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1. O lugar como pressuposto

1.2. Morfologia do lugar e identidade

ser discutida ao menos em tese, face à criação de peças marcadas por experiências dolorosas, perdas, destruição e crítica. Tal não impede que se verifique a vinculação ao lugar na identidade e que essa ligação seja uma extensão do Eu autoral como o ligante que lhe dá a emocionalidade, não verificada nos contextos meramente funcionais – muitos emigrantes não desenvolvem um sentimento de pertença à região de acolhimento, mesmo que aí residam muitos anos – mas essa fundamentação pode ter na sua base uma experiência negativa. Entendemos portanto que a valência das cognições é debitada directamente e sem balanço, a obra pode ser precisamente um ajuste de contas, uma busca de equilíbrio catártica que possibilita a progressão, sendo ela própria uma fase de reflexão tangível, podendo aceitar-se a percepção de pertença ao lugar através de uma cognição negativa.

1.2. Morfologia do lugar e identidade

A procura de um termo de identidade para o lugar e um nexo de causalidade forte entre este e a obra não equivale a requerer uma identificação directa ou expressa no sentido descritivo do lugar. Afirmar isto é formalmente paradoxal quando a peça é construída a partir do conceito de identificação com o lugar e toma a morfologia do terreno como molde e dado prévio, sem alteração substancial, como acontece em “Fuga (de um lugar

próximo)40. A apropriação total por similitude com uma realidade física não assegura só por si a identificação com um lugar real, o recorte da envolvência produz uma falsa alteração de escala e uma abertura às ferramentas interpretativas para leituras opostas que se tocam, “Landscape may be concieved as something vast and sublime or as

something mimiature and close to”41

“Abstraction may provide a way of touching the feelings while maintaining

a distance: of alluding to things without portraying them; of condensing

. A adopção da inexplicitude formal e anti-narração expõe o argumento, obra, a mal-entendidos e disputas legítimas decorrentes da tentativa de concertação do abstracto com o particular:

40 Vd. p.263. 41

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complex meanings in an apparently simple form. It permits one to explore poetic ideas without spelling them out and to probe hidden realities beyond the superficial features of the visible world.”42

Para o esclarecimento do respectivo sentido importa constantemente recentrar o propósito da obra que nos casos observados passa pela afinidade imaterial como acesso à obra e à sua experiência estética.

Se uma análise imediatista encontra dificuldades na justificação analógica, interrogações de ordem hermenêutica não nos permitem aceitar a maior parte das soluções simplistas, antes reconhecendo alguns paradoxos nas formulações em torno do lugar e da “paisagem”. De um modo breve, Michael Jakob43 perfilha-a como uma construção referente a um objecto fugidio, nem identificável ou mensurável, que tenha natureza objectiva, mas sobretudo de “um fenómeno que escapa a qualquer fixação

precipitada”44, não sendo nem terra, sítio ou território, dá lugar a um paradoxo

sucessivo quando da sua representação. Tudo quanto é colocado em vez do lugar, como sua representação iconográfica ou descritiva, embate neste carácter mutável – mas não aleatório – tornando-se uma experiência disponível para a apresentação aberta. O segundo paradoxo refere-se à questão já antes debatida acerca da insuficiência terminológica para distinguir a representação - a obra em si – do lugar e respectivos elementos, carregando consigo a angústia de saber não só se será possível a produção da obra, fugindo ao lugar-comum da descrição, mas também se o sucesso dessa fuga não redunda numa instrumentação formalista, de onde a relação com o natural se retirou. O autor toma as reflexões de Dazai Osamu em Cent vues du Mont Fuji45

42 Idem, p.8.

sob cujo ponto de vista é impossível fugir à corrente das citações, à poluição das informações segundo estereótipos e àquilo a que Michael Jakob chama a omnipaisagem. A publicitação recorrente e a distribuição massiva de representações promovem a desvalorização de experiências ou factos que em si podem ser da maior importância, mas cuja utilização banaliza, estigmatizando a sua abordagem no contexto artístico. Embora não possamos escapar à condenação de incorporar no nosso discurso como condicionantes gerais muito do que foi dito e como foi apresentado noutras obras, dando razão ao autor

43 JAKOB, Michael - Le paysage, p. 29. 44 Trad. livre.

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quando diz que “Le paysage est le résultat hautement artificiel, non-naturel, d’une

culture qui redéfinit perpétuellment la relation avec la nature”46

O quadro psicológico do sujeito face ao lugar é pois complexo na medida em que pressupõe a sua identificação com o objecto “l’experience du paysage est (...) une

experience de soi. (...) Le sujet fait donc entièrement partie du paysage qu’il compose”

.

