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A legitimidade do Órgão Ministerial para acesso direto aos dados bancários

CONTORNOS RECLAMADOS PELO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO: A RELATIVIZAÇÃO DO SIGILO

5.3. A legitimidade do Órgão Ministerial para acesso direto aos dados bancários

Uma peculiaridade carente de explicação lógica é o fato de a autoridade fazendária (art. 6º, LC 105/01 e art. 2º, Dec. 3.724, de 10.01.2001), estar autorizada a transferir, diretamente, o sigilo bancário, dês que haja fiscalização em curso, sem qualquer interferência do Poder Judiciário, ao tempo em que, opostamente, tal autorização judicial mostra-se inamovível nos casos de investigações perpetradas pelo Ministério Público, ainda que os interesses investigatórios do órgão do Parquet, na condição de dominus litis, tanto na esfera penal, de modo privativo, quanto na seara civil, como agente mais atuante em defesa dos interesses da sociedade, demonstrem a indispensabilidade de tal medida excepcional.

O que ocorre, como sê vê, é que apenas o Ministério Público, enquanto agente preponderantemente interessado nos dados bancários, foi privado de tal prerrogativa, já que as CPIs (detentoras de poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias) e as próprias autoridades fiscais, integrantes da estrutura fazendária da União, Estados e

447 Héctor Escola fala de uma nova concepção de legalidade em relação à atuação estatal, que se desprega do excessivo formalismo e se volta a um aprofundamento visando a “alcanzar uma plena justificación, sobre la

oportunidade, mérito y conveniencia de tales actos, o más concretamente, sobre su eficacia para alcanzar el interés público y el bienestar de todos”. ESCOLA, Héctor Jorge. El interes público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1989, p. 263.

448 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, pp. 32; 69-70.

Municípios, podem fazê-lo direta e motivadamente, sem qualquer plausibilidade em se justificar posição desinteressada no deslinde da questão, sobretudo no último caso.

Observe-se, ademais, que, a rigor, a reserva de jurisdição só há que ser tida como impostergável em hipóteses expressamente previstas na Constituição Federal, como é o

caso do art. 5º, inc. LXI (prisão, salvo em flagrante); XI (busca domiciliar) e XII (interceptação ou escuta telefônica).

Em tais situações, até as CPI´s (que não possuem o poder geral de cautela conferido ao Judiciário) hão que depender da intervenção de magistrado para a adoção das providências afetas, de modo exclusivo e indelegável, ao Poder Judiciário449.

Na ementa do julgamento do MS 23.480-6/RJ450 restou evidente o entendimento do STF em relação ao assunto, senão vejamos:

“2.Quebra ou transferência de sigilos bancário, fiscal e de registros telefônicos que, ainda quando se admita, em tese, susceptível de ser objeto de decreto de CPI – porque não coberta pela reserva absoluta de jurisdição que resguarda outras garantias constitucionais – há que ser adequadamente fundamentada...”

Lênio Streck, em trecho onde se refere ao sigilo fiscal, mas que se torna perfeitamente aplicável à hipótese de sigilo bancário, assim observa:

“Há quem esgrima o argumento da reserva de jurisdição, isto é, a alegação de que a quebra do sigilo fiscal deveria seguir a mesma regra do sigilo das comunicações telefônicas, mediante ordem judicial. Na verdade, esse argumento não encontra fundamento constitucional, porque o sigilo fiscal não recebeu proteção constitucional, o que não deixa de guardar coerência com a idéia do Estado-Social-Fiscal que exsurge da CF/88”.

O princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade merece aqui ser posto em xeque, quando se observa, em relação à LC 105/2001, tratamento da matéria que

449 Voto do relator no MS 23.533-5 - DF- Rel.: Min. Néri da Silveira - J. em 29/11/2000 - DJ 01/03/2002 - Pleno - STF. Apesar de corroborar tal entendimento, Liliane Turra dispensa à autoridade judiciária exclusividade no poder de eximir as instituições financeiras do dever de segredo, nada obstante a ausência de qualquer previsão constitucional nesse sentido, o que suscita certa incoerência lógica. TURRA, Liliane Maria Busato Batista. A quebra do sigilo bancário como meio de prova no direito processual civil brasileiro. Dissertação de mestrado apresentada em 2001 junto à PUC/PR - Faculdade de Direito, sob a orientação do Prof. Francisco Carlos Duarte, arquivada da biblioteca da PUC/PR/BC, pp. 49-51.

restringe o sigilo bancário não adequado às relações meio-fim451, já que os objetivos perseguidos pelo legislador não se encontram inteiramente justificados, ante a não inclusão, em relação ao órgão ministerial, de atribuições para transferência direta do sigilo, em detrimento de órgãos administrativos integrantes próprio do Poder Executivo.

