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Jornalista Beletrista

1- A projeção de um jornalista legalista

Uma curta narrativa sobre a Coluna Prestes

Cinco meses depois da interiorização da Coluna Prestes na Bolívia, mais exatamente em 17/07/1927, o jornal carioca O Paiz publicou um texto assinado pelo recém colaborador João de Minas que abordava um dos mais sangrentos combates entre as forças legalistas contra a Coluna: a batalha na fazenda Zeca Lopes, em Goiás, em 29 e 30 de junho de 1925.

Uma noite de terna beleza. A lua nova subia, ao fundo, na linha negra de uma floresta. O céu, muito puro, parecia feito de água do mar. E a lua parecia uma flor imortal dos abismos. O chevrolet rolava agora no começo de um chapadão, que já se nos mostrava sob uma nevoa sonhadora, dando-nos a impressão de que a terra subia, flutuava, se dissolvia em luz pálida. O silencio punha em tudo uma castidade, uma virgindade eloquente. Íamos eu e o dr. Freire de Carvalho, notável medico baiano, da cidade de Jataí, no sudoeste goiano, para a fazenda do coronel Zéca Lopes, nesse município, e quase na divisa do município de Mineiros.

A fazenda, uma rica propriedade de 20.000 alqueires, fica a 15 léguas da cidade, que é um encanto sob vários aspetos. Principalmente quanto ao consolador numero de moças lindas, de fina educação, muito sociáveis, apreciando devidamente a dança. Chegamos á fazenda ás 11 horas. Tudo dormia. Isso não impediu, todavia, que uma hora depois o fazendeiro, um grande chefe de todo o sudoeste, mas homem bom e ilustre, nos oferecesse uma magnifica ceia. Seria meia noite quando evocou o dr. Freire uma forte pagina trágica da fazenda. Foi um combate terrível, entre 70 soldados mineiros, sob o comando de Klinger, e um destacamento de Prestes, quando este, em Junho de 1925, voltando de Mato Grosso, por Coxim, entrou em Goiás, por Mineiros, que foi devidamente saqueado.

O combate foi a uma légua da casa da fazenda. Um capitão revoltoso, ao assaltar um caminhão, recebeu uma descarga. Desceu do caminhão, e ainda andou até o rego d'água que leva á cozinha da fazenda. Ali os seus companheiros viram que ele vinha segurando um rolo de intestinos á mostra. Os intestinos estavam sujos de lama, o que mostra que o herói mais de uma vez os apanhou no chão, tendo os ditos escorregado, naturalmente. O capitão ai se agachou, e morreu em silencio. Os seus companheiros, á pressa, o enterraram na lama do rego, envolto num capote. Por minutos ainda a água do rego desceu, suja de sangue, excrementos e heroísmo... Aquela água ia, na coxinha da fazenda, lavar os pratos para o jantar da gente de Klinger, vencedora no combate. O coronel Zéca Lopes, que se achava na cidade, quando voltou mandou desenterrar o capitão, cuidadoso da pureza da sua água Enterrou-o atrás da fazenda. Vi essa sepultura. O dr. Freire olhou-a, muito sério. O capim começava a cobri-la, um capim cheio e rico. Por ali, numa área de uma légua quadrada, uns oitenta combatentes dormiam para sempre. Aquilo era um cemitério, com a vantagem de ser também uma ótima invernada.

Nessa noite, após a ceia, ao nos dirigirmos para os nossos quartos, o coronel Zéca Lopes nos informou que encontrara então, ao chegar em casa, após os trágicos acontecimentos, uma mão decepada no alpendre. A mão tinha uma aliança de casamento, e por ela, pela data, se podia verificar que o dono da mão ainda estaria na lua de mel. A mão não apodrecera. Estava murcha, triste, espiritualizada numa

saudade, com qualquer coisa de amor e de ilusão. O coronel Zéca Lopes mandou enterrar aquele despojo, onde reluzia o simbolo do amor conjugal.

- A mão depois apodreceu, com certeza – assegurou o ilustre medico baiano O coronel Zéca Lopes sorriu, como que duvidando. Eu fiquei pensativo, não sei porque. Um peão, duma sombra, perguntou, soturno:

- E será que o anel de casamento da mão também apodrece?...