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O trabalho em campo com a cerâmica incorpora uma forte ligação fenomenológica ao lugar, que incluindo alguma sensibilidade geológica, se compromete com os protocolos técnicos e transformativos, no desenvolvimento do respectivo processo artístico. Este conjunto complexo sugere à disciplina uma ordem do mundo em que o homem, sobretudo na condição de autor, impõe a si próprio uma revisão da posição que quer ou deve ocupar. A decisão pede a resolução da contradição entre ocupar o vértice de um cone, algo predador mas investido da dinâmica de sujeito criada desde o Renascimento, e a posição na cintura de planetas de um enorme compromisso sensível, cuja riqueza pode influenciar, mas ao qual dificilmente atribuirá hierarquias; a percepção desse valor depende de si e será tão mais interessante quanto o for o objecto percebido, o seu empobrecimento corresponderá a uma perda da percepção e dos discursos elaboráveis envolvendo uma posição ética a que dificilmente pode fugir. O objecto Lugar/Natureza está na contingência dessa evolução, mas será um valor de per se e o seu empobrecimento será sobretudo o empobrecimento de quem o percebe.

, no entanto a sua condição progressiva de autor, ou o seu desígnio discursivo, requer de imediato a inflexão que recoloca o mundo natural como outro, enquanto condição essencial para pensar a obra. Tal não significa concordar com a limitação do lugar da paisagem, à experiência do próprio. Podemos para tal ter que regressar à distinção entre mundo natural e obra artística, à particular homonomia entre

paisagem lugar e paisagem obra artística. Mas se por um lado a leitura inclusiva do

sujeito e do lugar permite dizer que a notícia deste segundo a obra é a notícia do autor e que o lugar é esta consciência de si, ainda assim, ao lugar reservar-se-à uma existência intrínseca, prévia, independente da leitura feita e apresentada, que manterá a sua evolução apoiada nos elementos que persistem.

46 JAKOB, Michael - Le paysage, p. 31 47

38 O geógrafo E. Casey48

Uma percepção mais ambiciosa da noção de lugar entende-o como tomando os sinais dos seus elementos e reflectindo-os na sua constituição, expressando-os como algo que acontece em vez de algo que é, de onde podemos discorrer a sua adequação narrativa. A experiência dá-nos por isso “qualificações contínuas e mutáveis de lugares

particulares”

realça o carácter atractivo do lugar enquanto reunião de experiências e histórias, linguagens e pensamentos, comprimidos e sintetizados, adquirindo um sentido nominativo. A união destes elementos numa dada configuração define particularmente os modos de fixação ao lugar e a sua ordem inclui situações de ajustes imperfeitos ou irracionais, desenvolve ideias a partir de recepções complexas do lugar, de onde resultam sobreposições comprometidas mas autónomas. Uma dessas características apresenta-se na gestão do antagonismo entre o acolhimento e a repulsa definindo o quê ou quem podem fazer parte do lugar - combinando o sentido de identidade e revestindo-a de uma película de fronteira. Nessa aptidão os elementos são simultaneamente dinâmicos, ao acolher novos sinais ou objectos elegíveis, e restritivos, no entendimento de que novos sinais transportam consigo um potencial descaracterizador e portanto afastados. No conjunto a operação valoriza os elementos participativos, de onde se pode inferir algum valor de troca, quase simbiótico, enquanto os de mero valor decorativo ou turísticos são desvalorizados. A coesão reflecte simultaneamente um desenho do lugar denotado nos valores de estrutura, contorno e preenchimento e no modo como os respectivos elementos contidos são respeitados. A intimidade e solidariedade desses elementos configuram-se segundo um modo em que a forma do lugar se homogeneíza com as formas nele contidas, possibilita a identidade do lugar e a percepção de estar no seu âmbito passa por reconhecer a configuração complexa dos respectivos elementos, incluindo aqueles valores imateriais, como memórias e pensamentos, fixados pelos lugares, quando devidamente amadurecidos.

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O domínio do lugar detém portanto uma capacidade harmonizante mas igualmente desconstrutiva de dicotomias referenciais como as de sujeito e objecto, forma e substância, percepção e imaginação/ memória, de tempo e espaço. O lugar fornece a

, percepcionadas pelos respectivos conteúdos e pelas formas como culturalmente são articuladas.

48CASEY, E. - How to Get from Space to Place in a Fairly Short Stretch of Time in FELD, Steven; BASSO, Keith (orgs.) – Senses of Place. p.25.

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ambos a oportunidade de se cruzarem, materializando-os na sua própria experiência: o primeiro referenciando uma ordem de sucessão, o segundo concebendo a ordem da coexistência. O cruzamento eventual dos dois termos no conceito de lugar pode entender-se como uma apropriação persuasiva para a concretização dessas dimensões conceptuais pré-existentes, sendo igualmente responsável por critérios concorrentes de classificação das peças.

