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2.3 Os problemas intrafamiliares

2.3.1 A proximidade com a situação de rua: família ou vizinhança

A vivência nas ruas, em alguns dos casos, não é desconhecida totalmente pela experiência familiar, pois tanto pode ter sido vivenciada por outros familiares quanto por indivíduos que vivem na própria comunidade em que moram.

A realidade compartilhada por moradores de uma mesma localidade e as influências mútuas podem ser percebidas no caso de Isaac, atendido pela ABA. Ele e a mãe moram no Planalto Ayrton Senna, bairro de periferia, situado na parte sudoeste do município de Fortaleza. Isaac é o mais velho dos cinco filhos de Gorete e o único a ter passado por uma experiência de vivência nas ruas.

Gorete não atribui a vivência na rua de Isaac a questões de dificuldades econômicas. Apesar de não gozarem de conforto financeiro, ela dificilmente ficou sem trabalho nos últimos anos. Geralmente, engajava-se em firmas do bairro, serviços como venda de biscoitos, empacotamento de produtos alimentícios, venda de garrafões de água mineral ou trabalhando como empregada doméstica. Ela declara que, apesar de serem pobres, nunca passou por maiores dificuldades, mantendo as condições básicas para os filhos, como alimentação, moradia, roupas, material escolar, etc.

Nesse caso, a mãe afirma que ele foi influenciado pela convivência com um amigo da vizinhança, também criança na época. A família desse amigo, segundo Gorete, costumava pedir esmolas em semáforos próximos ao bairro em que moravam.

Relativizando essa influência como determinante, o fato a se destacar é a atividade de mendigar estar presente no convívio de Isaac. Como Gorete fala, as primeiras idas de Isaac para uma situação de rua ocorreram quando ele tinha entre sete e oito anos.

Ele era muito danado... Aí gostava de tá muito no meio da rua. […]. O Isaac gostava de tá mu ito no meio da rua. Logo no início que ele co meçou ele era pequenininho, não era, ele chegava de noite e tal, sete horas, oito hora, eu d izia assim: „Isaac, tu tava aonde?‟. Ele dizia assim: [...] „Eu tô jogando videogame‟.

Novamente, a justificativa da brincadeira como fator de permanência na rua aparece, como no caso de Maurício (ABA). Isaac justificava a permanência fora de casa por estar jogando videogame. A brincadeira na rua é bastante comum nos bairros de periferia. Como em muitos desses bairros, os espaços públicos de lazer são escassos; a brincadeira, literalmente, acontece na rua. Entretanto, por si só, isso não caracteriza uma situação de vivência na rua. No caso de Isaac, ele passou a mendigar em sinais com o vizinho. Inicialmente, as esmolas angariadas realmente parecem ter sido direcionadas para o gasto com práticas lúdicas, como jogos de videogame. Porém, as saídas de Isaac se tornaram recorrentes, e a mãe, que trabalhava durante todo o dia, parecia não conseguir evitá-las.

Em outro caso, a experiência de vivência nas ruas aconteceu com toda a família. Esta foi a situação vivida pela família de Pilar, mãe de Pietro, também atendido pela ABA.

Pilar é mãe de três filhos, dois homens e uma mulher. Atualmente, mora apenas com os dois filhos em uma casa no bairro São Cristóvão, próximo ao Jangurussu.

Pilar teve os três filhos durante sua adolescência, quando ainda morava com sua mãe. Quando a mãe morreu, logo após Pilar dar à luz a Pietro, ela teve que sair da casa, pois não tinha condições de manter a residência. Por esse motivo, ela e os filhos foram morar nas ruas de Fortaleza. Ela conta:

A minha mãe faleceu, certo, isso há 21 anos. Então, eu fui pra rua com eles três, no meio da rua. Então eu mo rei dois anos no meio da rua, lá na 25 de março. Dois anos no meio da rua co m eles três. E quando ele saiu de perto de mim, o pai dele levou ele co m nove meses, aí eu fiquei co m os dois, entendeu? E esse ali ficou lá. Então, antes dele levar eu já tava ali no meio da rua sofrendo, assim... Sofrendo não! Pedindo esmola, botava o outro pra pedir esmola, lá na base aérea, tá entendendo, porque não tinha o que comer. Aí a nossa casa era lá mesmo.