Ninguém respondeu ao peão. Como nós não o viramos, mas só lhe ouvíramos a voz, eu, momentos depois, quando o coronel Zéca Lopes se retirou, procurei o peão no ponto de onde, num canto da sala, partira a sua voz. Ali não estava ninguém. Não havia ninguém na sala. Chamei a atenção do dr. Freire para o fato, que ele por sua vez achou estranho. No dia seguinte, cedo, interroguei a todos da fazenda. Ninguém fizera a pergunta dolorosa – se o simbolo do amor conjugal também apodreceria... Creio que foi o espirito do morto, dono da mão decepada, que nos fez aquela pergunta. O dr. Freire, homem de vasta ilustração, admite o fendmeno, mas sem o discutir...94

Apesar de comportar um evento sobrenatural, cuja hesitação avizinha-se do conto fantástico, não é difícil reconhecer os traços de uma crônica95. Um texto leve, superficial,

comentado, com o narrador em primeira pessoa implicado em contar a partir de sua perspectiva um fato amplamente noticiado pela imprensa. A prioridade não é contar objetivamente um acontecimento, porém transformá-lo em episódio de uma história mais ampla, um caso intrigante envolvendo o narrador cuja presença une as partes do enredo.

Próximas do fait divers que desde fins do XIX aparecem na imprensa brasileira, as reportagens apresentavam muitas dessas características, a despeito da sua intencionalidade jornalística: diluição do assunto numa história, com recursos estéticos e linguísticos da ficção popular visando mobilizar as emoções do leitor, normalmente implicando o jornalista como narrador e personagem, que se torna, pelo caráter testemunhal, fiador da veracidade do texto. Antes da difusão, nos anos 1950, do modelo norte-americano de veiculação de notícias e reportagens, que gera efeitos de objetividade a partir de uma economia na narrativa e na adjetivação, a linguagem jornalística era atravessada por elementos próprios da literatura, em especial da narrativa folhetinesca. Eram mais voltados a atuar sobre as emoções dos leitores, através da dramatização do fato narrado, que propriamente veicular uma imagem de informação isenta de valores.

Inovação de João do Rio na imprensa brasileira do início do XX, o repórter moderno passa a colher in-loco aquilo que relata. Abordava os submundos urbanos das metrópoles em modernização (prostíbulos, prisões, fábricas, cortiços etc.), os vícios e futilidades das camadas altas (a cocaína, os amores abstrusos, festas, os hábitos chic, etc.), assim como as peripécias

94 Texto disponível no apêndice. 95

que passava para colher informações. Foi sob esse padrão ficcionalizante que os mais famosos jornalistas do primeiro período republicano no Rio de Janeiro e São Paulo fizeram sucesso96,

como, entre outros, João do Rio de A Alma Encantadora das Ruas (1908) e As Religiões do

Rio (1905), Benjamin Costallat de Mistérios do Rio (1924), Sílvio Floreal em A Ronda da Meia Noite (1925), José do Patrocínio Filho em A Sinistra Aventura (1923) e Mundo, Diabo e Carne (1923).

O mesmo ocorre no trecho acima. A especificidade de João de Minas não repousa na forma de estruturar as reportagens ou abordar os temas, mas no espaço representado – não a metrópole, mas o sertão de Goiás. Como no texto daqueles jornalistas, as informações sobre o narrador são extremamente escassas. Apesar de participante da história, é indeterminado: não sabemos quem é, de onde veio, para onde vai, nem o que foi fazer na fazenda junto do médico Freire. Quando muito, a sugestão de que está em viagem, não se sabendo origem nem destino. Fora do texto, apenas a assinatura, João de Minas. A sua movimentação anônima pelos espaços é desinteressada, errática, construindo para si a imagem de um flaneur do sertão.

A hipótese de que se trata de uma reportagem é referendada pela editoração do texto na página de jornal, publicado em duas colunas de um grande rodapé na primeira página (um lugar de destaque), conforme a figura abaixo. Apesar da afirmação, no subtítulo, da veracidade de “fatos absolutamente verdadeiros”, já no título garrafal percebemos o lance de efeito, justapondo três palavras de forte apelo, como "tragédia", "horripilante" e "revolução". Revolução, neste caso, é sinônimo de Coluna Prestes.

