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2 O TOQUE: PERSPECTIVAS TEÓRICAS PARA O TRABALHO COM ESCRITA

3.5 UM OUTRO LIVRINHO

3.5.4 A produção individual: a escrita como produto

No portfólio, estão guardados três projetos desenvolvidos pela professora: o primeiro, intitulado “Violência contra mulher”, que utilizou o miniconto “Para que ninguém a quisesse”, de Marina Colasanti; o conto “A cartomante”, de Machado de Assis; e um fragmento de “Gabriela cravo e canela”, de Jorge Amado. O projeto deu origem à escrita de vários gêneros (charge, história em quadrinho, narrativa, teatro e conto) todos documentados no portfólio. O segundo é o projeto da Olimpíada e, um terceiro, denominado “Sou negro, e daí?”, este último, com escassa documentação se comparado aos outros, o que poderia indicar que ainda estaria sendo concluído o registro.

A análise incidiu sobre o projeto da Olimpíada, entretanto essa observação panorâmica permitiu inferir, considerando que todos os projetos foram desenvolvidos em 2016, conforme consta no portfólio, que o texto literário e a escrita literária estão presentes de forma expressiva nas práticas da professora, que têm levado os alunos a escreverem com relativa frequência. No trabalho desenvolvido com a Olimpíada, são quatro os momentos em que a escrita é desenvolvida, em dois desses momentos trata-se da produção de Memórias literárias, o que poderia indicar a retomada do primeiro texto pelo processo de reescrita. O portfólio, porém, não registra essa prática e, na entrevista, a professora afirma que, ao adaptar a sequência didática, reduz exatamente a parte referente ao processo de revisão, tão importante para o processo de escrita literária: “Eu comecei a elaborar um outro livrinho em cima daquele, não segui tudo. Principalmente, aquela parte de correções, aquelas sugestões, aquela revisão, é meio que cansativo. Eu pulo bastante coisa ali.”

A professora atribui essa exclusão ao fato da SD da Olimpíada ser muito longa e cansativa, entretanto, ela poderia ter aberto mão de outras etapas. A escolha pelo enxugamento de questões de revisão fala a favor de uma concepção de escrita como produto que se opõe à ideia da escrita como projeto, como já se viu, pela via da Crítica genética (SALLES, 2013). A professora, no entanto, não abandona o aluno na prática da escrita, ela se apropria do quadro de recomendações da Olimpíada para a primeira produção que, observem, inclui a orientação “lançar mão de recursos literários”, como roteiro para a escrita, fazendo algumas alterações.

Figura 22 - Roteiro para escrita – Caderno do professor

Fonte: CADERNO, 2016.

Como se pode comprovar abaixo, a professora acrescentou ao roteiro um tópico referente ao uso da primeira pessoa, exemplificou o uso de expressões para marcar o passado (naquele tempo, antigamente, naquela época) enfatizando, como já se disse, a focalização narrativa e a representação do passado, duas características importantes do gênero no concurso. Também modificou a última recomendação relacionada à revisão, para informar que os textos seriam produzidos em sala de aula e recolhidos para avaliação.

Figura 23 - Roteiro para escrita

Fonte: Caderno da Professora.

Essa relação com a escrita dos alunos difere muito da “atenção estética” postulada por Tauveron (2014), que ocorre quando o professor apoia o aluno em um projeto autoral de escrita e a tarefa da revisão é compartilhada com chance de se tornar uma atividade gratificante em que o professor pode aprender sobre o processo de escrita dos alunos para melhor mediar esse aprendizado. Em vez de trabalhar várias produções escritas com os alunos, dispersando esforços, a professora poderia levar os alunos ao aprimoramento de um único projeto, até alcançar a aprovação do seus leitores, a classe e o professor, com quem desenvolveria essa relação autor-leitor.

Os estudos de Calkins (1989) e Tauveron (2014) nos mostram que os alunos que se engajam em projetos de escrita, desenvolvem com a classe uma relação estética, um diálogo autor- leitor e, assim, a reescrita do texto tem o propósito de incrementar esse diálogo por intermédio do texto literário.

