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CAPÍTULO III – O CONFLITO DAS INTERPRETAÇÕES

4. A profecia e a repressão no Brasil

O termo “missão profética” adotado pelos bispos progressistas, intencionalmente ou não, vai além de sua conotação teológica, adquirindo um sentido que se enquadra também nas teorias de Weber para quem ,

Frequentemente, a profecia assume uma conotação política e revolucionária, pois o profeta apela para uma ruptura com a ordem estabelecida. Não são neessariamente bem sucedidos como rebeldes, e podem ser perseguidos sem mesmo alcançar seus

objetivos, mas a sua missão é essencialmente revolucionária. (BRUNEAU, op.cit. p. 400)

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É interessante a dubiedade desta parte, afinal de qual poder se fala ? Do poder de Deus? Ou da tomada do poder por seu povo ?

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A tese de Ricoeur apontando que existe um mundo do texto e um mundo do leitor caberia bem neste caso.

Embora, desde o pré-concílio, bispos como D. Hélder Câmara defendessem a “profecia”, ou seja, o engajamento do episcopado e do clero em geral nas causas sociais, sua visão nem sempre foi bem compreendida, chegando mesmo a sofrer algum tipo de represália da parte de bispos mais conservadores e da própria Cúria Romana. Os acontecimentos do início dos anos 1960 no Brasil, acabaram por fomentar, na maioria dos bispos, cautela a respeito desse assunto, de modo que a própria colegialidade dos bispos acaba, de certa forma, sendo comprometida.

O apoio da CNBB ao Golpe de 1964 e a instauração da ditadura, serviram como um elemento de “ resfriamento” da colegialidade representada pela conferência: enquanto os desafios para a Igreja Latino-americana se avolumavam, a maioria dos bispos parecia acomodada, agindo somente no plano do discurso, sem maiores atitudes práticas para enfrentar, por exemplo, a questão da pobreza e da repressão militar aos opositores da ditadura, que eram taxados coletivamente de “comunistas” fossem eles comunistas de fato ou não.

As relações da Igreja brasileira com o Regime Militar, não demoraram, no entanto, a se tornarem tensas, assim, de aliada, a Igreja passou a ser um motivo de constantes preocupações, ao menos, aos Generais da chamada “linha dura”, ou seja, àqueles firmemente empenhados em acabar com qualquer agente comunista que estivesse operando no Brasil, ou mesmo seus colaboradores e simpatizantes, usando de quaisquer meios para isso. Para conseguir tal intento, além dos aparatos oficiais de repressão como o DOI – CODI ( Destacamento de operações de informações – Centro de operações de defesa interna ) , o CENIMAR( Centro de inteligência da marinha ), a Polícia Federal, dentre outros, havia ainda os colaboradores extra-oficiais como o C.C.C. ( Comando de Caça aos Comunistas ) e os esquadrões da morte. Estes quase sempre formados por militares que agiam por conta própria contra os opositores do regime.

Para Bruneau :

A combinação dos efeitos do Concílio com os efeitos do golpe criou alguns problemas sérios para a Igreja no Brasil. Porém essa

combinação das duas séries de acontecimentos não se faz por adição, mas por multiplicação, por causa da contradição patente entre os resultados do Concílio e os efeitos óbvios do golpe sobre a Igreja, ocorrendo ambos ao mesmo tempo. Enquanto a Igreja Universal dava um passo à frente em declarações e doutrina, a Igreja no Brasil recuava: enquanto o leigo era promovido em Roma, era suprimido no Brasil; enquanto as conferências episcopais recebiam jurisdição em Roma, no Brasil a CNBB era arrasada; enquanto os progressistas, em muitos países eram animados pelo Concílio a prosseguir avante, no Brasil eram isolados e atacados. Ou, em outras palavras, enquanto a Igreja Universal tentava atualizar a sua influência através do Concílio, no Brasil o mecanismo decisivo para a atualização da influência era eliminado. ( BRUNEAU, 1974, p. 233)

Nesse contexto totalitário exacerbado, não demorou para que a Igreja se tornasse a única instituição com força para dar “voz para os que não têm voz”, como defensora dos excluídos. Para isso, contribuíram uma série de acontecimentos que levaram a maioria dos bispos a saírem da inércia e tomarem uma posição em defesa da Igreja e dos fiéis.

