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1.3 O ESPAÇO DA PESQUISA

1.3.3 Os professores de Língua Portuguesa: um perfil

Um perfil é sempre uma visão pobre e parcial que esconde a face inteira, que esconde o que está por trás, por dentro. Um perfil é um recorte que se elege de uma totalidade inalcançável que nos escapa sempre. Como um retrato, revela no que mostra e muito mais no que esconde. Revela no olho do olhado o de quem olhou. Toda busca é edipiana:

Sou Professora de Língua Portuguesa da Rede Municipal da Serra, efetiva, auto declaro-me parda, tenho mais de 36 anos, meu pai não chegou a concluir o Ensino Fundamental e minha mãe só o fez quando adulta e depois de casada, estudei em escola pública na educação básica, graduei-me em Letras pela UFES, fiz Especialização em Estudos Literários. Eis o perfil médio dos professores de Língua Portuguesa aferido pelo instrumento: o espelho.

A autora

Ao discorrer sobre a história da leitura e suas práticas em debate com o sociólogo Pierre Bourdieu, Roger Chartier afirma que as capacidades de leitura postas em funcionamento pelos leitores diante de determinados textos, em dada situação de leitura, são historicamente variáveis. Desse modo, para se constituir uma história da leitura, seria preciso levar em conta os modos de ler, os objetos de leitura, suas estruturas, os protocolos de leitura inscritos nos próprios textos e sua materialidade (CHARTIER, 2011, p. 235). O teórico aponta ainda outras formas de estudar a história da leitura, como a partir do que um leitor diz de suas leituras. Bourdieu adverte que as declarações de leituras são pouco seguras e não possuem “efeito de legitimidade” (p. 236).

Os depoimentos de leitores, entretanto, importam à História Cultural desenvolvida por Roger Chartier, na medida em que comportam representações no cerne das quais se podem identificar rastros de práticas ou formas de apropriações que constituem significados, os quais, por sua vez, se atribuem aos objetos e práticas culturais. Adoto essa perspectiva de tomar as declarações dos professores como representações, que, em sua fragilidade, mesmo carente de legitimidade, nos oferecem essa visão parcial, atravessada por valores e crenças, que se afigura como a realidade possível. As representações, segundo Chartier (2011e, p. 256), têm o poder de abalar o saber histórico e de lhe retirar a exclusividade de representar o passado, pois “não são simples imagens, verídicas ou enganosas, de uma realidade que lhes fosse exterior. Elas possuem uma energia própria que convence de que o mundo, ou o passado, é realmente aquilo que dizem que é” (CHARTIER, 2011b, p. 27).

O questionário, que permitiu a identificação desse perfil, foi elaborado com base nos objetivos iniciais da pesquisa de tese, a partir da contribuição de outros questionários já aplicados pelo grupo de pesquisa Literatura e Educação17, ligado ao PPGL, tais como o instrumento de pesquisa “Leitura nas licenciaturas: espaços, materialidades e contextos na formação docente”, aplicado no âmbito do Programa de Cooperação Acadêmica entre a Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (Marília e Presidente Prudente), Universidade de Passo Fundo e Universidade Federal do Espírito Santo; e os questionários aplicados em pesquisas de pós-graduação pelos colegas Rossanna dos Santos Santana Rubim (Mestrado), Lorena Vieira (Mestrado) e Ronis Faria de Souza (Doutorado). O grupo de pesquisa participou de uma aplicação teste do instrumento, contribuindo para seu ajustamento e operacionalidade.

