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2. Da matéria na Cerâmica

2.2. A propósito da cozedura a lenha

A abordagem que faz da cozedura a lenha um material cerâmico e uma experiência da Natureza decorre de uma leitura relacional dos meios, tomando o fogo como uma ocorrência natural que desde os primórdios civilizacionais foi transformado num acto técnico, como tal assumindo especificações diferenciadas na sua configuração mas sobretudo do seu carácter anímico e semântico em cujo âmbito um grupo grande de ceramistas se instalou. A ligação entre Natureza e fogo material, não parte aqui dos modos de ocorrência natural do fogo (relâmpagos ou vulcões) ou os acontecimentos, incêndios, eventualmente decorrentes desses factos naturais, não obstante a sua experiência possa constituir um marco da maior grandeza na vida de alguém com a preocupação de se exprimir artisticamente, com uma dimensão estética maior ou menor, dando lugar a obras posteriores. A nossa reflexão preocupa-se com o seu modo de replicação que sendo técnico, contribui com um significado emitido numa das suas utilizações produtivas – a cozedura de cerâmica a lenha – no contexto da cultura actual. Alguns estudos antropológicos (André Leroi-Gourman38; Daniel Fessler39

36 Vd. n/ A água mostra quem não se vê. FBAUL, 2004, p. 113 ss.

) abordam o fogo utilizando duas entradas: a produção e o seu controlo. Se quisermos uma reflexão

37 Uma apresentação coloquial do tema foi feita pelo autor na European Woodfire Conference, Bröllin, Alemanha, Setº. 2010.

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pragmática e tomarmos por boa esta abordagem, inscreveremos o fenómeno do fogo associado à cerâmica na problemática do controlo, um controlo sofisticado e exigente com particularidades ricas quando se opta por usar lenha ou outra biomassa. Mas se procuramos significados para certas acções, a produção original do fogo, o momento da tal replicação técnica da ocorrência natural – faísca ou fricção de madeira, seguida de um fumo frágil – preenche condições que o promovem para lá desse gesto técnico e cultural. Jean-Jacques Annaud realizou em 1981 um filme encantatório “La Guerre du feu” 198140

Criar o fogo não é fácil nem espontâneo, é pelo contrário um acto intencional. A extensão da sua interpretação deve fazer-se começando por afastar a parafernália de soluções técnicas de que felizmente dispomos, percebendo que ela corresponde à troca do combustível pela energia de um modo sensível e que a mesma troca é solidária com os resultados, enriquecendo-os com a sua crueza - os personagens do filme servem a demonstração que o conhecimento tornou pleonástica. A essência da sua produção é outra:

, ao qual regressamos ciclicamente para o prazer de reconhecer algumas fragilidades e essências do Homem. Em dada altura o personagem trata a chama nascente como uma flor – ou a sua semente a brasa - que se protege no covo das mãos – ainda hoje o fazemos para acender uma fogueira em condições adversas. A necessidade de encontrar significados para a utilização de uma certa maneira de fazer coloca-nos voluntariamente próximo da experiência primária do fogo, que tem cerca de 500.000 anos, despojados dos muitos recursos técnicos, que não precisam de ser legitimados, mas que por vezes se interpõem entre nós e o mundo. Por isso continuamos a perguntar o que é o fogo, na essência técnica do fenómeno, mas sobretudo na leitura das percepções, justificando a indagação acerca do fenómeno em si e de modos históricos de o fazer. Neste sentido reconhecemos que afinal também na sua expressão de fenómeno próximo e natural o fogo nos interessa.

