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A proteção previdenciária da mulher indígena como segurada especial

Capítulo II – MULHERES INDÍGENAS, PROTEÇÃO PREVIDENCIÁRIA E

2.3 Mulheres indígenas no contexto da Seguridade Social

2.3.3 A proteção previdenciária da mulher indígena como segurada especial

De início, citamos a própria Constituição de 1988 quando garante a igualdade material e formal às/aos brasileiras/os e às/aos estrangeiras/os residentes no país (art. 5o,

CR/88), determinando, mais à frente, que os benefícios e serviços previdenciários colocados à disposição das populações urbanas e rurais sejam uniformes e equivalentes, proibida qualquer discriminação nessa linha (art. 194, parágrafo único, inciso II, CR/88). A cobertura e o atendimento na área da Seguridade Social deverá contemplar a universalidade, o que significa que todos podem ser beneficiados pelos serviços de Saúde, Assistência e Previdência Social. Paralelamente, relembremos que o art. 231, em seu caput, reconhece aos povos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.

Pois bem. Regulamentando as normas infraconstitucionais citadas acerca dos benefícios previdenciários, e com o fim de “Estabelecer critérios, disciplinar procedimentos administrativos e regulamentar o processo administrativo previdenciário aplicável nas unidades administrativas do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS”, a autarquia federal editou, em 06.08.2010, a Instrução Normativa INSS/PRES no 45. Referida norma, alterada

mais recentemente pela IN INSS/PRES no 61, de 23.11.2012, enquadra o indígena como

segurado especial do RGPS, nos seguintes termos:

Art. 7o [...] § 3º Enquadra-se como segurado especial o índio reconhecido108 pela Fundação Nacional do Índio – FUNAI, inclusive o artesão que utilize matéria-prima proveniente de extrativismo vegetal, desde que atendidos os demais requisitos constantes no inciso V do § 4 deste artigo, independentemente do local onde resida ou exerça suas atividades, sendo irrelevante a definição de indígena aldeado, indígena não-aldeado, índio em vias de integração, índio isolado ou índio integrado, desde que exerça a atividade rural individualmente ou em regime de economia familiar e faça dessas atividades o principal meio de vida e de sustento109.

108 Sobre o reconhecimento étnico de comunidades indígenas resistentes, vide recente pesquisa desenvolvida por

Rayanne de Sales Lima (2016).

109 Para a comprovação do exercício de atividade rural pelo indígena, a norma estabelece como uma das

possíveis provas a apresentação de “certidão fornecida pela FUNAI, certificando a condição do índio como trabalhador rural, observado o § 1º do art. 132” (art. 115, XI, da IN INSS/PRES no 45/2010).

Logo, exercendo a/o indígena, individualmente ou em regime de economia familiar, atividades semelhantes àquelas desenvolvidas pelo trabalhador rural, poderá ser ele enquadrado como segurado especial do RGPS, passando assim, desde que preenchidos os demais requisitos, a ter direito ao recebimento dos benefícios e serviços previdenciários110.

Com isso, via de regra, será a/o indígena qualificada/o como segurada/o especial, já que “dificilmente haverá outra forma de enquadramento, a não ser que a atividade exercida afaste- se dos costumes e das tradições, assumindo conotação eminentemente econômica” (COELHO, 2007, p. 6775).

Também no plano infraconstitucional brasileiro, há que se ressaltar que o próprio Estatuto do Índio, Lei no 6.001, de 19.12.1973, ainda que editado sob os influxos

assimilacionistas anteriores à Constituição de 1988, veda a distinção entre os povos indígenas e as/os demais trabalhadoras/es:

Art. 14. Não haverá discriminação entre trabalhadores indígenas e os demais trabalhadores, aplicando-se-lhes todos os direitos e garantias das leis trabalhistas e de previdência social.

Parágrafo único. É permitida a adaptação de condições de trabalho aos usos e costumes da comunidade a que pertencer o índio.

Verifica-se que a norma ressalva a possibilidade de adaptação do trabalho à cultura do povo indígena. Quando trata especificamente da Previdência Social, o Estatuto determina a extensão do regime geral previdenciário aos povos indígenas, “atendidas as condições sociais, econômicas e culturais das comunidades beneficiadas” (art. 55). Nessa mesma linha segue a Convenção no 169 da OIT ao fixar que “Os regimes de seguridade social deverão ser

estendidos progressivamente aos povos interessados e aplicados aos mesmos sem discriminação alguma” (art. 24).