Sobrevivia, principalmente, como pedinte ou “pastoradora de carro”38. Pilar

passou por diversos abrigos que acolheram ela e seus filhos:

38 Atividade também conhecida como “flanelinha”, cuja função é oferecer uma vigilância baseada na observação de veículos estacionados, geralmente, em logradouros públicos. É co mu m também ser ofertado s, pelos “pastoradores” ou “flanelinhas”, serviços pontuais, como a lavagem dos veículos.

Aí pronto, aí morei no SOS Criança, morei na creche da Tia Ju lia39, que já botei eles lá, Pietro e a men ina, botei na creche da Tia Jú lia. Aí pedi esmo la aqui na base aérea, vim só com essa pra cá, acalmei ali.

Pilar passou por momentos de muita dificuldade, não possuindo sequer um local para morar com os filhos. Tal situação pode ser considerada de “alta vulnerabilidade”, segundo parâmetros dos marcos regulatórios das políticas públicas.

A vivência por que passaram alguns dos indivíduos abordados nesta pesquisa pode ser considerada marginal, sob um ponto de vista sociológico, uma vez que se distancia do imaginário social de uma vida “normal”. O senso comum sugere que, para uma vida “adequada” e “satisfatória”, é necessária uma quantidade de bens de consumo e de confortos. No caso dessa família, efetiva-se uma situação drástica de dificuldade em conseguir o próprio alimento ou mesmo um local para morar – transformando um logradouro público em sua moradia. Assim, essas pessoas realizam estratégias de sobrevivência que fogem à “normalidade” socialmente esperada.

No caso de Pilar, mãe de Pietro (ABA), ela e os filhos passaram por uma situação de extrema instabilidade: a vivência nas ruas. Tal circunstância irá se reproduzir novamente na experiência de seu filho. Por mais que a situação do filho de vivência na rua não seja, necessariamente, consequência da experiência da mãe, essa atitude não é totalmente desconhecida pelos indivíduos.

Retornando ao caso de Maurício (ABA), seu irmão mais velho também passou por uma vivência de rua. O irmão, Leonardo, viveu longos períodos nas ruas, principalmente na região da Beira-Mar, litoral de Fortaleza, compartilhando, algumas vezes, essas vivências com Maurício. Este fato é confirmado nos relatos institucionais, que registram os dois irmãos encontrados constantemente juntos, transitando pela região da Beira-Mar. Leonardo teve sua situação agravada pelo envolvimento com o tráfico de drogas. Por consequência, acabou adquirindo dívidas e rixas com traficantes, que o assassinaram próximo à região onde morava, em uma festa noturna. Segundo a própria Renata, a experiência do primeiro filho influenciou Maurício e, somando-se às condições da região onde moravam, levou-o a uma situação de rua. Há, entre os sujeitos da pesquisa, outra mãe que foi morar nas ruas com toda a família. É o caso de Sofia, cujos filhos, João e José, foram atendidos pelo OPN. Contudo, sua

39 O Abrigo Tia Júlia é u m órgão vinculado à Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social do Estado do Ceará. O objetivo é atender a crianças em situação de “[...] risco pessoal e social, na condição de abandono ou temporariamente impossibilitadas de permanecer co m a família, enquanto são tomadas medidas de retorno ao lar ou de possível adoção, no caso de abandono”. Mais informações disponíveis no site: <http://www.stds.ce.gov.br/index.php/protecao-social-especial/160-abrigo-tia-julia>. Acesso em: 02 jan. 2015.

narrativa aponta como fator motivador dessa vivência seu próprio envolvimento com o uso de drogas ilícitas. Esse assunto específico será melhor apresentado no próximo tópico.

Na pesquisa Desenhos Familiares (GREGORI, 2000a), por exemplo, a relação de outros membros familiares, ou de vizinhos, com a vivência de rua é apontada como circunstância que estimula a ida de crianças ou adolescentes às ruas. De modo geral, destacou-se acima a proximidade com a realidade de vivência na rua experienciada pelos jovens atendidos, o que deixa evidente que não eram situações distantes do cotidiano desses indivíduos.