Dos 26 professores participantes da formação continuada no ano de 2016, a maioria tem idade de 36 anos em diante. 88% são efetivos e 12% são temporários. Quanto ao gênero, 92% são do sexo feminino e 8% masculino, com maioria autodeclarada branca (44%), e 40% pardos. Considerando a complexa definição étnica18 brasileira em função dos longos anos de escravização de negros africanos no país e os prejuízos sociais e culturais daí decorrentes, o que motivou a adoção de ações afirmativas como as cotas raciais para corrigir desigualdades sociais decorrentes desse processo, considerei interessante a utilização da categoria de raça que define o grupo de negros no Brasil, a partir da somatória entre o número de autodeclarados pardos (40%) e pretos (8%), que chega a uma maioria de negros (48%), dos quais 60% afirmam não desenvolver atividade com a literatura relacionada à História e Cultura Afro-Brasileira, conforme determina a Lei 10.639/2003, alterada pela 11.645/08, única Lei no Brasil que determina expressamente o trabalho com a literatura nesse segmento. Michael Apple (1998), no artigo “Ensino e trabalho feminino: uma análise comparativa da história e da ideologia”, considera que, para compreender o trabalho docente, é fundamental considerar categorias de classe e de gênero. A leitura do artigo leva a desnaturalizar e desmistificar o predomínio de mulheres no magistério, mais expressivo na educação básica e nas áreas de Ciências Humanas, que, para ele, encontra explicações na “divisão sexual do trabalho e nas relações patriarcais e de classe” (APPLE, 1998, p. 15). O conceito de

17 Grupo de Pesquisa Literatura e Educação. Coordenadora geral: Maria Amélia Dalvi e Arlene Batista da Silva

(coordenadora adjunta). Mais informações: <http://literaturaeeducacao.ufes.br/>.

18 Para melhor compreender essas questões indico leitura de: BONETTI, A. L.; ABREU, M. A. Faces da desigualdade de gênero e raça no Brasil. Brasília: Ipea, 2011. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_facesdadesigualdade.pdf>. Acesso em: 11 nov. 2017.

“interseccionalidade”, de Kimberlé Crenshaw (2002), amplia a questão ao mostrar que questões de classe, raça e sexo costumam andar juntas. Assim, o fato desse grupo ser constituído, em sua maioria, por mulheres negras, cujos pais tiveram como formação o ensino fundamental incompleto e elas terem estudado na educação básica em escola públicas, ligam essas professoras a uma história de alfabetização familiar recente, o que estará presente em suas práticas e representações de literatura que, como prática da cultura letrada, tem suas referências primeiras na família.

Chama a atenção nos dados, o percentual de professores formados pela UFES, 80%, o que confirma a importância dessa instituição na preparação dos profissionais de Letras para atuação da educação básica na região da Grande Vitória. Em relação à etapa da pós-graduação concluída, 68% dos professores concluíram a Especialização e 20% o Mestrado. Entre os pesquisados, consta apenas um professor com título de doutor. A baixa adesão aos estudos pós-graduados stricto sensu encontra explicação na falta de um plano de carreira que compense o esforço expendido no percurso de formação, uma vez que 52% dos professores afirmaram ter registros sobre sua prática, sendo que 64% aceitaram continuar a participar da pesquisa, o que pode indicar uma atitude de reflexão sobre a sua prática e o interesse pelo universo da pesquisa.

Em algum momento do ensino fundamental e médio, a maioria teve acesso a bibliotecas escolares ou a salas de leitura e, hoje, têm computador com internet em casa. Com relação à prática de leitura literária, leem predominantemente conto, crônica e romance. Foram considerados leitores durante toda a educação básica e ainda hoje o são, tendo costume de ler sobre literatura, especialmente notícias sobre lançamento de livros, sites e blogs e artigos acadêmicos. Conversam sobre literatura com colegas de trabalho, amigos e familiares. Quanto à posse do livro e a constituição de bibliotecas pessoais, símbolo de prestígio nesse campo, indicando inserção na cultura letrada, a maioria detém pouca quantidade de livro:

Gráfico 1 - Número de livros em casa

Fonte: da autora.

