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2 O TOQUE: PERSPECTIVAS TEÓRICAS PARA O TRABALHO COM ESCRITA

2.3 O ALUNO-AUTOR E A ESCRITA LITERÁRIA POR CATHERINE TAUVERON

das decisões que levam um home a se realizar [...] somente na palavra: é escritor aquele que quer ser. Naturalmente também, a sociedade, que consome o escritor, transforma o projeto em vocação, o trabalho da linguagem em dom de escrever, e a técnica em arte.

Roland Barthes

A tese, Letramento literário: ler e escrever literatura nas séries iniciais do ensino fundamental, de 2012, de Elisa Dalla-Bona, pesquisa de campo, realizada em escola pública, com múltiplas fontes, apresenta com riqueza de dados o trabalho com leitura e escrita literária nos anos iniciais do ensino fundamental, indicando a importância desse aprendizado para o letramento literário do aluno. A tese apresenta ao leitor brasileiro a produção teórica de Catherine Tauveron sobre ensino de escrita literária na escola com o propósito de desenvolver o comportamento de autor nos alunos (p. 105- 126). Em português, Tauveron tem publicado o artigo “A escrita ‘literária’ da narrativa na escola: condições e obstáculos”, de 2014, no Dossiê temático: Leitura e escrita literária na Educação Básica: o que tem a dizer a pesquisa contemporânea?, do periódico Educar em Revista, da UFPR, e “Direitos do texto e direitos dos jovens leitores: um equilíbrio instável”, no livro Leitura subjetiva e ensino de literatura, de 2013.

A pesquisadora Catherine Tauveron, professora da Universidade da Bretanha Ocidental, em Brest, na França, contrapondo-se à ideia corrente de que a escrita literária é privilégio de poucos, defende que as escritas dos alunos, movidas por uma “intenção artística” (TAUVERON, 2014, p. 88), são fruto de uma postura autoral e que, mais do que encorajadas devem ser orientadas por meio de condições didáticas adequadas. O conceito de escrita de “intenção artística”, adotado por Tauveron, segundo a autora, é decorrente das contribuições de Gérard Genette, que propõe o desenvolvimento da “intenção artística” e de “atenção estética”, relacionadas respectivamente, à escrita e à leitura literária. Para a pesquisadora, a escrita literária é constitutiva da “adoção de um ethos discursivo singular, a postulação e definição de um leitor ‘astuto’, a ficcionalização do ‘eu’” (2014, p. 96) e que esses elementos precisam ser ensinados aos alunos o quanto antes, não acreditando em uma educação literária

progressiva, do mais simples para o complexo. Para ela, deve-se, desde cedo, propor tarefas complexas e desafiadoras às crianças. Entretanto, adverte:

Nós chamamos, então, aqui “autor” o aluno que produz um texto narrativo com uma intenção artística e o distinguimos do “escritor”, que é um autor cuja intenção e o valor ou “mérito” estético foram reconhecidos em um contexto social e histórico dado e que detém status oficializado (por exemplo, consta em um catálogo de editor) (TAUVERON, 2014, p. 89).

A autora esclarece que não se atém ao valor dos textos produzidos pelos alunos, pois não considera papel da escola validar das produções discentes pelos critérios valorativos do sistema literário, nem formar escritores profissionais. O que ela propõe é criar condições para o desenvolvimento das habilidades criativas dos alunos para que eles possam assumir projetos de escrita autorais e construir uma relação estética com os leitores, seus colegas de classe, pois o aluno se tornará um autor

Somente se ele souber, em suma, que seu texto, fruto de uma liberdade criativa, vai ser objeto de uma leitura semelhante àquela à qual se deve aos autores, uma leitura literária atenta à fabricação do texto, ao grão e ao jogo de palavras, aos espaços livres, à polissemia potencial, à novidade da descoberta narrativa, à emoção suscitada pela narração ou pelo comportamento de tal e tal personagem... e não somente aos erros de ortografia ou de sintaxe (TAUVERON, 2014, p. 90).