Curiosamente, a composição da página faz uma oposição entre o rodapé sobre as “Tragédias Horripilantes da Revolução” e a parte central e superior da página. O maior espaço é destinado a notícias sobre a Europa, com destaque a um artigo literário sobre Mallarmé, seguido do papel da delegação britânica na Conferência Naval de Genebra, ambos reforçando a filiação civilizacional do Brasil. Além disso, há duas notícias sobre o Partido Republicano Paulista nas esferas federal e estadual, com a foto central tematizando a missa de posse do governador Júlio Prestes realizada no senado desse estado, e o início do artigo sobre o plano de estabilização de Washington Luís, escrito pelo redator-chefe do jornal Lindolfo Collor. Abaixo de toda essa representação da ordem, duas narrativas chocantes sobre a Coluna Prestes. A primeira trata do assassinato de três homens em uma fazenda quando Estado Maior

96 Sobre as relações entre jornalismo e literatura nos escritores-jornalistas da Velha República, ver COSTA,

entra em Rio Bonito, contada como se fosse um depoimento de um morador a João de Minas, que dizia pernoitar em uma casa à beira da estrada, na sua passagem pelo município. A segunda narrativa foi reproduzida acima.

O texto transcrito é composto de três partes relativamente distintas, mas interligadas pelo fio da narrativa: a chegada dos dois personagens à fazenda (§ 1o até metade do 2o), o combate das tropas de Klinger contra o destacamento da Coluna Prestes (fim do § 2o e § 3o), e a irrupção dos eventos sobrenaturais (§ 4o a § 7o).

O autor escolhe entrar na narrativa apresentando fragmentos da paisagem: objetos do cenário como a lua nova, o céu, a floresta, o chapadão, são valorizados pela emoção causada no narrador, produzida pelo clima feérico no qual a percepção racionalizante se dissolve numa alucinação, como se transportasse o observador a outra dimensão. O efeito é conseguido pela combinação de verbos que denotam impressão subjetiva ("parecia", "se nos mostrava") com temas naturais carregados de carga metafórica pela justaposição de imagens. Através destas, a silenciosa paisagem, sacralizada numa “castidade” e numa “virgindade eloquente”, é banhada de um sublime dinamismo: "o céu, muito puro, parecia feito de água do mar", “a lua parecia uma flor imortal dos abismos”, “a terra subia, flutuava, se dissolvia em luz pálida”. A chave é claramente romântica, pois a paisagem é associada a uma natureza grandiosa, intemporal, com efeitos estéticos arrebatadores, numa descrição surrealista onde os objetos se transformam diante dos olhos do extasiado espectador.

O mundo dos sonhos evocado nas primeiras linhas é suspenso quando são introduzidos os elementos humanos e sociais, levando a uma substituição das referencias naturais pelas geográficas: a cidade de Jataí, sudoeste goiano, fazenda Zeca Lopes, divisa com Mineiros, 15 léguas. O que marca a representação humana desse lugar é a abundância que gira em torno do fazendeiro: o caráter (sua generosidade, bondade e ilustração), o tamanho das suas propriedades (20.000 alqueires), a extensão de seu poder político por todo o sudoeste goiano, a magnífica ceia que oferece, as moças da cidade de Jataí (consolador número, beleza, fina educação, sociabilidade, talento para dança). Sintetizada pela expressão “tudo dormia”, o silêncio noturno cria um paralelismo entre a natureza e a sociedade descritas, sugerindo um mesmo princípio regente de ambas.

Este universo fechado é perturbado a primeira vez pela presença das duas personagens viajantes, que trazem a marca da modernidade. O médico baiano representa o pensamento ilustrado, formado em medicina no litoral, com o raciocínio marcado pelas modernas ideias materialistas e cientificistas, que vão orientar sua percepção do fato sobrenatural mais adiante. Além disso, dr. Freire e o narrador iniciam a narrativa dirigindo-se à fazenda em um

Nesta primeira parte, os elementos modernos integram sem conflitos o mundo idílico antes descrito. A despeito de possuir uma visão de mundo diferente daquela dos coronéis, o dr. Freire parecia ter trânsito livre em suas fazendas, visto que era cicerone do narrador. Ao chegarem na fazenda, apesar da hora tardia, são acolhidos com uma magnífica ceia. Essa integração é expressa nas referencias temporais: a chegada na fazenda é marcada pelo ciclo natural (noite) e pelo ciclo “homogêneo e vazio” do relógio (11 horas). Ao contrário da referência geográfica precisa, não há referência cronológica ou histórica.

