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A promoção da pessoa na Constituição Brasileira de 1988

3. O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE: A PROMOÇÃO DAS CAPACIDADES

4.1. A promoção da pessoa na Constituição Brasileira de 1988

A Constituição de 1988 estabelece em seu artigo 1º, como fundamento do Estado Brasileiro, a dignidade humana, que, juntamente com a soberania, a cidadania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político formam o Estado Democrático de Direito.

O reconhecimento da dignidade da pessoa como valor jurídico já vem sendo proclamado desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que após duas Guerras Mundiais, determinou paradigmaticamente, que a pessoa deve ser protegida, respeitada e promovida por todos as Constituições e Estados.

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, [...]

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana, [...]

Artigo I – Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.282 (grifos nossos)

Jorge Miranda, a partir desta determinação feita pela Declaração Universal sinteza algumas diretrizes básicas necessárias à formação da ‘consciência jurídica mundial’, que devem servir de base para a aplicação da dignidade humana como princípio constitucional. Vale a pena citar essas diretrizes enumeradas por ele:

a) a dignidade da pessoa humana reporta-se a todas e cada uma das pessoas e é a dignidade da pessoa individual e concreta;

b) a dignidade da pessoa humana refere-se à pessoa desde a concepção, e não só desde o nascimento;

c) a dignidade é da pessoa enquanto homem e enquanto mulher;

d) cada pessoa vive em relação comunitária, o que implica o reconhecimento por cada pessoa da igual dignidade das demais pessoas; e) cada pessoa vive em relação comunitária, mas a dignidade que possui é dela mesma, e não da situação em si;

f) o primado da pessoa é o do ser, não o do ter, a liberdade prevalece sobre a propriedade;

g) só a dignidade justifica a procura da qualidade de vida;

h) a proteção da dignidade das pessoas está para além da cidadania portuguesa e postula uma visão universalista da atribuição dos direitos;

      

282 In: MARCÍLIO, Maria Luiza (org.). A Declaração Universal dos Direitos Humanos.

i) a dignidade pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas.283

Assim, a afirmação da dignidade humana como fundamento do Estado no texto constitucional, implica em assumir a pessoa e sua promoção como princípio geral de todo o sistema, com todas as consequências normativas que isto traz em si.

A dignidade humana na Constituição de 1988 possui densidade normativa, determina critérios para interpretação e integração das demais normas do sistema, serve de base normativa para a atividade dos Poderes constituídos, Legislativo, Judiciário e Executivo.284

A pessoa em sua dignidade é um “valor supremo”285 que dá unidade, em primeiro lugar, ao sistema dos ‘Direitos e Garantias Fundamentais’, tratados especificamente no Título II da Constituição. Tanto os direitos individuais e coletivos (art. 5º), os direitos sociais (art. 6º ao 11), os direitos de nacionalidade (art. 12 e 13), como os direitos políticos e partidos políticos (art. 14 a 17), recebem influência direta da dignidade da pessoa.

Assim como também, os direitos constantes da Ordem Social (Título VIII) previstos pela Constituição, como a Saúde (art. 196 e ss), a Assistência Social (art. 203), a Educação (art. 205), os direitos da Criança e do Adolescente (art. 227), que mesmo não constando do Título II, são considerados Direitos Fundamentais. O artigo 227, por exemplo, determina como dever da família, sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à dignidade.

A Constituição concede, assim, primazia a dignidade da pessoa e determina que a promoção da pessoa seja o critério para a aplicação

      

283 MIRANDA, Jorge. Op.cit., p. 183-184.

284 FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Aspectos da positivação dos direitos fundamentais

na Constituição de 1988. In: FERRAZ, Anna Cândida da Cunha; BITTAR, Eduardo C.B..

Direitos Humanos Fundamentais: positivação e concretização. Osasco: EDIFIEO,

2006, p. 130.

