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A quebra de sigilo bancário sem violação a direitos fundamentais

HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E SIGILO BANCÁRIO

3.3. A quebra de sigilo bancário sem violação a direitos fundamentais

Não há direitos absolutos, ou seja, insuscetíveis de sofrerem restrições.

Os interesses individuais só podem ser vulnerados em função de interesses coletivos e na estrita medida da necessidade, sob pena de se configurar excesso passível de retificação judicial, com incidência, inclusive, de reparação civil e sanção penal, para os casos mais graves.

Resta defeso, portanto, atacar frontalmente o núcleo de tais direitos individuais, sem correspondente interesse público que o possa justificar no caso concreto, resvalando em desmotivada descaracterização do direito fundamental tutelado: o que se deve ter em mente, portanto, em qualquer hipótese, é a busca de uma harmonização que possa resultar nos menores prejuízos possíveis aos interesses legítimos em litígio, os quais podem, sim, ser limitados, mas nunca suprimidos em sua inteireza.

Observe-se que não há direito que deva sempre, em qualquer hipótese, prevalecer sobre os demais, já que a Constituição Federal não estabeleceu a supremacia absoluta de nenhum bem jurídico. Assim, um juízo de ponderação há que sempre se fazer presente, no caso concreto, para desvelar o interesse que deverá prevalecer, ainda que em prejuízo de

algum direito fundamental, através do sopesamento dos valores que estão impregnados nos direitos em litígio.

Os direitos à intimidade e à privacidade não estão sujeitos à reserva de lei, cabendo aos juízes e Tribunais, portanto, decidir sobre sua limitação ou restrição no caso concreto. Observe-se, contudo, que o julgador não se encontra absolutamente livre para decidir como melhor lhe aprouver, cabendo, ao revés, escudar-se em princípios constitucionais explícitos e implícitos, a fim de decidir de acordo com o espírito que emerge da própria Carta Constitucional.

Já o suposto direito fundamental ao sigilo bancário e suas hipóteses de quebra ou transferência, encontram-se regulamentados pelo legislador ordinário. Observe-se, entretanto, que não há qualquer referência constitucional nesse sentido, não se tratando de remessa do texto constitucional a lei ordinária para hipóteses restritivas de tal direito.

A questão está em se aferir se, de fato, o sigilo bancário se insere, em sua essência, nas características que embasam a definição da intimidade e privacidade como direitos fundamentais.

Aspecto interessante consiste em observar a referência constitucional expressa aos direitos ao sigilo da correspondência, de dados260 e das comunicações telefônicas261, por exemplo, isso sem falar na inviolabilidade de domicílio262, nada obstante sua estreita vinculação, em todos esses casos listados, com os direitos à intimidade e privacidade.

260 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 1997, p. 145.

261 “Art. 5. XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.

262 “Art. 5. XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Segundo José Afonso da Silva263, o reconhecimento da inviolabilidade do domicílio como direito fundamental implica reconhecer que o homem possui “direito fundamental a um lugar em que, só ou com sua família, gozará de uma esfera jurídica privada e íntima, que terá que ser respeitada como sagrada manifestação da pessoa humana”.

Já sobre o sigilo da correspondência264, identifica o mesmo autor que “nele é que se encontra a proteção dos segredos pessoais, que se dizem apenas aos correspondentes. Aí é que, não raro, as pessoas expandem suas confissões íntimas na confiança de que se deu pura confidência”. Paulo da Costa Júnior265 observa ainda que “representa a correspondência uma das facetas do poliédrico direito à intimidade e uma das manifestações específicas da liberdade individual que integra os direitos da personalidade”. Alexandre de Morais266, ao tempo em que cita farta jurisprudência relativa a gravações ilícitas de conversações telefônicas, observa que “a realização clandestina de conversas acaba por atentar frontalmente com diversos direitos constitucionalmente garantidos, e, principalmente, contra a inviolabilidade da vida privada e da intimidade”- sic.

Resta arrefecido, nesse contexto, o argumento de que a explícita referência, no texto constitucional, ao direito ao sigilo bancário se faz desnecessária, ante a sua suposta imbricação com os direitos da personalidade insculpidos no inc. X do art. 5º. da CF.

263 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 203; 416. No mesmo sentido: MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 1997, p. 142; AIETA, Vânia Siciliano. A garantia da intimidade como direito fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 1999, pp. 126-9.

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SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 11 ed. São Paulo: Malheiros, 1996, pp. 203; 416-7. No mesmo sentido: AIETA, Vânia Siciliano. A garantia da intimidade como direito fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 1999, pp. 123-6.

265 COSTA Jr. Paulo José da. O direito de estar só. Tutela penal da intimidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 78.

Observe-se, ainda, o perfil dos direitos à intimidade/privacidade, que denota irrenunciabilidade267 de seus conteúdos ou, pelo menos, seu limitado poder de disposição, como requisito da preservação da existência digna da pessoa humana e, doutra banda, o pleno poder de disposição dos direitos de cunho patrimonial268, relacionados diretamente ao sigilo bancário.

A esse respeito, questiona André Barbeitas269:

“Como equiparar, sem maiores questionamentos, as corriqueiras trocas de ativos financeiros, que o indivíduo inserido no mercado consumidor pratica, visando às aquisições de mercadorias e serviços, com a noção de dignidade do ser humano? Será que sempre que adquirir um bem de consumo qualquer mediante a transferência de ativos financeiros o indivíduo estará projetando a sua personalidade de tal forma que justificará a tutela do sigilo bancário como expressão da proteção constitucional do resguardo à intimidade e à vida privada? E, ainda que a resposta seja afirmativa, não teriam que ser sopesados outros interesses atinentes à vida em comunidade?”.

