de percepção.

⁴² “Usadores” é a palavra utilizada na versão traduzida para o português. A página 35 do livro, traz uma nota de rodapé sobre a tradução feita para a palavra.

⁴³ Essa questão será retomada mais adiante, pois para a Arquitetura e o Urbanismo, como viver em um espaço ainda não concebido?

Para compreender o espaço social em três momentos, reportemo-nos ao corpo. Uma vez que a relação com o espaço de um “sujeito”, membro de um grupo ou de uma sociedade, implica sua relação com seu próprio corpo e reciprocamente. A prática social considerada globalmente supõe um uso do corpo: o emprego das mãos, dos membros, dos órgãos sensoriais, os gestos do trabalho e os das atividades exteriores ao trabalho. É o percebido (base prática da percepção do mundo exterior, no sentido dos psicólogos). (LEFEBVRE, 2000, p. 36)

Desta forma, Lefebvre discute que o espaço concebido, ou as representações

do espaço, são permeadas de um saber de ordem ideológica e de um conhecimento

transformáveis ao longo do tempo. O espaço concebido entra na lógica política para a produção do espaço agregando os objetos, os dispositivos e as pessoas. É o espaço dos produtores, dos fabricantes. Enquanto o vivido, ou os espaços de

representação, não seguem necessariamente a lógica imposta pelo concebido. É o

espaço dos usuários, que em detrimento daquilo que lhes é colocado, muitas vezes, subvertem o que está lhes sendo imposto. É o espaço do simbólico, do afetivo, um espaço relacional. As relações aí estabelecidas perpassam necessariamente pela copresença⁴⁴ e coexistência e pela interação com os dispositivos construídos. Diz respeito a apropriação do espaço. Para Lefebvre, um espaço social apropriado não se gera em um dia, trata-se de um processo no qual “a sociedade geradora toma forma apresentando-se e se representando” (2000, p. 32). O processo de apropriação está no cerne da questão do espaço vivido.

Sob a ótica lefebvriana, quando se discute contemporaneamente a produção do espaço, e nesse ponto, traz à tona a questão dos espaços públicos construídos, o que se observa é que não interessa a preponderância do vivido sobre o concebido. O processo de globalização da economia tem se utilizado da concepção dos espaços enquanto objeto político de pacificação do vivido. Observa-se como estratégia que a homogeneização dos espaços tem criado espaços abstratos, também abordado por Lefebvre. Portanto, o tríplice aspecto das práticas espaciais que dizem respeito ao

vivido, ao concebido e ao percebido, perdem sentido em se tratando dos espaços abstratos.

Nesse âmbito, podemos observar, sobre o espaço abstrato apontado por Lefebvre, que o mesmo teria um caráter alienante em função da ação redutora do espaço vivido. O próprio Lefebvre, ao tratar do espaço abstrato, afirma que: “o vivido

⁴⁴ O termo copresença é utilizado nesse texto tomando por base o sentido atribuído por Joseph (1988) segundo o qual é o ato de estar com o outro em um mesmo espaço em uma relação de distanciamento. Diz Joseph: “um espaço público é um dispositivo que põe em tensão identidades entre distância e proximidade, entre o cara-a-cara com o outro e a co-presença com os demais [...]” (1999, p. 26).

se esmaga (é esmagado). O concebido o assalta” (2000, p. 43), ratificando, dessa maneira, a observação acima. Ou seja, a produção do espaço público contemporâneo diz respeito à pacificação do vivido e a preponderância do concebido. Quais as consequências disso? A criação de espaços cenográficos, homogeneizados. Espaços que aumentam as clivagens sociais. O espaço abstrato, homogeneizado, faz com que esse espaço não seja produto de uma sociedade, mas de um sistema global. Nas palavras do autor, é um espaço que “implica consensos” (2000, p. 48). Portanto, para Lefebvre: “[...] o espaço abstrato tende para a homogeneidade porque ele reduz as diferenças (particulares) existentes, e porque o espaço novo só pode nascer (ser produzido) acentuando as diferenças” (2000, p. 44). E qual a “solução” para o espaço

abstrato? Seria a produção de um espaço diferencial como apontou o próprio autor.

Isto é, aquele que ressalte as particularidades existentes, enquanto produto social, e se distancie da homogeneização.

Assim, encontramos nas reflexões de Lefebvre respaldo para a investigação de um problema levantado na tese sobre a “produção” dos espaços públicos contemporâneos quando estes são frutos de um concebido e não do vivido. A lógica deveria ser inversa, o vivido demandando o concebido, uma vez que o espaço é a morfologia do social (LEFEBVRE, 2000). Afirmação que guarda relações entre a

forma do social, suas estruturas e funções, dentro do espaço vivido. (LEFEBVRE,

2000). Com isso, Lefebvre sublinha a preponderância que o vivido deve ter sobre o concebido uma vez que os processos de estruturação e conformação do espaço social são resultantes de processos de significação e apropriação. Sobre isso, ao argumentar em favor da rua, em A revolução urbana, Lefebvre observa:

Na rua, e por esse espaço, um grupo (a própria cidade) se manifesta, aparece, apropria-se dos lugares, realiza um tempo - espaço apropriado. Uma tal apropriação mostra que o uso e o valor de uso podem dominar a troca e o valor de troca. Quanto ao acontecimento revolucionário, ele geralmente ocorre na rua. Isso não mostra também que sua desordem engendra uma outra ordem? O espaço urbano da rua não é o lugar da palavra, o lugar da troca pelas palavras e signos, assim como pelas coisas? Não é o lugar privilegiado no qual se escreve a palavra? Onde ela pôde tornar-se “selvagem” e inscrever-se nos muros, escapando das prescrições e instituições” (LEFEBVRE, 2008, p.27 e 28).

O espaço, assim pensado, guarda os signos das condutas praticadas no urbano⁴⁵. É nesse sentido, que o espaço lefebvriano é o espaço socialmente definido.

⁴⁵ Ver Morais em “Pacificação da cidade: a urbanidade legitimada” publicado In: Urbanidades. Rio de Janeiro:, Folio Digital/: Letra e Imagem, 2012.

Também, como citado anteriormente, Lefebvre se apresenta como um autor bastante atual, dando-nos suporte à discussão e interlocução com a produção do espaço público contemporâneo.