“A partir du moment où les percussions aboutissent à la production d’une

parcelle incandescente, le feu prend sa place logique dans les moyens techniques élémentaires. Cette parcelle brûlante est reçue par l’étoupe qui est portée au contact d’un corps plus compact, feuilles ou fibres sèches et

38 LEROI-GOURMAN, André - L’homme et la matière.

39 FESSLER, Daniel - A Burning Desire: Steps Toward an Evolutionary Psychology of Fire Learning. 40

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de proche en proche on livre au feu naissant des aliments de plus en plus substantiels: brindilles, bûchettes, bûches ou charbon.”41

O uso da cozedura de lenha no contexto da cerâmica assinala a partida para um processo técnico onde são facilmente identificáveis pelo público soluções particulares no que respeita ao equipamento e aos recursos expressivos em geral (cor, brilho e texturas particulares) mas esse protocolo envolve simultaneamente uma operação mais delicada e laboriosa, variáveis complexas a que chamamos vulgarmente aleatórias e um sentido geral de restrição à liberdade que tomada voluntariamente é preciso justificar. Retratamo-nos culturalmente sempre acompanhados de um conhecimento acumulado vastíssimo e dispondo de uma imensidão de acessórios e ferramentas que dados por adquiridos a maioria de nós não domina efectivamente e dificilmente ultrapassaria a sua indisponibilidade. Essa consciência cíclica, motiva-nos entre outras razões para a necessidade de entender o significado de tais actos neste modo de estar, interpretando os contextos desta acção e o significado os seus resultados.

Muitos interessados nas disciplinas artísticas têm alguma dificuldade em envolver-se em abordagens mais exactas do saber, não impedindo isso a identificação de dúvidas acerca dos fenómenos com que lidam. A dúvida não pode deixar de escutar o que as ciências exactas têm a dizer, persistindo provavelmente para lá da resposta dada por estas e obrigando a reequacionar a própria pergunta em termos abertos e capazes de acolher os contributos de dois discursos, um analítico outro ideográfico, sem nenhum antagonismo directo, em vez disso preenchendo áreas diversas da dúvida.

O que nos diz uma abordagem introdutória à termodinâmica, é que o fogo é uma mistura de gases incandescentes a altas temperaturas formada na combustão, emitindo radiação electromagnética nas faixas do infravermelho e do visível e decorrente da combustão que é uma reacção química exotérmica (libertando muito calor) entre uma substância (o combustível) e um gás (o comburente), geralmente o oxigénio. O fogo em sentido estrito é portanto uma imagem. Um composto químico orgânico como a madeira necessita de uma energia de activação, também conhecida como temperatura de ignição, esta energia para inflamar o combustível pode ser fornecida através de uma faísca, fricção ou de uma chama. Iniciada a reacção de oxidação, isto é a combustão, o calor desprendido pela reacção mantém o processo em marcha.

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O fogo, especificamente a chama, é essa mistura de gases incandescentes emissores de energia, resultante visível parcial da radiação electromagnética associada à combustão; a sua forma particular decorre das características da madeira enquanto combustível, que contactando com o comburente apenas na superfície, produz uma chama heterogénea diferente por essa razão daquela produzida por exemplo pelo gás butano ou pelo natural. Ainda que os respectivos fundamentos químicos e físicos nos sejam familiares, mantém-se um desejo de atribuição, insatisfeito com o conhecimento das propriedades físicas do fogo (cor, luz, calor) funcionando como a carência de um papel a desempenhar enquanto significante simbólico nos nossos discursos. Holbach, distante de qualquer conteúdo místico referia:“Fire, besides these general properties common to

all matter, enjoys also the peculiar property of being put into activity by a motion producing on our organs of feeling the sensation of heat and by another, which

communicates to our visual organs the sensation of light.”42

Isto quer dizer não só que encontramos no fogo uma validade polissémica ligando-se a outros conceitos que no seu conjunto se estruturam na nossa rede de identidade cultural, mas também que a sua experiência transborda do limite físico estrito. Esta constatação é válida para inúmeras experiências para as quais o conhecimento das leis que as determinam não preenche a nossa recepção nem a hierarquia do impacto que têm em nós.

Na sua apresentação sensorial peculiar, as propriedades de calor e luminescência sem outra relevância metafísica que a devida a outras de cada matéria em particular, combinam-se alargando virtualmente a sua importância.