Tais hipóteses refletem, em verdade, desvios do legislador que podem indicar, inclusive, vulneração dos limites imanentes de suas prerrogativas, o que merece reparos por parte da autoridade judiciária, para resguardo das diretrizes relativas a competências legislativas, ditadas pelo texto constitucional.

Pode-se inclusive chegar à conclusão de que a Lei Complementar 105/2001 estabelece verdadeira discriminação carente de razoabilidade em relação às autoridades com poderes para quebra do sigilo bancário: trata-se de lei restritiva de conteúdo casuístico452 que viola a igualdade material entre os entes interessados em procedimentos investigatórios que não prescindem da análise de informações bancárias dos investigados, como é o caso das autoridades fazendárias e do Ministério Público.

A defesa de argumentos voltados ao poder requisitório do Órgão Ministerial em relação a dados bancários não retira a necessidade de motivação do ato administrativo de requisição, tampouco a possibilidade de intervenção do interessado em alguns casos de solicitação de dados bancários, ainda antes da instauração do processo judicial propriamente dito.

Nessa última hipótese, em se verificando eventuais abusos nas condutas administrativas pretendidas, poderá o investigado fazer uso de instrumentos processuais

451 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. Estudos de direito constitucional. 2 ed. São Paulo: Celso Bastos, 1999, pp. 42-4.

452 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. Estudos de direito constitucional. 2 ed. São Paulo: Celso Bastos, 1999, pp. 40-1.

idôneos a obstaculizar qualquer conduta porventura ofensiva a liberdades individuais suas. A propósito, na seara federal, há previsão expressa nesse sentido, consubstanciada na Lei 9.784/99, em seu art. 50, inc. I e parág. 1º e art. 26, parág. 3º.

Não se trata, assim, de controle prévio do Poder Judiciário, capaz de criar entraves à eficaz e plena investigação pretendida, mas concomitante ou posterior, respeitando-se, em casos que tais, o contraditório e a ampla defesa, previstos para o processo administrativo no art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal.

Ressalte-se, mais uma vez, que o contraditório pleno ainda na fase ajudicializada só haverá que se instaurar quando o caso não suscitar providência diferente, já que o inquérito se constitui em procedimento de natureza eminentemente inquisitiva453, tendo em vista os riscos de prejuízos à investigação que podem defluir da prematura ciência, por parte do indiciado, das provas a serem coletadas.

Noutras palavras, a prévia intimação administrativa do particular apenas não se mostra oportuna se o caso sugere a prática de delitos de lavagem de dinheiro, sob pena de se comprometer a eficácia do controle454. Aliás, têm os Tribunais Superiores455 pátrios decidido, através do exercício de ponderação de interesses em casos concretos, que a necessidade de se apurar a prática de atividade criminosa se sobreleva ao direito à intimidade.

453 A propósito, o STF reconhece expressamente a natureza inquisitiva do inquérito, afirmando ser incabível, nesse âmbito, eventual invocação da garantia constitucional do contraditório. Ainda na mesma decisão, referindo-se a procedimento de quebra de sigilo bancário na fase pré-processual, observa ser impassível de cogitação a instauração incidental do contraditório em “procedimento nitidamente qualificado pela nota da unilateralidade e da inquisitividade”. Agr. Reg. em Inq. n. 897-4/DF – Pleno – voto Min. Celso de Mello. 23.11.94. DJU de 24.3.95, p. 6806.

454 BARBEITAS, André Terrigno. O sigilo bancário e a necessidade de ponderação de interesses. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 114-5.