285 SILVA, José Afonso. Direito Consitucional Positivo. 34.ed. São Paulo: Malheiros,

(interpretação) dos direitos fundamentais. E por ser, princípio geral, também incide nos demais âmbitos do Estado, como em sua organização federativa, na divisão dos Poderes e suas atribuições, na composição da tributação e orçamento e na ordem econômica.

Com relação especificamente à ordem econômica, o constituinte de 1988, ao escrever o artigo 170, quis determinar como sua finalidade (objetivo) “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.” Certamente, surge a questão: o que se entende por “existência digna”? Como a ordem econômica pode assegurar a vida digna?

Esta indagação interessa diretamente a discussão presente nesta tese, pois refere-se exatamente a pergunta inicial feita por Amartya Sen, ao escrever “Equality of what?”, um dos seus primeiros escritos.286 O que se entende por existência digna? Como a economia pode interferir na realização de uma vida digna? O direito à promoção das capacidades, que tem sua origem no pensamento de Amartya Sen, auxilia na interpretação do artigo 170 da Constituição de 1988, justamente para responder a essas perguntas.

A interpretação que comumente se dá ao artigo 170, caput da Constituição de 1988, parte da equiparação dos conceitos de desenvolvimento e crescimento econômico. A ‘existência digna’ relacionada à economia seria possibilitar aumento da renda per capita e consequentemente a melhoria do bem-estar. Nessa interpretação, a economia assegura dignidade quando gera riquezas e assim possibilita ao Estado conceder à todos, de forma igual, bens primários (primary goods), utilizando expressão de John Rawls em seu livro Uma Teoria da Justiça. Esta é a equidade e dignidade baseadas na Justiça distributiva.

Em suma, a ‘vida digna’ corresponderia ao acesso de forma igualitária aos bens primários, como por exemplo àqueles previstos no artigo 6º da Constituição: alimentação, moradia, lazer, saúde, educação.

No entanto, o direito à promoção das capacidades proposto nessa tese, propõe outra forma de interpretar esse artigo, que vai “mais além” da ideia de

      

286 SEN, Amartya. Equality of what? The Tanner Lecture on Human Values, Stanford

bens primários e da justiça distributiva. Como dito até aqui, ‘vida digna’ corresponde a algo mais do que a distribuição de bens materiais (que podem estar previstos em uma lista normativa ou não).

A dignidade humana e a ‘vida digna’ estão relacionadas à ideia de ‘promoção das capacidades da pessoa’, ou seja, na criação por parte do Estado de condições para que a pessoa possa ter mais oportunidades, possa escolher melhor o caminho que pretende seguir, possa desenvolver sua humanidade, possa realizar-se através de organizações da sociedade civil. Não se tratam de bens materiais, mas sim de bens essenciais à pessoa, enquanto pessoa com dignidade.

Esta é a visão da teoria econômica proposta por Amartya Sen, base conceitual desta tese, em que o crescimento de um determinado país não é medido apenas pelo aumento de riquezas e da renda per capita, mas sim a partir da ‘expansão das capacidades’ das pessoas.

O direito à promoção das capacidades, nada mais é do que exigir que o Estado se estruture (subsidiariedade) e promova ações (políticas públicas) em favor do desenvolvimento das capacidades da pessoa. Por exemplo, estimulando organismos da sociedade civil (cooperativas, associações, micro-empresas) a atuarem no mercado de forma competitiva, para que possam favorecer o desenvolvimento mais de perto daquelas pessoas que os integram. Exigir que o Estado, não apenas distribua bens materiais, mas crie políticas de promoção efetiva da educação, oferecendo critérios para que a educação permita o desenvolvimento da personalidade da pessoa.

Desta interpretação conclui-se que o artigo 170 da Constituição de 1988 está fundamentado na dignidade humana e no conteúdo do direito à promoção das capacidades, que se manifesta em formas concretas de Políticas Públicas para garantir a promoção da pessoa.

A promoção da pessoa, à luz do direito à promoção das capacidades, atua em favor da unidade da Constituição, permitindo que a concretização de suas normas se dê com maior aplicabilidade e eficácia possível, sempre em favor da dignidade humana.