Sabendo que as produções podem ter a partir do seu estado seco soluções técnicas de cozedura diversas, quando se escolhe este modo particular, fazemo-lo de modo intencional já que a cozedura a lenha não é a forma mais simples e prática de cumprir essa necessidade. Quando se faz esta escolha tivemos há muito o nosso contacto com o fogo de lenha. Dizendo isto e correndo risco de trazer questões demasiado elementares (de novo) sublinharíamos dois elementos. Antes de mais o nosso contacto com o fogo, e a sua aprendizagem enquanto fenómeno técnico é diferente em termos históricos e em termos geográfico-culturais. Alguns terão tido a experiência, própria ou próxima, do

42 Paul-Henri Thiry, barão d'HOLBACH - System of Nature (trad. ing. 1835, ed. digitalizada) p.24, [http://books.google.pt/books?id=Gz8RAAAAYAAJ&pg=PA24&dq=Fire,+besides+these+general+prop erties+common+to+all+matter&hl=] consult. 04.03.2009.

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fogo de lenha como ferramenta diária doméstica, de cozinha, de aquecimento, ou incorporada tecnicamente em alguns ofícios para além da cerâmica e não recordarão que alguém os tenha ensinado a produzir ou a controlar este fogo próximo. Procurando agora significados em gestos que a proximidade tornou banal, lembramos apenas avisos curtos de “cuidado” e “olha que te queimas” (e de isso acontecer) que o cheiro do verde significava resistência e uma chama pouco fiável, que o fogo crescia numa construção ventilada, ordenada segundo uma hierarquia, desde a acendalha frágil ao madeiro demorado, construção que ainda hoje nos agrada, vendo consumir os primeiros para sustentar os troncos finais. Participamos no desafio de criação de uma identidade que se comporta como viva, a partir de uma viabilidade frágil, no mesmo código que nos dá só um fósforo e acendalha natural – uma espécie de lealdade e rarefacção de meios.

Esta experiência confere com a observada em sociedades tradicionais contemporâneas ou pré industriais, marcada por um contacto precoce e uma aprendizagem paulatina, em que o fogo tem um sentido utilitário e o combustível um bem escasso por definição, usado parcimoniosamente. Para essa abordagem o fogo tem o valor de uma ferramenta próxima e mundana; ao contrário das sociedades urbanas modernas, onde é usado principalmente como decoração ou entretenimento (lareiras, fogueiras, velas ou fogos de artifício) sempre com um carácter excepcional e tido em elevada consideração. O mais importante desta percepção que temos intuitivamente é que nas nossas sociedades ocidentais a aprendizagem do fogo se faz um pouco mais tarde, mas sobretudo que os motivos que justificariam essa aprendizagem não são completamente preenchidos, colocando o fogo ao longo da vida num quadro de fascínio que perpétua o fogo como brinquedo43

No uso dos termos latinos focus e lumen, o primeiro era referido ao lar, doméstico e dos deuses, por associação também à pira religiosa e à lareira ou braseiro; o segundo como sentido lumínico (passe a redundância) natural (do dia), artificial (da lâmpada e do archote) ou simbólico e conceptual (vista, ornamento e claridade). Não decorre dos dois termos grande ajuda para a sua diferenciação, existindo mesmo alguma equivalência na função calorífera, no que respeita ao fogo cerâmico. Como em português, algumas línguas herdeiras (italiano, espanhol) mantêm os dois termos, parecendo-nos confortável encarar como vocacionado um termo para o absoluto, o fogo, outro, para o domesticado

e entretenimento.

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funcional, devendo no entanto aqui ressalvar-se todas as excepções e os usos literários que de facto fragilizam qualquer categorização rígida. A experiência de um incêndio tem a maior carga possível de concretude, ao utilizar o termo fogo pomos em contacto a proximidade máxima, o meio natural ou urbano, com a experiência da destruição absoluta, com mal em si. Na cerâmica requer-se uma enorme prestação calorífica, o que nos obrigaria a procurar, neste critério da domesticação, a necessidade de um grande

lume. Percebendo a necessidade energética requerida para a transformação da terra em

cerâmica (como elemento do pensamento alquímico) sentimos a necessidade do domesticado se aproximar quanto possível do absoluto, sem deixar a categoria a que pertence, e isso significa sempre a necessidade de se superar a si próprio.