Quanto instados a responder à seguinte pergunta do questionário: “Cite texto(s), autor(es), livro(s) ou experiências relacionadas à literatura que você considera importante(s) para a sua formação literária”, a maioria dos professores elencou autores, em vez de obras ou vivências, o que denota a predominância entre os professores de uma visão de literatura centrada na figura do autor e do autor canônico, considerando a reiterada menção a Machado de Assis. O nome de Machado de Assis como autor mais citado não surpreende, pois de acordo com Ronis Faria de Souza, em sua tese de Doutorado, defendida no PPGL/UFES, em 2016, intitulada O habitus do leitor literário: o professor de Língua Portuguesa de Ensino Médio da rede estadual do Espírito Santo, Machado é o segundo na preferência dos leitores na pesquisa Retratos de leitura do Brasil de 2015, o que sua pesquisa também confirma. Para Souza (2016), a menção a Machado de Assis como autor de predileção indica “uma marca muito contundente da época escolar”, do que denomina “cânone escolar brasileiro” (p. 184), a partir do conceito de cânone ocidental desenvolvido pelo crítico inglês, Harold Bloom (1999). Algumas representações mais extensivas de literatura também aparecem nas menções a autores e textos não canônicos e até a obras não literárias, tais como a Bíblia, enciclopédias, estudos de Freud e Lacan, por exemplo, além da referência a blogs e sites da internet como fontes de informação sobre literatura, portanto, uma vivência literária alheia à influência da academia e das instâncias especializadas a ela ligadas.

Com relação à prática da escrita literária, 52% afirmam não ter vivenciado essa prática. Dentre os que escrevem, a maioria escreve poemas, que, curiosamente, não é o gênero mais indicado como o mais lido por eles, o que pode indicar uma prática de escrita literária mais espontânea sem prisão a estruturas modelares e ao diálogo intertextual, sem muita ligação

com prática de leitura da modalidade escrita.

Os professores recusaram a expressão “ensino de literatura” para nomear o trabalho realizado com literatura no ensino fundamental, optando a maioria pela expressão “leitura literária” (44%), seguida de “educação literária” (24%) e “letramento literário” (28%). Observa-se que os que defendem o termo educação literária afinam-se mais com uma função humanizadora da literatura, voltada para sua dimensão estética, para a formação do gosto e valorização do prazer da leitura. Os que são adeptos do termo “leitura literária”, abordam tanto a dimensão da leitura como “ato”, prática, defendendo a formação do “hábito” da leitura e do gosto pela leitura, como também tomam a leitura como operação abstrata, de compreensão, desvendamento do sentido. Ao professor, compete a mediação motivadora, havendo aí também uma crítica às práticas de leitura literária realizadas na escola.

Em relação às práticas docentes, foram feitas perguntas sobre leitura literária, escrita e reescrita de textos literários, atividades envolvendo a oralidade, abordagem de conteúdos referentes à literatura, bem como o trabalho com autores capixabas, cultura africana, afro- brasileira e indígena, pensando nos gêneros, nos suportes utilizados, nos acervos disponíveis na escola para realizar esses trabalhos e na frequência com que ocorrem para ver se chegam a configurar uma ação pedagógica continuada, o que caracterizaria não uma prática esporádica, mas o ensino sistematizado, aqui compreendido como

um momento didático-pedagógico do ensino escolar formal, intencional e organizado, que, por sua vez, integra o processo de formação (integral), com a finalidade de contribuir para o processo de emancipação humana. Assim, na expressão “ensino da literatura”, tem-se, simultaneamente, a indicação de objeto de ensino escolar e de um momento específico de ensino e aprendizagem, que integra o processo educativo e que se refere ao lugar e à contribuição da literatura para a educação, por meio do ensino (MORTATTI, 2014a, p. 29).

Os professores afirmam desenvolver atividades de leitura, escrita e atividade com oralidade com textos literários em suas aulas, costumeiramente, em média, duas vezes por semana, sendo a atividade de leitura a mais frequente, e mais rara as atividades com escrita. Em relação aos gêneros usados para realização dessas atividades, constata-se que não há muita variação. Normalmente, os professores utilizam os mesmos gêneros para práticas de natureza diversa, o que pode denotar uma prática pedagógica desconectada dos usos sociais. Observa- se também, falta de articulação entre leitura e escrita, uma vez que gêneros utilizados para o trabalho com a escrita, como a autobiografia, não comparecem nas atividades de leitura. Tal é o caso da peça dramática, usada acertadamente nas atividades com oralidade, mas não