A harmonia natural e social da fazenda fora rompida com a invasão do destacamento da Coluna Prestes, contada pelo médico. O assunto desta segunda parte da narrativa é apresentado com referências cronológicas e geográficas precisas (data, quantidade de soldados, trajeto da Coluna), que situam o leitor no palco dos acontecimentos. A morte do capitão é tomada como metonímia da luta, como indica a área do enterro coletivo e a estrutura da narrativa dessa parte: chegada do destacamento, assalto do capitão a um caminhão e seu alvejamento, agonia, morte e enterro pelos companheiros, novo enterro pelo coronel.

O relato do combate não é feito num tom informativo, mas assemelha-se aos fait

divers da imprensa. Com um grande poder de síntese, a evocação da "forte pagina trágica da

fazenda" não é contada tragicamente, pois a atmosfera séria e macabra evocada pela morte é, logo em seguida, suspensa por elementos que a dissolvem no cômico. A morte do capitão é contada em tom grotesco (“segurando um rolo de intestinos á mostra. Os intestinos estavam sujos de lama, o que mostra que o herói mais de uma vez os apanhou no chão, tendo os ditos escorregado”), e, ao mesmo tempo, com tons irônicos, como no trecho “por minutos ainda a água do rego desceu, suja de sangue, excrementos e heroísmo...” ou o cemitério que também era ótima "invernada", pasto para gado. A impressão é que o narrador ri ao pé da cova dos revolucionários, enquanto ironicamente conta os detalhes sórdidos de sua morte.

O procedimento cria uma distância que impede a simpatia entre a morte dos combatentes e o leitor, já esboçada com o termo "revoltosos" ou com a menção da cidade de Mineiros devidamente "saqueada". Esse efeito também foi obtido na transição da primeira para a segunda parte da narrativa, onde temos a contraposição entre a imagem paradisíaca da fazenda e o combate nela realizado. A invasão sugere a ideia de que os soldados do destacamento teriam maculado tal espaço. Daí que os legalistas de Klinger - os heróis - tiveram mérito em defendê-la e, como prêmio de sua vitória, receberam o jantar na fazenda.

Na terceira parte, o enredo retorna ao presente da história, para em seguida ser perturbado pela mão não apodrecida e pela voz misteriosa que pergunta sobre o anel. Contado num tom realista e sério, vale-se de todos os recursos estilísticos das histórias fantásticas: conflitos de opiniões entre personagens (Zeca Lopes, Freire e o narrador) acerca de estranhos fenômenos presenciados, hesitações por parte do narrador, certezas baseadas em posições racionalistas dissolvidas pela impossibilidade de sua explicação racional, após tentativa de verificação. O desenrolar dos eventos atesta o emprego desses recursos: encontro e enterro da mão com o anel; opinião plausível sobre seu fim após enterro; dúvida sobre o apodrecimento da mão; voz do morto; opinião racional sobre o ocorrido; tentativa frustrada de verificação; evento sobrenatural é ambiguamente assumido.

Em um curto espaço textual a estrutura narrativa se repete, e prioriza-se a extensão em detrimento da profundidade para criar o efeito de suspense. Alguns elementos dessa atmosfera já estavam dispersamente presentes nos momentos anteriores do texto. A descrição do espaço nos primeiros parágrafos, uma estrada numa noite silenciosa com nevoeiro, contribui para criar um clima feérico. Além disso, a narração do combate pelo Dr. Freire e o relato de Zéca Lopes sobre o encontro da mão ocorrem à meia noite, horário que, na tradição popular, seria propício para o aparecimento de fantasmas.

Ao suspense criado soma-se a tristeza da separação trágica entre cônjuges, presente na pergunta e na descrição da mão, "murcha, triste, espiritualizada numa saudade, com qualquer coisa de amor e de ilusão...". O fato de a mão decepada estar com um anel de casamento em lua de mel sugere, pela forma triste como é descrita, a separação de um casal por causa da marcha da Coluna, com a transcendente saudade oriunda da brusca ruptura (mesmo que o morto seja um dos soldados de Prestes). Esse é o ponto de contato entre a segunda e a terceira parte do texto, levando o sobrenatural a se tornar um elemento que contribui para o reforço da visão negativa sobre a presença da Coluna em Goiás.