O outro elemento marcante e de onde decorrem consequências técnicas críticas e envolvimentos emotivos é a lenha (considerando aqui a bio-massa florestal em geral). Nas suas particularidades técnicas é responsável pela distribuição heterogénea do calor, resultante das dinâmicas térmicas menos regulares, pela deposição e vitrificação das cinzas como consequência da fusão dos sais que as compõem – como diria Gedeão no

Poema do Coração “vem tudo nos compêndios”44

A utilização da lenha requer, um municionamento contínuo e específico. Não se trata porém de abastecer a um ritmo contínuo (automatizado) mas antes verificar a combustão efectiva, relacionada com a temperatura no momento e as condições de ventilação da cozedura que variam com a progressão da mesma

. Mas podemos olhar para a lenha e não conseguir esquecer que por trás está uma árvore com centenas de ligações que sinalizam uma relação entre nós e o meio ambiente, como personagens simultâneos de uma história que se têm acompanhado desde a manifestação dos primeiros sinais da racionalidade, como sinal de maior conforto, ao mesmo tempo como potência destrutiva – de incêndio e de morte projectada, acidental ou premeditada contra alguém.

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. As características, dimensões e variedade da lenha, têm aqui uma importância que deve ser reconhecida. A lenha macia e mais nova é menos densa e possui maior teor mássico em resinas46

44 GEDEÃO, António - in Linhas de Força, 1967, vd. anexo p. 342.

, um composto orgânico de poder calorífico consideravelmente superior (cerca de 2x) aos relativos a lenhina e celulose, os principais constituintes da lenha. O facto de ser menos densa favorece ainda a libertação fácil da água retida no tecido vegetal, limitando assim

45 UJLAKI, Peter – Kumano Kurouemon, a clan of one – the Bear revisited. Ceramics Art and Perception, 2004, 58, p.25.

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o consumo do calor libertado pela combustão para a sua evaporação. Justifica-se portanto o facto de possuírem maior poder calorífico por unidade de massa. Por outro lado, lenhas mais duras e velhas são mais densas, coincidindo com um maior poder calorífico por unidade de volume (mais massa por unidade de volume apesar de menor o poder calorífico por unidade de massa) e uma rede polimérica mais apertada dos seus constituintes. A celulose e a lenhina são, respectivamente, biopolímeros de polissacáridos e de derivados de fenilalanina (aminoácido) que contém ligações químicas altamente energéticas. O facto de serem necessárias elevadas quantidades de energia para quebrar estas ligações e dada a sua menor disponibilidade para a combustão em lenhas mais densas faz com que a degradação destes compostos orgânicos em CO2 e H2O seja mais lenta. O registo da função entre a variação de tempo e de temperatura desenha uma curva alongada na combustão de espécies duras, enquanto na de espécies jovens e macias dá lugar a uma outra mais acentuada, requerendo por parte do ceramista um comportamento complementar fundado quase sempre num conhecimento silencioso e paulatino.

A consciência de estar nesta placa giratória dando atenção a múltiplos factores, individualmente e em conjunto, dá ao ceramista a percepção continuada do contingente e do efémero, que os resultados de cada cozedura lhe lembram com clareza. Os desafios mecânicos e de continuidade material anunciam-se logo nas fases anteriores a que se junta esta necessidade de tecnicamente optimizar a combustão e construir a

temperatura progressivamente, aproximando da marca pretendida numa evolução que

negoceia a possibilidade de um fenómeno em potência. A materialização de cada cozedura que em circunstâncias efémeras torna perene e maduro um particular resultado confirma-nos a excepcionalidade dos meios em relação ao que tomamos por comum e em tal medida contingência e efemeridade são aceites como elementos da percepção estética que estamos quase sempre prontos a valorizar, distinguindo do banal.

Estas particularidades do modo de fazer canalizam idealmente para o modo de ser da cerâmica os citados conceitos de efémero e contingente, de modo que mesmo sabendo que o calor da chama alimenta e prolonga por si a combustão, mesmo divulgados os desenhos de fornos, que sabemos como fazer mais eficazes, produzir essas condições é sempre um acontecimento intencional e proporciona-se a lembrar que todo o processo de criação artística é a materialização incerta de uma potência conceptual. Na percepção fenomenológica anterior que temos, os procedimentos formais são pleonasticamente

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reforçados pela tangibilidade tecnológica, no esforço de superação da efemeridade material transmitida à obra, quer no sentido em que lhe confere a dureza própria da cerâmica, por si uma excepção à evolução do barro, quer no sentido da fixação visual dos valores morfológicos conseguidos.