A complexidade de sinais requeridos para a percepção do lugar encontra uma equivalência igualmente múltipla no modo como nos lhe referimos dando lugar a registos transversais combinando categorias conceptuais que nos habituamos a ver separadas, correspondentes a outras tantas representações do lugar numa apresentação porventura menos clara. Tal decisão para além de sugerir a insuficiência das soluções anteriores, apela à utilidade e riqueza de se construir a identidade de um lugar a partir de contributos múltiplos, sem nunca pretender ter a propriedade da imagem definitiva. Consideramos transversais os diferentes valores de representação que cada lugar tem para diferentes entidades individuais ou colectivas – um trecho do Baixo-Sabor é representado de modo diferente por quem passeia por ali durante um sábado, por quem no mesmo dia e lugar guarda um rebanho que paste, ou para quem avalia a sua aptidão hidroeléctrica. Estas representações noticiam de modo individual as mesmas curvas de nível no terreno, a dinâmica do rio, a ocorrência das espécies vegetais, todas presentes e disponíveis para a construção de discursos diferentes acerca do mesmo lugar. Tem certamente um lado heterogéneo, mas considerar essa percepção pode ser particularmente sensível e útil no estudo da arte pública, no arrolamento social e participação colectiva em dado projecto e de modo nenhum pode ser menosprezado na construção da ideia própria e original.

Na sua particularidade subjectiva, o discurso artístico propõe uma consciência de lugar materializada no objecto plástico, construída na convivência de contributos múltiplos entre o individual e o social, sendo essas posturas representadas pelos diferentes indivíduos fragilmente particulares e temporais. Particulares porque obviamente correspondem à sua representação enquanto indivíduos, mas sobretudo porque são uma decorrência posterior, justificadora da sua “sensibilidade” e interesses prévios; nessa qualidade visitaram o Baixo-Sabor, a nossa relação com os lugares é vulgarmente funcional, validando o objecto do e para o nosso interesse, um interesse ancestralmente marcado pela sobrevivência, actual nalguns casos, orientado no sentido da apropriação

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de mais-valias económicas no mercado, na maioria dos casos. As transferências de um grupo para outro são também e só isso mesmo, excepções de inspiração improvável. Temporais no sentido em que a sua cultura e discurso decorre de um certo tempo histórico, representam mentalidades e objectivos de um tempo, mas dão lugar a acções que perpetuam um ónus patrimonial. O consumo de bens não renováveis ou a eliminação do património Natural ultrapassa os direitos da respectiva geração, na medida em que subtrai a possibilidade de outros fruírem uma experiência de vida e conhecimento igual à nossa. A fase actual do conhecimento permite-nos perceber quanto os paradigmas civilizacionais dos últimos duzentos anos ao mesmo tempo que constituíram um salto técnico e de conforto podem onerar gerações futuras de modo irrecuperável.

Com base nas considerações expostas qualquer representação mental do lugar parece criticável e desprovida de final, não fosse o facto de fazer parte da nossa condição humana apreender o meio e com ele desenvolver acções interactivas incluindo-o em tudo quanto produzamos.

Quando analisamos o lugar fazemo-lo de modo amplo, com aplicações pessoais ou públicas, actuais ou históricas, reais ou fictícias, permitindo-se uma linguagem aberta para a formulação das propostas, mesmo se nos confinamos à cerâmica, e um campo interpretativo limitado apenas pelo próprio argumento. Este relativismo disposto a recomeçar tudo a cada momento produz, não obstante, pontos imóveis a que recorre como contributos para a própria identificação aos quais cabe o papel de âncoras flutuantes. A linguagem artística assegura-se da existência destes pontos fixos para a própria segurança, num contexto de mutação e variabilidade.

Nestas propostas artísticas marcadas pela liberdade formal, somos subitamente confrontados com a imposição do nome de um lugar verdadeiro. O tema do título/nome na obra de arte é um assunto transdisciplinar sobretudo quando ultrapassa o modo descritivo e perigosamente pleonástico, para se atrever num papel interventivo apelando à valorização da ideia.

Para além da sua localização e forma, os lugares têm pelo simples facto da sua referência alguma relação com a humanidade manifestada na capacidade para produzir e

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fruir significados, radicando nessa ligação aos indivíduos o sentido do lugar50. Yi-Fu Tuan associa o sentimento de lugar à pausa, à capacidade de parar, enquanto o espaço à possibilidade de movimento: “Furthermore, if we think of space as that which allows

movement, then place is pause; each pause in movement makes it possible for location

to be transformed into place.”51 Decorrendo desta suspensão do movimento a

intimidade que permite a atribuição do nome ao qual corresponde um significado, constitui uma referência, que como o tempo, produz coordenadas pessoais e de grupo, e do ponto de vista teórico tece com Tim Creswell um plano de entendimento: “When

humans invest meaning in a portion of space and then become attached to it in some way (naming is one such way) it becomes a place”52.

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