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CAPÍTULO II – O CONCÍLIO VATICANO

2. O anúncio do Concílio : modernidade x tradição

Ao contrário do que oficialmente se propugna, neste ano da fé25

, o Concílio, desde seu anúncio, estava longe de ser visto como uma decisão, por inspiração divina, do papa João XXIII. Para boa parte da Igreja, o anúncio do Concílio criou expectativas positivas. Para a Cúria romana era, todavia, quase uma traição, pois representava, antes de mais nada, o desejo de alguns cardeais, de que a política externa e a diplomacia do Vaticano aplacassem o clima de hostilidade com os países socialistas, próprio do pontificado de Pio XII e, assim, tornasse um pouco mais fácil a vida dos católicos residentes naqueles países. Talvez houvesse, por parte desse grupo, a percepção de que, num contexto de guerra fria onde se testavam bombas nucleares a céu aberto para intimidar o adversário, onde cada uma das superpotências poderia iniciar uma hecatombe mundial, as questões teológicas, de per si , não serviriam para muita coisa num mundo que estava à beira de um holocausto nuclear. Alberigo ( 2006 ) nos coloca que :

Objetivamente, todavia, o confronto entre os dois blocos estava à beira do conflito: da guerra da Coréia ( 1950) ao bloqueio de Berlim, com a construção do muro ( 1961), à sucessiva crise atômica de Cuba ( 1962), a situação do mundo parecia enrijecida num lugar sem saída. É verdade, porém, que o jovem presidente eleito em novembro de 1960 para dirigir os EUA – John F. Kennedy, católico – suscitava entusiasmo e abria perspectivas de renovação, mas é difícil saber sob que medida isso teria estado presente na decisão do velho papa. ( op.cit.p.19).

Para o teólogo Hans Küng, o “ato historicamente mais significativo de João XXIII foi o anúncio do Concílio Vaticano II”. Küng coloca que, embora o Concílio ainda estivesse em sua fase inicial, o papa João XXIII foi “corrigindo” Pio XII em quase todos os “pontos decisivos” conforme expõe:

(...) sua encíclica pioneira sobre exegese bíblica católica ( Divino afflante Spiritu, 1943): reforma da liturgia, ecumenismo,

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O ano da fé foi proclamado pelo papa Bento XVI na Carta Apostólica Porta Fidei, iniciou-se em 11 de outubro de 2012 no 50º aniversário da abertura do Concílio Vaticano II.

anticomunismo, liberdade de religião, o “mundo moderno”e, acima de tudo, a atitude em relação ao judaísmo. Encorajados pelo novo papa, finalmente os bispos mais uma vez exibiam autoconfiança e sentiam que eram um colégio com sua própria autoridade “apostólica”. (KÜNG, 2002, p.226).

Sabia-se que os Cardeais Ruffini26

e Ottaviani27

haviam conversado com Pio XII a respeito da necessidade de se retomar o Concílio Vaticano I, porém o conservador Pio XII temia perder o controle da situação diante das “novas idéias” que assolavam o clero e parte do colégio cardinalício. Os mesmos Ruffini e Ottaviani teriam garantido apoio a Roncalli durante o conclave, caso o mesmo, após eleito papa, convocasse o Concílio. Houve, no entanto, por parte de João XXII a postura firme em assumir sozinho o ônus por sua decisão.

De sua parte o papa João XXIII não tinha deixado dúvidas sobre o caráter definitivo de sua decisão de reunir um concílio; até demonstrado plena consciência da natureza excepcional do próprio ato, um ato concebido como exercício do primado papal, com a exclusão do concurso de outros. Não é por acaso que o papa falou de uma “resolução decidida” e mais tarde anotou no “diário da alma” que “ o concílio ecumênico é totalmente iniciativa do papa” ( ALBERIGO, op.cit. p.18-19).

Para os tradicionalistas, o concílio teria, no entanto, significado o triunfo dos “erros da modernidade” e, acima de tudo, uma “aliança com os comunistas”. Dom Lourenço Freischman28

vai além, acusando o próprio Montini de sustentar “aliança” com os comunistas, conforme discorre:

(...) foi descoberto no Vaticano, que um Cardeal da Cúria, Giovanni Baptista Montini, mantinha relações amigáveis com os comunistas, apesar da expressa proibição do papa Pio XII. Como é conhecido,

26

O cardeal Ruffini, Arcebisbo de Palermo, era ferrenho defensor do tradicionalismo católico e foi partidário do Coetus Internationalis Patrum .