Essas peças têm em comum, como uma marca de wadding47

, as referências daquilo a

que Merleau-Ponty chamava as coisa intersensoriais48

A interacção com a matéria dentro de um propósito, construtivo ou especulativo, envolve um conjunto de acções progressivamente interiorizadas, aprendidas, gerando níveis de proficiência crescentes e constituindo no seu conjunto um processo,

, que nos chegam não só com os respectivos atributos físicos particulares, mas sob a forma de uma certa simbiose, um composto físico e cultural específico que tem a capacidade de nos invadir, predispondo- -nos a um acolhimento particular. Nesta relação em que a memória tem o papel de desmontar a estrutura da percepção de onde nasceu, as propriedades sensoriais de cada peça juntam-se como um feixe para projectar os respectivos sinais, encontrando uma estrutura equivalente de recepção simétrica nos sentidos, enquanto atribuições de um único corpo e integrados numa única acção. Preferiríamos entender o movimento como tendo origem no sujeito, percepcionando o mundo com o dito feixe de mecanismos que em sentido estrito lhe é indiferente e não precisa de se dar a conhecer, antes somos nós que precisamos de construir um discurso do conhecimento e nessa medida percepcionamos uma peça na sua multiplicidade de sinais no campo da nossa existência onde cada fenómeno surgido polariza para si todo o corpo também ele um sistema de capacidades perceptivas. No desejo de objectivar a coisa intersensorial, o autor distingue-a de um quale imutável subsistindo efectivamente como também da consciência de uma tal propriedade objectiva, e identifica-a com o que é reencontrado ou retomado pelo olhar e movimento. Os atributos sensoriais com que identificamos os materiais ou os seres constituem-se numa unidade, como os nossos sentidos, são juntos as atribuições de um único corpo, chamados à acção de conhecer; enquanto aos fenómenos mono-sensitivos percepcionados reservamos certa omissão e limitação de nos noticiar o real.

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Nome corrente para a pasta refractária interposta entre as peças e os respectivos suportes impedindo a colagem previsível pela fusão dos vidrados de cinza – uma vez removida é vulgar que deixe uma auréola clara no lugar. BRIERLEY, Ben - Active Wadding in The Log book, 28, ou [http://www.ben-brierley- woodfired-ceramics.co.uk/Active%20wadding%20article.htm] consult. 07.09.2010.

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optimizador no sentido técnico, legitimador no sentido filosófico. No contexto artístico esse contínuo de procedimentos pode ser interpretado de modo a inspirar a ideia de uma regra capaz de guiar a consciência humana, ajuizando a adequação, integração e consequência da acção que culmina no sentimento de existência. A estruturação crescente dessa consciência é observada por Michel Dupuis49

“là le bruit des vagues et l’agitation de l’eau fixant mes sens et chassant de

mon âme toute autre agitation la plongeaient dans une rêverie délicieuse où la nuit me surprenait souvent sans que je m’en fusse aperçu. Le flux et reflux de cette eau, son bruit continu mais renflé par intervalles frappant sans relâche mon oreille et mes yeux, suppléaient aux mouvements internes que la rêverie éteignait en moi et suffisaient pour me faire sentir avec plaisir mon existence sans prendre la peine de penser.”

lembrando o modo de apreensão da matéria proposto por Diderot no seu “materialismo encantado”, criando uma convergência monista capaz de interpretar a natureza e de reconhecer nela uma faculdade que os positivistas reservavam aos seres vivos. A mesma sensibilidade adoptada pelos românticos e enunciada em Rosseau através da disponibilidade que interpela, e interpreta, o meio convertida numa procura e inesperada conquista do Eu:

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A procura da origem do prazer contemplativo que sente e o convite à análise introspectiva, embalada pelas ondas do lago que devolvem ao autor a inocência infantil e a envolvência psicológica quase hipnótica, são uma percepção estética fundamental, emergente e sobreposta à planificação anterior – os livros que permaneceram guardados.

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