A ditadura militar que, num primeiro momento, deu uma certa imunidade ao clero, com o passar do tempo, passou a acusar os bispos de padres progressistas, de simpatizantes do comunismo ou, até mesmo, de comunistas. Essa nova postura dos militares foi decorrente da intolerância a qualquer crítica ao regime - críticas que se avolumavam a olhos vistos, quer por conta da repressão, quer por conta da política econômica que, por um lado, gerava resultado positivo em termos de crescimento global da economia do país; por outro, gerava uma exclusão social descomedida.

Este embate entre os interesses dos militares e os ideais dos bispos progressistas vai se tornando cada vez mais forte até que membros do governo tornam pública suas críticas à Igreja progressista, em tom de ameaça:

O porta voz da “linha dura”do governo no Congresso, Clóvis Stenzel (ARENA), declarou: “Certos padres – verdade que minoria, mas expressiva pela publicidade que lhe dá – querem levar os fiéis do Brasil a condenar os governos revolucionários e subverter a ordem”. E estava pronto para interpretar a função da Igreja na sociedade e julgar o clero: “Padres mal orientados chegaram a esquecer que não é a missão da Igreja solucionar o problema social. Não deve o padre

querer implantar o reino de Deus sobre a Terra, poiso seu Reino não é deste mundo”. E, havia apenas uma semana, a declaração da Comissão Central (da CNBB) tinha observado que o Reino começava neste mundo e que, portanto, a Igreja tinha que se preocupar com os problemas sociais. ( BRUNEAU, op.cit. p.344 )

Apesar da truculência das declarações de Stenzel, o próprio Presidente Costa e Silva, tentou, alguns dias após este incidente, acalmar os ânimos dos membros do governo e, através de uma série de declarações à imprensa, disse que não havia nenhum conflito entre a Igreja e o governo.

As declarações do presidente não surtiram, todavia, o efeito desejado; muito pelo contrário, acabaram demonstrando que ele próprio não tinha controle sobre a linha-dura do governo. Bruneau cita uma série de incidentes inusitados76

que demonstram uma nova e difícil fase nas relações Estado-Igreja :

- 04 de maio de 1968 : José Solero Filho, Vice-presidente nacional do Movimento Familiar Cristão ( MFC) é detido pela polícia militar.

- 08 de maio de 1968 : D. Edmilson, bispo auxiliar de São Luis do Maranhão indagou aos militares que combateram na II Guerra Mundial se defendiam em seu país a liberdade pela qual lutaram na Itália.

- Julho de 1968 : A cópia de um texto preliminar, escrito pelo Pe. José Comblin para ser apresentado no CELAM de Medellín, foi obtida por um inimigo político de D. Hélder Câmara, o vereador Wanderkolk Wanderlei que o publicou por todo o país acusando o ITER, o Pe. Comblin e D. Hélder de subversão.

- Julho de 1968 : O padre operário francês, Pedro Wauthier é expulso do Brasil por ter apoiado os trabalhadores grevistas de uma fábrica de Osasco.

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Estes são apenas alguns fatos apontados por Bruneau a partir de documentos que conseguiu levantar na época, mas, o mesmo adverte que existiram outros não documentados e encobertos pelos órgãos de repressão.

- Novembro de 1968 : D. Fragoso é acusado pelo Secretário de Segurança da Guanabara de ter ligações com o terrorista Carlos Marighela.

- Maio de 1970 : D. Hélder, falando em uma conferência em Paris, denuncia as torturas praticadas pelo regime militar, contra os suspeitos de subversão.

- Fins de 1970 : Dois sacerdotes são presos em São Luis do Maranhão acusados de subverter os fiéis e instigá-los a agir contra as autoridades.

- Meados de 1970 a meados de 1971 : Campanha nacional de difamação contra D. Hélder.

- Início de 1971 : Prisão de um padre e sua assistente social em São Paulo , ambos acusados de subversão .