Em uma das entrevistas que realizei, a professora menciona uma situação semelhante entre os alunos, de troca espontânea de textos e do desejo de mostrar o que produziram, o que indica indício do desenvolvimento de uma postura autoral:

a turma de nono ano que eu tive era uma turma muito madura, então eles tinham um olhar muito legal. Eles faziam, eles gostam de competir, eles gostavam de competir uns com os outros, então “o meu ficou bom? Lê o seu!”, e eles compartilhavam, então eu achei muito bom... (APÊNDICE E).

Durante três anos, Tauveron desenvolveu uma pesquisa-ação, com trinta professores de ensino fundamental e médio, a partir de três tipos de dados: declarações de práticas de professores obtidas a partir de entrevistas orientadas por um questionário padrão; práticas efetivas de ensino de escrita; práticas efetivas de escrita e reescrita de texto de aluno, essa última realizada pelos professores. O resultado da pesquisa permitiu a elaboração de uma proposta didática que objetiva orientar o aluno a adotar a postura de autor no espaço da classe, construindo estratégias para tal, sumariadas abaixo:

a) encorajar o aluno que escreve a extrair de sua experiência de leitor de literatura uma tática de escrita e construir mentalmente uma figura de seu “leitor- modelo”;

b) assegurar-se que a intenção artística do aluno-autor vai responder a uma atenção estética da parte dos leitores reais (professores e pares);

d) explorar as falhas da relação artística;

e) ensinar a reproduzir comportamentos dos autores;

f) modificar a relação com a escrita e com o empréstimo que significa modificar as representações correntes que têm os alunos do processo de redação, da rasura, da “inspiração”, da “originalidade”, da “verdade literária”;

g) instituir uma caderneta de escritor e incitar a autoprescrição de instruções; h) ensinar as escolhas de escrita (TAUVERON, 2014, p. 89-92).

De acordo com Dalla-Bona (2012), a proposta pedagógica com o texto literário de Tauveron inclina-se a enfrentar o que a literatura traz de desafiador e desestabilizador, por meio de “dispositivos heurísticos” (p. 109) que destaquem “obscuridades, ambivalências e ambiguidades e tomada de posição e consciência” (p. 109). A escrita é um desses dispositivos, por possibilitar ao aluno a compreensão do texto literário e, ao professor, pelo contato com a escrita, melhor compreender como se dá essa leitura, para auxiliá-lo no processo de desenvolvimento como um leitor que interaja verdadeiramente com o texto e que, ao lado do prazer da descoberta da intriga, alcance outros prazeres, como o da percepção do texto como uma “obra de arte ou um terreno de jogo” (p. 113).

Dalla-Bona, assim como Tauveron, consideraleitura e escrita como indissociáveis, mas atenta para a especificidade de cada prática, “Leitura e escrita não são atividades simétricas e construir com as crianças uma postura de autor é uma operação mais complexa que construir uma postura de leitor” (DALLA-BONA, 2012, p. 113), pois, ser autor, nessa perspectiva, significa romper com a ideia da originalidade adâmica para ousar no diálogo com outros textos e autores, pois

A escrita literária é um lugar de integração de toda uma cultura dos livros. Escolher ajudar os alunos a adotar uma postura de autor é colocá-los em condições de perceber que a cópia ou o empréstimo não são atos repreensíveis, mas, ao contrário, que o produto narrativo de um autor é sempre uma forma de composição, o lugar de acumulação, digestão, regurgitação, composição, decomposição de obras anteriores, emprestadas, citadas, remodeladas, desviadas. Toda ficção é tirada dos sedimentos (estereótipos, scripts, cenas, motivos, personagens, trechos de frases...) deixados pelas histórias ouvidas, lidas, anteriormente imaginadas. Trata-se de encorajar os alunos a integrar suas experiências e sua memória de leitor (DALLA-BONA, 2012, p. 114).