Ao lado disso, vale observar que o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema, que tantas vezes é utilizado como forma de defender a negativa de concessão de certos benefícios previdenciários, ou mesmo com o fim de diminuir os benefícios ou seus beneficiários, não pode ser usado para justificar a diminuição da abrangência da Previdência Social, já que, conforme estabelece a Constituição, o sistema amplo de Seguridade Social visa à universalidade da cobertura e do atendimento. Sobre o ponto, vale realçar o alerta feito por Ibrahim no que concerne especificamente à Previdência Social:

[...] o equilíbrio atuarial de um sistema previdenciário, ao contrário do que possa parecer, não demanda, necessariamente, contribuição adequada para a concessão de benefício individualmente considerada. A ideia tradicional, especialmente nos sistemas públicos de previdência, é a existência de um plano de custeio compatível com um plano de benefícios, genericamente considerado. Ou seja, a análise é macro, e não micro – deve-se ver o todo, e não o particular (IBRAHIM, 2012, p. 552).

Denise Gentil (2006) defende que se considere o orçamento da Seguridade Social de forma separada do orçamento da União, afirmando que, dessa maneira, não haveria que se falar em déficit orçamentário. Justifica seu argumento tendo em vista o múltiplo financiamento da Seguridade Social previsto pela Constituição de 1988 em seu art. 195, que abrange receitas variadas111. Após fazer uma análise financeira da Seguridade Social no

período de 1990 a 2005, a pesquisadora afirma que, em alguns anos, houve superávit operacional no fluxo de caixa da Previdência Social – como exemplo, a autora cita o ano de 2006, com superávit de R$ 1,2 bilhões – e que, caso se considere a Seguridade Social como um todo, o excedente seria ainda maior.

Alguns princípios constitucionais que informam a Seguridade Social merecem ser destacados nesse ponto. Assim, a equidade na forma de participação no custeio demonstra a finalidade de “implementação de uma justiça distributiva, na medida em que, a fim de obter uma forma de financiamento equitativa, cada contribuinte participe dentro de suas possibilidades.” Por sua vez, a diversidade da base de financiamento revela o encargo da sociedade em geral que “é responsável pelo financiamento do Sistema de Seguridade Social através de receitas provenientes dos entes federados [...] oriundas da arrecadação de impostos (forma de financiamento indireto), pelas contribuições sociais (financiamento direto) e outras fontes” (BERWANGER, ZAVASCKI, 2010, p. 3).

Diante desse contexto normativo, como base na Constituição brasileira, bem como nos tratados internacionais e nas normas nacionais infraconstitucionais, podemos inferir, como afirmado acima, que os povos indígenas devem ter os mesmos direitos previstos para os demais cidadãos brasileiros e que as normas previdenciárias devem ser-lhes aplicadas, tendo os povos indígenas direito ao recebimento dos benefícios previdenciários. Ademais, as

111 CR/88: “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos

termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; III – sobre a receita de concursos de prognósticos; IV – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar.”

exigências a serem cumpridas pelos povos indígenas para o recebimento desses benefícios devem observar sua organização social, seus usos, costumes, crenças e tradições.

Tendo em vista esse panorama e no tocante ao recebimento do salário-maternidade pelas mulheres indígenas, vale ressaltar que o trabalho da mulher indígena desde as mais jovens, em regime de economia familiar, faz parte da cultura dos povos indígenas, que deve ser respeitada conforme preconizam a Constituição de 1988 e as normas internacionais mencionadas. Sendo consideradas seguradas especiais, as mulheres indígenas têm direito ao recebimento dos benefícios previdenciários previstos para essa categoria, inclusive ao salário- maternidade.

Ademais, a norma constitucional que proíbe o trabalho a pessoas menores de 16 anos tem a mesma hierarquia constitucional daquela que prevê o reconhecimento da cultura e da autodeterminação indígenas, o que não deve levar à sobreposição de uma em relação à outra, mas sim à ponderação de valores no caso concreto. Isso ocorre tendo em vista que a proibição de trabalho a menores de 16 anos não pode ser usada contra a proteção à maternidade e à infância, mas sempre em seu benefício.