A curta narrativa parece atravessada por dois polos de tensão: legalismo-oposição (política) e modernidade-tradição (visões de mundo das personagens principais). Este polo, apesar das divergências, admite coexistência e mediações (pelo narrador), reconhecendo-se tanto a presença e o avanço de elementos modernos sobre espaços interioranos, como a autonomia da pujança da natureza e da esfera sobrenatural. Já o primeiro não admite conciliação, pois é uma guerra na qual o vencedor deve aniquilar o lado derrotado. As personagens não explicitam suas posições políticas – elas apenas relatam o combate, sem se

posicionar nesse âmbito. Esse não posicionamento, que coloca em evidência apenas o relato, cria um efeito de neutralidade.

Por isso, são as técnicas narrativas - o aparato estilístico, estrutural e temático – que evidenciam o posicionamento. Primeiramente, como vimos, as transições entre as partes da narrativa – descrição do lugar idílico, combate e aparição sobrenatural – apresentam elementos contra a Coluna, como a mácula do ambiente paradisíaco, a intervenção do espírito do morto, a tristeza. Esse movimento é acompanhado por mudanças na forma de contar: no primeiro trecho emprega-se recursos românticos de descrição, no segundo o estilo desce para uma mistura de trágico e cômico, no terceiro elementos de suspense (onde repousa a tensão na narrativa). A mudança brusca de estilo, feita de acordo com a tonalidade que se quer dar ao objeto representado, contribui para formar uma visão negativa da Coluna a partir de diferentes perspectivas. Em segundo lugar, cria-se o efeito de interdependência harmônica entre as esferas natural, espiritual, afetiva, social e política. A ruptura provocada em uma delas repercute em todas as outras, colocando em xeque a ordem cósmica, gerando sequelas que atingem outras dimensões – como a separação dos recém-casados (social) e a intervenção do espírito amargurado (além).

O coronel Zeca Lopes aparece como o eixo humano de toda ordem, harmonia, paz e fartura das dimensões ameaçadas, sediada numa fazenda idílica e sem conflitos, atravessada por uma paradisíaca, pujante e arrebatadora paisagem. Mentalmente parte de um mundo interiorano que assume como verossímil a existência do sobrenatural, ele consegue compreender o estranho evento antes do narrador, sobrepondo-se à arrogância do Dr. Freire com um sorriso. Ao mesmo tempo, é apresentado como "homem bom e ilustre", qualidades que justificam sua posição de líder regional do sudoeste goiano, integrante de um sistema de apoios políticos que se inicia no sudoeste goiano e termina na capital federal, no Catete.

Os confrontos entre ordem e oposição trazidos ao leitor pela estrutura da narrativa transcrita, pelos elementos paratextuais e pela sua composição na página do jornal, respondem aos dilemas do debate político-social do final dos anos 20 no Brasil.

O mecanismo criado por Campos Sales na virada do século XX, a política dos estados, visava estabilizar o sistema político a partir das cúpulas estaduais e municipais. Ao funcionar como planejado, a legitimação seria feita pelo resultado expresso nas eleições, previamente

arranjado entre os chefes locais e regionais (como Zeca Lopes) a partir do controle do eleitorado ou da fraude, referendados nas esferas estaduais e federais.

Nos anos 20, a ampliação das classes médias e do operariado urbano, assim como o acirramento das cisões no interior das oligarquias, geraram duras críticas aos vícios e ao fechamento da política. Arthur Bernardes, candidato de Minas e São Paulo, enfrentou uma oposição eleitoral por parte das oligarquias do Rio Grande do Sul, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco, e uma crise durante a candidatura (as cartas falsas) que quase o deixaram fora do pleito. Eleito, seu governo foi marcado pelos movimentos tenentistas: em julho de 1922 enfrentou a revolta do Forte de Copacabana, tendo que sufocar também outros motins que daí decorreram. Dois anos depois, em julho de 1924, estourou uma tentativa de revolução em São Paulo que foi duramente reprimida através de um bombardeio que devastou a cidade. Motivados por essas insurreições, curtos motins militares se sucederam em estados como Mato Grosso, Sergipe, Amazonas, Pará e Rio de Janeiro. Os rebeldes paulistas, na fuga, seguiram para o interior do estado, encontrando, em março de 1925, uma Coluna vinda do Rio Grande do Sul, também mal sucedida na tentativa revolucionária. Esse encontro deu origem à

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