Para desenvolver a proposta de escrita literária nos moldes apresentados por Tauveron (2014, p. 92), o professor precisa ter sólida formação literária, compreender a especificidade da literatura para desconstruir certas representações fortemente impregnadas na cultura literária, em grande parte, relacionadas à figura do autor e ao processo criativo. Assim, o professor precisará ensinar a seus alunos: que escrever se aprende escrevendo; que a escrita literária é resultado de trabalho de sucessivas escritas/reescritas; que a rasura, o erro para o escritor não representa o fracasso; a compreender a escrita como jogo intertextual e, por fim, ensinar aos

alunos conceitos como ficcionalidade e literariedade e, assim, sobre os tênues e complexos limites entre realidade e ficção.

A proposta de Tauveron (2014) enfrenta os problemas oriundos da prática pedagógica com a escrita literária, confrontando representações recorrentes do campo literário, apropriadas pelo professor em suas práticas de ensino. Os dados da pesquisa que ela realizou permitiram estabelecer os perfis dos professores e identificar os principais obstáculos ao ensino da escrita literária. Tauveron constatou que, dentre os conteúdos a serem ensinados, a escrita era considerada aquela de que dispunha menor “competência e segurança pessoal” (p. 97), pois suas práticas de escrita eram normalmente escolarizadas, surgindo, assim, o perfil do professor que se sentia despreparado para ensinar algo que não dominava. Possivelmente em decorrência disso, o professor não desenvolvia propostas de escrita mais complexas com seus alunos, pois o considerava também incapaz de realizar essa tarefa. Para Tauveron, tais dificuldades só serão resolvidas com formação, pois para que o professor consiga desenvolver com os alunos, a escrita literária

ele precisa mais do que uma simples sensibilidade literária: precisa de um conhecimento aprofundado da literatura e de seus gêneros, das teorias sobre a literatura, além de abertura do espírito, delicadeza e curiosidade para a realidade multiforme das obras dos escritores e dos alunos. Ensinar a escrever literatura consiste em levar o aluno, como parte de sua atividade de produção, a planejar, a fazer escolhas relevantes, a descobrir a diversidade das escolhas possíveis, a incorporar no seu texto as escolhas mais expressivas, considerando o contexto de produção, suas características e sua relevância, e a aceitar trabalhar sobre o variável, o movimento, o indeterminável e o complexo (TAUVERON apud DALLA-BONA, 2012, p. 121).

No instrumento de pesquisa utilizado para iniciar o diálogo com os professores, dentre os 26 participantes, em questão que lhes solicitava citar autores, textos, livros ou experiências literárias mais marcantes para a sua formação, apenas dois docentes referiram-se à escrita literária: uma professora citou a presença de um irmão escritor que teria incentivado seu interesse pela literatura e outra mencionou sua própria experiência como autora de literatura no ensino fundamental:

Infância e adolescência: romances de banca de revistas, contos infantis, revistas em quadrinha. Juventude e idade adulta: Drummond, Machado de Assis e tudo que despertasse interesse. Na sétima série escrevi um livro de poesias artesanal e emprestava para os amigos da sala que achavam que eu era uma escritora melhor do que a dos livros que a gente era obrigado a ler (APÊNDICE B).

O relato acima apresenta uma relação autor-leitor nos moldes em que a concebe Tauveron (2014). Ao que parece, a iniciativa partiu da aluna como uma atitude contra uma experiência

escolar de imposição de leituras que não lhe agradava nem aos colegas. Apenas dois docentes relacionaram a relevância do trabalho com a literatura no ensino fundamental ao desenvolvimento de uma postura autoral: a mesma professora que viveu experiência de escrita literária não menciona diretamente a escrita literária, mas fala da importância da literatura para “dar vazão à sensibilidade”. Menos da metade dos professores afirmaram desenvolver atividades de escrita literária com os alunos e, como os quadros abaixo, produzidos a partir dos dados colhidos, atestam, a maioria dos professores atribui à literatura a função de formar leitores:

Quadro 3 – Função formadora de sujeitos leitores

1. Os alunos sempre demonstram interesse por leitura, em especial os que não têm acesso a livros e internet, e o estímulo à leitura amplia seus conhecimentos em todas as áreas. 2. A literatura contribui para que o aluno encontre motivação para a leitura a partir de

uma visão estética e criadora de emoções.