- Ao longo de 1971 : Dom Waldir, bispo de Volta Redonda e seus colaboradores são perseguidos e acusados de subversão.

- Março de 1972 : O Pe. Comblin é impedido de desembarcar no Brasil após uma viagem à Bélgica.

Essa série de incidentes, leva Bruneau a classificar o conflito entre a Igreja e o Estado como um “fato social” e não mais um simples processo. A Igreja, na sua totalidade, passa a representar a única resistência possível contra o Regime Militar - mesmo bispos tidos como conservadores, como D. Vicente Scherer, passam a defender a autonomia da Igreja e sua missão em defesa dos pobres e excluídos.

De fato, era difícil para os militares, num contexto de postura anticomunista exacerbada não interpretarem a missão social da Igreja como subversão. Mesmo a doutrina social da Igreja, lida num enfoque socialista-cristão, poderia ser interpretada como contrária à Doutrina de Segurança Nacional: à medida que defendia para todos o direitos a uma vida digna, exaltava os valores humanos e condenava o lucro exacerbado do sistema capitalista.

A Igreja, apesar de viver um regime de repressão, não aceitava ter sua independência cerceada e a CNBB, em 1968 declarava, ainda, que cabia somente à própria Igreja julgar suas ações e, em 1969, ressaltava que era da

responsabilidades dos bispos o controle da instituição, apontando que a doutrina da Igreja incluía a preocupação pelo engajamento social. ( BRUNEAU, op.cit. p.393, passim)

ROMANO (1979 ) concorda que houve um engajamento, por parte dos bispos, nas questões sociais e, mesmo, contra as estruturas econômicas vigentes, assim, declara:

Antes e depois de 1964, a atitude dos bispos é de busca da salvação popular. O desenvolvimento nacional autônomo é compreendido como meio em vista da realização deste fim. Na rejeição do novo modelo econômico, ligado ao imperialismo, operam dois tipos particulares de razão: a primeira, de ordem moral e teológica, constata que a maioria do povo vive na miséria e sofre injustiças sociais; a segunda, de ordem científica, enunciaria os fatores objetivos dessa situação. A partir desses elementos, afirmam a necessidade de transformar a sociedade contemporânea,o que por sua vez, seria sinal eficaz “da libertação dos oprimidos”. Nesse esquema de referência, a pedra de toque para julgar as potencialidades de salvação popular carregadas por um modelo econômico é a justiça no sentido teológico a efetivação do Bem Comum. Assim, ao denunciarem a ordem vigente como favorável aos poucos privilegiados, estão pronunciando um juízo que sintetiza razões teológicas, éticas científicas. Em suma, a justiça enquanto categoria de Direito se articula à idéia de libertação popular concebida como redenção das massas dominadas por uma minoria. Este argumento e o diagnóstico científico da conjuntura nacional coincidem: os elementos de opressão e injustiça presentes têm “seu fundamento nas relações capitalistas de produção que dão obrigatoriamente origem a uma sociedade de classes, marcada pela discriminação e injustiça”.

Considerando o contexto de perseguições aos membros da Igreja e o confronto cada vez mais aberto entre o Estado e os bispos, podemos retomar a visão de BRUNEAU (1974) sobre a missão profética da Igreja, o autor apresenta um quadro geral para a Igreja do Brasil embora admita que as especificidades são muitas e que existam várias visões sobre a sua missão. Para ele:

1º Os profetas sustentam que a sociedade deve ser adequadamente ordenada para que os imperativos religiosos de Deus possam ser executados. Já mostrei que esse é a idéia por trás da pré-influência; a Igreja teve que assumir um papel na mudança da sociedade porque esta era tão injusta e opressiva que uma mensagem puramente religiosa ou irrealista.

2º Embora subjetivamente não tomem partido político, os profetas objetivamente agem de maneira política.

3º Para os profetas, o conteúdo religioso é mais importante do que as formas de manifestação externa.