27

Cardeal Ottaviani era secretário do Santo Ofício e juntamente com Ruffini, ferrenho defensor do tradicionalismo, ambos contribuíram para a decisão de João XXIII convocar o Concílio porém, esperavam que a Cúria Romana pudesse deter qualquer tentativa de mudança nos rumos da Igreja, o que efetivamente, não conseguiu.

28

Dom Lourenço é um monge Beneditino tradicionalista ordenado por Mons. Marcel Lefevre em 1985 , filho de Júlio Freischman( 1928-2005), que foi presidente da Permanência entre 1969 a 2003 e principal colaborador de Gustavo Corção.

Monsenhor Montini foi então afastado de Roma, sendo indicado como arcebispo de Milão, o que lhe abriria, mais tarde, as portas da Cátedra de Pedro.( Wiltgen, 2007, p.11).

Historiadores como Mattei (2011), indagam se o Concílio não teria atuado como verdadeiros “Estados Gerais da Igreja”, a exemplo do que ocorreu na Revolução Francesa quando ruiu o absolutismo monárquico na França. Tal analogia se deve ao fato de que o Concílio acabou com a supremacia papal, sendo organizado de forma colegiada em que pese as manobras da cúria romana em mantê-lo sob controle.

O anúncio do concílio foi acolhido ao mesmo tempo com surpresa e preocupação por parte dos presentes.

Sabe-se que o quando o papa João XXIII anunciou aos Cardeais reunidos na Basílica de São Paulo extra-muros que tivera uma inspiração súbita do Espírito Santo para que convocasse o Concílio, seguiu-se um silêncio total: eles sabiam, de fato, que os dois mesmos prelados que estiveram com Pio XII em 1948 conversaram com o Cardeal Roncalli ( futuro João XXIII) durante o conclave que o

elegeu, propondo que, se fosse eleito, convocasse o concílio. ( WILTGEN, op.cit. p. 13)

Para Alberigo (1996), pela ausência de atas desse consistório, há dificuldade documental em comprovar a perplexidade dos Cardeais presentes ao anúncio, porém, segundo ele próprio declara: dois anos mais tarde, o papa observaria que o anúncio foi acolhido pelos cardeais “com impressionante e devoto silêncio”.

Embora João XXIII tivesse solicitado aos bispos que lhe enviassem cartas sobre suas impressões a respeito do Concílio, só poucos responderam, outros o teriam feito de maneira fria e sem emoção, o que para Beozzo (2005), se explicaria pela frustração da expectativa da maioria que julgava ser João XXIII um papa de transição e nada mais .

No Brasil não foi diferente, apenas o Cardeal Dom Jaime Câmara respondeu ao Papa e, ainda assim, somente cinco semanas depois do anúncio.

As análises de ambos os autores mostram que, além das questões de política interna da Igreja, principalmente na Cúria romana, a perplexidade por parte do episcopado predominou em todo o mundo: a surpresa se estendia desde a idade avançada do Papa até a percepção dele próprio29 de que seria um papa de transição. Existia, ainda, a falta de experiência em se lidar com o anúncio, uma vez que concílios não são eventos rotineiros da Igreja, ainda mais naquele panorama de crise e dificuldades em lidar com o mundo moderno.

Conforme a análise dos Vota30 do episcopado brasileiro, Beozzo (2005)

coloca que em 1959, 133 dos 175 bispos mandaram seus Vota para Roma, uma participação de 76%. Até o momento não foram realizados, nestes documentos, estudos que permitam uma análise das inquietações colocadas pelo episcopado brasileiro, porém, a nosso ver, demonstram que, passada a fase de “surpresa” pelo o anúncio do concílio, a necessidade de participar do processo foi se colocando como indispensável, fosse pelo desejo de mudança, fosse para evitá-la.

Por outro lado, “no Brasil, nenhuma instituição de ensino superior chegou a enviar o seu votum para Roma embora, no índice dos que o enviaram, conste o nome da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo” ( Beozzo, op.cit., p. 80).

Tais fatos demonstram a ausência de um movimento teológico forte que pudesse se colocar como alternativa no Concílio, por isso, talvez, tenham predominado apenas as impressões individuais.