3. É preciso formar alunos leitores que tenham sua visão de mundo ampliada pelos mais diversos gêneros literários. A leitura é a janela da alma.

4. Incentivar o hábito da leitura, contribuir para a formação de leitores críticos, ampliação do vocabulário.

5. Penso que nossos alunos chegam ao Fundamental II sem saberem ler, ou melhor, sem compreenderem o que estão lendo.

6. Quando você trabalha a literatura incentiva o aluno a ler, a estudar, a pesquisar. Sempre tento trabalhar com literatura, principalmente com as oitavas séries (contos de Machado de Assis, poesia e crônica).

7. Mais conhecimento, crescimento em relação à leitura. Contribui para melhorar a escrita e enriquecimento do vocabulário.

8. Por desenvolver nos alunos a compreensão da leitura, formando leitores críticos e contribuindo também com a escrita.

9. Literatura para mim é ler e aprender, apreciar, gostar, deliciar. E é o que os nossos alunos precisam (Desculpe a redundância).

Fonte: da autora.

Houve um professor que atribuiu à literatura a função de “Contribui para melhorar a escrita e enriquecimento do vocabulário”, função deslocada dos propósitos da escrita literária e apenas dois professores abordaram claramente a questão da autoria e da escrita literária:

Quadro 4 – Função formadora de sujeitos autores

1. Penso que dará voz aos alunos de exporem suas veias literárias, inicialmente. 2. Pois é o início de um trabalho de escrita literária.

Fonte: da autora

O que destaco na resposta de ambos os professores é o fato de estabelecerem uma relação clara entre o ensino de literatura e a escrita literária no ensino fundamental, no primeiro caso, dialogando com a ideia da escrita como expressão do talento que a experiência escolar poderia aflorar e no segundo caso, trazendo a perspectiva da escrita como “trabalho” que se iniciaria nesse segmento.

A resposta de número um foi dada por um dos quatro professores entrevistados. Em sua entrevista, o professor afirma ter participado da Olimpíada nas duas últimas edições com o gênero Crônica. Demostrou na entrevista grande empolgação com relação à criatividade da escrita dos alunos inscritos no concurso, apesar de reconhecer que a maioria deles tem muita dificuldade nesse quesito. Embora tenha declarado nunca ter escrito literatura, em seu discurso, valoriza a atividade de escrita dos alunos, o que pode estar relacionado ao fato de que ele é corretor de redação do ENEM, portanto, compreende a importância de desenvolvimentos da escrita e identifica essa virtude na Olimpíada: “Olha, eu primo muito pela escrita. Por primar pela escrita, é uma proposta de trabalho que eu considero muito, muito boa” (APÊNDICE E).

A proposta de Tauveron, a partir dos textos lidos, assemelha-se à proposta de Calkins (1989), com relação a alguns aspectos: a instituição do aluno como autor, a valorização do processo de escrita, dos esboços, da reescrita, os projetos de escrita e o uso da caderneta de autor. Entretanto, as propostas se distanciam pela ênfase que Tauveron dá aos conhecimentos referentes à literatura, não transigindo em relação aos aspectos que tornam o texto literário resistente e instigante. Para trabalhar com o ensino da escrita literária de acordo com essa abordagem, o professor precisará ter uma intervenção mais efetiva, acreditando no potencial do texto dos alunos, lendo-os como textos autorais e, assim colaborando para seu aperfeiçoamento, de acordo com os projetos dos alunos. Para Tauveron, o grande desafio para o professor é conseguir “reinvestir suas experiências de leitor em seu ensino de escrita” (2013, p. 100), ou seja, que ele consiga agenciar a sua biblioteca vivida, sua experiência de leitura e sensibilidade para, por meio da escrita literária, contribuir para a educação literária de seus alunos.

3 O POUSO: A ESCRITA LITERÁRIA NA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA

3.1 O TEXTO LITERÁRIO NA SALA DE AULA: APROPRIAÇÕES DA PROPOSTA DE