Angela Mari Gusso e Elisa Maria Dalla-Bona (2014), em artigo que reflete sobre a reescritura de narrativas literárias, produzidas por alunos do 4º ano do ensino fundamental, de escola da Rede Municipal de Ensino de Curitiba, constatam que, mesmo com o trabalho de revisão, os textos dos alunos permanecem com um “potencial inexplorado”, pois a reescrita só alcança questões gramaticais e/ou ortográficas. E que isso se deve “à falta de oportunidade para o aluno-autor testar os efeitos de sua escrita com os colegas de classe e/ou o professor, e de reescrevê-lo visando aprimorá-lo no sentido de obter uma aproximação maior com as características do texto literário” (p. 69). Para essas autoras

O importante é que a reescrita seja uma opção assumida pelo aluno-autor, por ele ter tomado consciência das alterações que se fazem necessárias em seu texto e desejar incorporá-las. A probabilidade de isso acontecer será maior se as propostas de produção textual formuladas pelo professor levarem em conta que todo texto escrito prevê a existência de leitores. São esses leitores potenciais que, indiretamente, estimularão o aluno-autor a buscar um texto de maior qualidade (GUSSO; DALLA- BONA, 2014, p. 83).

Tauveron reconhece a dificuldade que os professores têm nessa relação com o texto dos alunos. Em sua pesquisa com professores, a autora constata que mesmo aqueles que são leitores de literatura

não estão em condição de exercer diante do texto do aluno as mesmas competências (e a mesma bondade) que lhes permite enfrentar a resistência das obras literárias legítimas. Todos são provavelmente bons leitores de literatura que depararam com romances que não respondem de nenhuma maneira ao modelo que eles ensinam, são romances que apresentam exposições incompletas ou retardadas, hipertrofiam a descrição em detrimento da narrativa, que obliteram a situação inicial ou a natureza da complicação, que não liberam a situação final, que, à margem da trama, acumulam as informações de indícios da qual uma das funções é construir o efeito do real (TAUVERON, 2014, p. 100).

As pesquisas realizadas com docentes por Tauveron (2014) demonstram que o ensino da escrita é um conteúdo para o qual o professor demonstra menor “competência e segurança pessoal” (p. 97), pois suas práticas de escrita são normalmente escolarizadas e ele não se sente preparado para ensinar algo que não dominava. O que para Tauveron só será resolvido com formação sobre escrita literária. A fala abaixo da professora Maria é bastante elucidativa com relação à sua formação inicial no Curso de Letras para trabalhar com literatura no ensino fundamental

Não. Não, não, não... Eu fiz faculdade até particular, só que, muito boa, gostei do meu professor de literatura. Ele trabalhou literatura brasileira. Inclusive, eu já trabalhei literatura brasileira, não deixo de trabalhar Machado de Assis com os meninos, sou apaixonada, mas um trabalho voltado pra isso não. Inclusive, produção de texto, podia ter isso dentro do nosso currículo porque o que eu vejo hoje, infelizmente, são professores de Português e outros professores completamente despreparados [...] a faculdade deveria preparar mais. Professor de Português

deveria ter aula de produção, colocar os alunos pra escrever. Porque quando a gente sai da faculdade a gente acha que a escola é “uau, a gente vai conseguir!”, dá aquela “viajada”, e quando a gente vê não é nada disso. E a gente tem que tá preparado para essa realidade. E a gente chega lá despreparado, acontece alguma coisa, o professor fica nervoso, faz alguma besteira e a culpa é do professor. Então, tem que ter uma formação melhor. Principalmente o professor de Português. Tem que ter literatura, como trabalhar literatura infantil com a criança, porque geralmente tem literatura brasileira, né? A aula de literatura mesmo. Mas muitos professores não chegam até o ensino médio, muitos ficam só de quinta a oitava e não incentivam a leitura do aluno (APÊNDICE E).

Aqui há alguns pontos que destaco, sem intenção de generalização, mas na perspectiva teórica em que me movo, por mais que esse saber seja relacionado à experiência singular da professora, ele também é representativo da comunidade de professores de que faz parte e com que partilha representações, trazendo questões relevantes para reflexão e mensagens importantes do “chão da escola”. São esses pontos: a inadequação do currículo do curso de Letras para o trabalho com a literatura no ensino fundamental, por lacunas com relação à literatura infantil, logo, à formação de leitores e ao ensino da escrita; o despreparo dos professores de um modo geral e do professor de língua portuguesa, em especial, e sua exclusiva culpabilização pelo insucesso de suas práticas; a crença de que a formação inicial no ensino superior é fundamental para o enfretamento da realidade da sala de aula. O ensino da escrita literária faz parte do “currículo praticado” (OLIVEIRA, 2003) da professora Maria e também de tantos outros, como o Professor Da Silva, a Professora Dulcineia e a Professora Mariana. As questões apontadas pela professora são importantes para pensar os currículos das licenciaturas pois trazem o saber do egresso, importante para guiar avaliações, planejamentos e processos de revisão curriculares das instituições de ensino superior responsáveis pela formação do professor da educação básica.