elencadas entre os gêneros para leitura e escrita. O poema comparece como gênero preferido para todas as atividades, seguido de contos, crônicas e quadrinhos. Em relação à reescrita dos textos literários, os professores admitem desenvolver trabalhos dessa natureza com os alunos, dando outra destinação, além da leitura pelo professor, aos textos produzidos pelos alunos. Em relação à Olimpíada de Língua Portuguesa, 76% já participaram das edições anteriores com seus alunos e 84% afirmaram que iriam participar da edição de 2016. Entretanto, apenas três dos professores respondentes entregaram textos para a comissão julgadora municipal. Mesmo assim, 88% afirmam utilizar o material de formação das OLP para trabalhar com os alunos, o que pode indicar que desenvolvem trabalho de escrita literária com seus alunos, a partir do material, mas não chegam a concluir o processo com a submissão dos textos ao concurso. Em relação à abordagem de conteúdos sobre literatura nas aulas, 96% dizem fazê-lo com frequência semanal e os suportes mais citados foram o livro didático, fotocópias de parte da obra e livros de literatura infantil. O que indica um trabalho que não leva em conta a obra em sua integralidade (suporte material e texto).

Para finalizar esse perfil, apresento relato19 da Professora Soraya Pompermayer, professora de Língua Portuguesa da rede estadual e rede municial de Vitória, em apresentação que fez ao grupo de professores de Língua Portuguesa, sobre a proposta didática desenvolvida no Mestrado Profissional do IFES (POMPERMAYER, 2016) com rodas de leitura em uma escola da rede estadual, na Barra do Jucu, Vila Velha, cujo leitor guia da roda, naquele dia, foi Francisco Aurélio Ribeiro, autor de literatura infantil de maior projeção do estado na atualidade, não só por número de obras, mas por ter tido livros publicadas em circuito nacional, somando-se a isso a sua atuação como “autor-divulgador” (OLIVEIRA, 2016). A presença de Francisco Aurélio teria causado sensação entre os alunos do 5º ano, um dos quais, resgatando o gesto bíblico de incredulidade (ou de brincalhona ironia?), precisou tocar no autor para confirmar se era uma pessoa de carne e osso, o tal sujeito encarnado de que fala Chartier em suas obras. Esse relato, além de seu teor anedótico, possibilita uma reflexão sobre as representações e práticas de literatura nas escolas públicas da Grande Vitória, em que pouco se conhece da produção literária local publicada: apenas a metade, 56% dos professores afirmaram trabalhar com autores capixabas, sendo que os autores mais citados são Rubem Braga (6 vezes), Francisco Aurélio Ribeiro (4 vezes) e apenas quatro obras citadas: Nos passos de Anchieta e A casa mal assombrada, de Francisco Aurélio Ribeiro; A pulga e o

19 Informação fornecida pela professora Soraya Pompermayer, durante o encontro de formação continuada de

jesuíta, de Pedro José Nunes; e Lenda do pássaro de fogo, este último sem mencionar o nome do autor, que é Rodrigo Capanelli. Essas obras são uma representação ínfima da produção literária de escritores capixabas, muitas vezes desconhecidos, mas “bravos companheiros e fantasmas”, expressivo epíteto cunhado por José Carlos Oliveira, adotado para nomear o evento bianual sobre o autor que produz literatura no Espírito Santo e que está na agenda fixa do PPGL (UFES). O evento propõe

reflexão sobre aspectos relacionados com a crítica e a historiografia da vida literária no Estado do Espírito Santo; constitui, nesse sentido, um espaço de referência associado ao registro da produção acadêmica sobre autores, obras, temas e demais questões identificadas com a presença (e com a ausência) da Literatura no Espírito Santo, e do Espírito Santo na Literatura (APRESENTAÇÃO VII. Seminário Bravos Companheiros e Fantasmas, 2017, grifo meu).

Dentre as ausências, para mim, a mais expressiva é a ausência dessa literatura e desses autores nas escolas da educação básica para inserir a figura viva do autor e do livro no imaginário desses que são seus potenciais leitores e autores: os alunos e professores da educação básica.

1.4 A TEORIA FUNDAMENTAL: ROGER CHARTIER - LEITURA E ESCRITA