O que se tem, ao revés, é que, em caráter excepcional e esporádico, tais movimentações financeiras podem, sim, deixar entrever aspectos da intimidade do particular. De fato, a intimidade pode se ver vulnerada pela quebra do sigilo bancário em caráter eventual, quando as informações obtidas através das movimentações financeiras espelham fatos relevantes e embaraçosos relativos à intimidade270 do titular e são, irresponsavelmente, disponibilizadas ao público em geral. Trata-se, assim, de exceção, não da regra!

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Ou inalienabilidade, como prefere Vânia Aieta, no sentido de que o direito à intimidade pode até não ser exercido, em caráter provisório, mas jamais dele se pode abdicar, em termos definitivos. AIETA, Vânia Siciliano. A garantia da intimidade como direito fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 1999, pp. 112- 4.

268 O poder de disposição dos direitos de propriedade assegura, segundo Arnoldo Wald, “a possibilidade de destruir ou transformar a coisa, alterando sua natureza, podendo ainda modificar a relação jurídica existente, alienando a coisa ou cedendo parte dos poderes que sobre ela pode exercer”. WALD, Arnoldo. Direito das coisas. 9 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, pp. 33-4.

269 BARBEITAS, André Terrigno. O sigilo bancário e a necessidade de ponderação de interesses. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 63-4.

270 Por exemplo, pagamento de gastos em motel, subsídio pago a partido fascista ou despesas com tratamento de doença desconhecida do público e até da família.

Mais evidente se torna a incoerência da direta relação que se pretende instituir entre as esferas da intimidade e privacidade e o instituto do sigilo bancário quando se trata de pessoa jurídica, até porque a dignidade da pessoa humana não estaria em jogo nesse particular, sem falar nas maiores limitações que a matéria enseja à idéia de direitos da personalidade.

Nos Estados Unidos, em 1976, a Suprema Corte concluiu que a 4ª Emenda271, ao tutelar o direito à proteção da própria pessoa, casa e documentos contra medidas governamentais não razoáveis, não se constitui em fundamento do sigilo bancário.

Sobre a matéria, Richard Alexander272 relata que:

“On April 21, 1976, the Supreme Court reversed the judgment of the Fifth Circuit in United States v. Miller, holding that the bank depositor had no legitimate expectation of privacy in the contents of checks and deposit slips since the documents were not confidential communications, but rather were negotiable instruments voluntarily conveyed to the bank. Moreover, the Court ruled that the fourth amendment does not prohibit a third party from obtaining information and conveying it to the government”.

Um outro aspecto interessante reside na possibilidade de danos ao cidadão, consectários da revelação de seus dados bancários. Ora, em regra, se tais informações se mantiverem reservadas aos partícipes do processo, eventual dano futuro só irá ocorrer se, de fato, as investigações resvalarem em conclusões que apontem para a prática de delitos por parte do indivíduo: não pode merecer respaldo, é certo, qualquer proteção a essa ameaça de dano, cabendo sim, ao contrário, o dever estatal de responsabilização do agente em todas as esferas previstas no direito brasileiro.

271 Emenda IV: “Não será infringido o direito do povo à inviolabilidade de suas pessoas, casas, papéis e haveres, contra buscas e apreensões não razoáveis e não se expedirá mandado, a não ser mediante indícios de culpabilidade, confirmados por juramento ou declaração, e nele se descreverão particularmente o lugar da busca e as pessoas ou coisas a serem apreendidas” – tradução livre.

272 ALEXANDER, Richard. Privacy, banking records and the Supreme Court. Disponível em:

Noutras palavras, se a transmissão de dados se deu na esfera restrita de um processo judicial ou de um procedimento investigatório preliminar, sem qualquer transbordamento anterior à efetiva conclusão processual com a condenação definitiva do investigado, não há que se falar em dano à esfera íntima do cidadão e, muito menos, à sua dignidade.

Como se depreende, o delineamento da matéria não é assim tão nebuloso como se intenta argüir: é certo que o caso concreto273 é que irá definir os parâmetros a serem seguidos em relação à necessidade e conveniência da medida a ser adotada.

Nada obstante, o bom senso permite-nos aquilatar eventuais excessos e reprimi- los de imediato, sem qualquer prejuízo maior irreversível que possa justificar defesa tão intransigente, radical e, muitas vezes, irracional do sigilo bancário.

Nesse sentido, o que está a merecer imediata e constante reprimenda são justamente os excessos, ou a tônica da exorbitância274 e do abuso do direito, que permeiam toda conduta arbitrária e desmedida. Ao intérprete caberá, portanto, manter uma distância razoável de tais instâncias, contrárias aos mais sublimes princípios que norteiam o Estado de direito democrático.

273 Carlos Roberto Castro observa que: “dada a crescente nebulosidade entre as fronteiras do interesse coletivo e do interesse particular, sua determinação não pode se procedida de forma abstrata e apriorística, mas sim em cada caso concreto pelos órgãos e instituições incumbidas da tutela contenciosa dos direitos e garantias fundamentais, máxime os agentes do Poder Judiciário, ou seja, mediante a definição casuística e tipificadora do case system que informa a tradição jurisprudencial anglo-americana”. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 531.

274 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais. Rio de Janeiro, Forense, 2003, p.530.

3.4. A necessidade de novos rumos e critérios interpretativos para ruptura da estreita

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