4º Os profetas exprimem as necessidades das massas oprimidas e economicamente exploradas. ( BRUNEAU, Op.cit. p. 403-406, passim )

É fato que, num primeiro momento, a “missão profética” da Igreja teve dificuldades em se difundir, seja pelo comodismo dos religiosos, seja pela desconfiança de como as coisas se desdobrariam num regime de exceção. A partir de 1968, com o agravamento das condições sociais das classes menos favorecidas, provocada pela política econômica dos militares, somando-se à repressão cada vez mais constante aos membros do clero e seus colaboradores leigos, SERBIN, 2001, assim leciona:

Uma contagem parcial feita pela Igreja entre 1968 e 1978 documentou a prisão de mais de uma centena de padres, sete mortes e numerosos casos de tortura, expulsão de estrangeiros, invasão de edifícios, ameaças, indiciamentos, seqüestros, infiltração de agentes do governo, censura, proibição de missas e encontros, além de vários documentos e publicações falsificados e forjados. Trinta bispos foram vítimas da repressão. Padres enfrentaram processos por causa de seus sermões e críticas ao governo, alegadas participações em organizações subversivas, por darem guarida a fugitivos, por defenderem os direitos humanos, por seu trabalho pastoral em movimentos populares e outras atividades. Além disso, a Igreja sofreu constantes ataques verbais de autoridades do regime, que iam desde reclamações contra suas atividades políticas até acusações de imoralidade sexual. “Comunista” era um dos adjetivos usados com mais freqüência. (SERBIN,Op.Cit. p. 109)

Apesar da repressão, das perseguições e do assédio moral, a Igreja acabou unindo-se em prol da própria sobrevivência institucional. Assim, de certa forma, as “amarras” que impediam um engajamento maior acabaram sendo rompidas.

Havia, contudo, exceções ao enfrentamento do Regime Militar. As instituições católicas como: escolas, hospitais, orfanatos e asilos. Como, de certa forma, eram fruto e continuidade da Igreja da neocristandade e, por isso, dependiam do subsídio

público e até mesmo do apoio das elites para se manterem economicamente, obrigavam-se a permanecer na neutralidade.

No caso de D. Hélder, a repressão e a campanha difamatória contra ele acabaram esvaziando, em nível nacional, seu papel de porta-voz daqueles que sofriam com os abusos da ditadura. À medida que internamente ficava cada vez mais difícil para ele se manifestar, após denúncias das torturas praticadas pelo Regime Militar, em sua conferência em Paris, recebe, entretanto, convites de inúmeras universidades europeias para expor suas ideias, sendo, ainda, indicado ao Prêmio Nobel da Paz por quatro vezes consecutivas - de 1970 a 1973.

Figura 20 - D. Hélder discursando em Paris denuncia a tortura no Brasil - Fonte : GÁSPARI, 2002.

Enquanto D. Hélder tratava de denunciar no exterior os crimes da ditadura, em São Paulo, ergue-se uma nova voz em defesa dos direitos humanos. Tratava-se

do recém nomeado77 arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns. Segundo MAINWARING, 2004:

Dom Paulo era um homem cauteloso, não era conhecido por ter opiniões radicais, chefe da arquidiocese mais populosa do mundo e líder religioso da maior e mais desenvolvida cidade do país. Suas denúncias tornaram pública a prática generalizada de tortura e ele rapidamente conquistou o respeito dos outros bispos. Em fevereiro de 1971, a CNBB enviou uma carta a Dom Paulo dando-lhe apoio aberto a suas ações . Dois meses depois ele viajou a Roma, onde Paulo VI deu-lhe apoio e expressou preocupação com a tortura no

Brasil. Em 1973, o papa nomeou Dom Paulo cardeal. ( MAINWARING, op.cit.p. 125)

A liderança de D. Paulo foi essencial para encorajar os bispos de São Paulo a denunciarem os abusos da ditadura e a protestar contra as mortes e torturas, algumas das quais, por conta desses protestos, tornaram-se conhecidas nacionalmente, sendo lembradas até hoje, como a do estudante Alexandre Vanucchi Leme (1973), do jornalista Wladimir Herzog (1975) e do metalúrgico Manuel Fiel Filho ( 1976 ).