Ora, por que tal solução456 não poderia ser utilizada em favor dos demais órgãos de investigação, ainda que com a prévia notificação do interessado, o qual, através dos remédios constitucionais disponíveis, passaria a dispor da prerrogativa de argüir eventual impropriedade da medida, socorrendo-se de processo judicial destinado a um mais acurado deslinde da matéria?

No México, por exemplo, a Procuradoria Geral da República, através de seus altos funcionários, pode requisitar diretamente aos bancos quaisquer informações relevantes para as investigações prévias de interesse do Ministério Público.

Parcela da doutrina nacional457 tem se pronunciado sobre a possibilidade de determinação de transferência de sigilo diretamente pela autoridade ministerial, com base no preceito contido no art. 129, VI, da CF, tendo em vista se tratar de hipótese de exceção ao sigilo com status constitucional, sem prejuízo do realce quanto à necessidade de suficiente demonstração, caso a caso, da existência de indícios idôneos que apontem para a autoria de ilícito pela pessoa que se intenta investigar.

Além do dispositivo acima, a LC 75, de 20.05.1993, preconiza em seu art. 8º, § 2º, a impossibilidade de imposição de sigilo ao Ministério Público, sob qualquer pretexto458, ressaltando-se, é certo, o dever de resguardo do sigilo em relação às informações a serem obtidas. Do mesmo modo, o art. 8º, § 2º, da Lei 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do

456 BARBEITAS, André Terrigno. O sigilo bancário e a necessidade de ponderação de interesses. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 64.

457 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 86; MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 230.

458 Alexandre de Moraes destaca que “a única limitação constitucional ao poder de requisição do Ministério Público é a determinação de regulamentá-lo por meio de lei complementar (CF, art. 129, VI)”, acrescentando que tal regulamentação se deu, justamente, através da LC 75/93. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 86; MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, p. 230.

Ministério Público) estatui de modo expresso a impossibilidade de invocação de sigilo em face de requisições do Ministério Público Estadual.

A propósito, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Francisco Rezek, ao se pronunciar sobre argüição incidental de inconstitucionalidade que questionava a incompatibilidade do supracitado dispositivo legal com o art. 5º da CF, no MS 21.729/DF459, pronuncia-se no sentido de que citado dispositivo imprimiu seqüência curial e necessária ao art. 129, VI, CF. Eis as palavras do preclaro Ministro:

“ O Ministério Público não age na sombra: têm a melhor forma documental suas requisições do gênero, a que, na linguagem da norma em exame, não se há de opor, sob qualquer pretexto, a exceção do sigilo. Para que assim não fosse, era preciso que a Carta mesma entronizasse tal sigilo. Ela decididamente não o faz no caso de operações bancárias, e custo a imaginar o Ministério Público requisitando informações sob o domínio- este sim resguardado pelo texto maior- da estrita intimidade das pessoas ou das comunicações (...)”- grifo nosso.

Dispõe-se assim, à exaustão, de argumentos legais que justificam o direto acesso do órgão ministerial a informações bancárias de pessoas sob investigação. Outra importante observação é a de que tais dados somente poderão ser utilizados para os fins que justificaram a quebra do sigilo460, não cabendo se falar em prova emprestada, como bem já decidiu o Supremo Tribunal Federal461.

No mesmo sentido, em decisão de 1995, o Tribunal Regional Federal da 1ª região, através de sua 4ª Turma, assim decidiu: “O Pretório Excelso outorgou ao Ministério Público o direito de pedir quebra do mesmo (sigilo bancário), quando o indiciado ou réu estiver sendo acusado de apropriação de bens públicos”462.

459 MS 21.729/DF, DJ 16-10-1995 – STF - Pleno - Relatório Originário Min. Marco Aurélio - Rel. p/ Acórdão Min. Francisco Rezek, 5-10-1995.

460 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2001, pp. 86-7.

461 STF – Pleno - Inq. nº 923/ DF - Rel. Min. Moreira Alves, decisão: 18-04-96 - Informativo STF nº 27. 462 TRF - 4ª T - MS nº 92.01.20115-0/RO - Rel. Juíza Eliana Calmon - j. 18-12-1995; v.u. - Ementário AASP nº 1979 – 27/01 a 03/12/1996, p. 95 - e.

Como se vê, dispositivos legais que apontam para o acesso direto do Ministério Público a dados bancários que interessem a procedimentos investigativos, civis e criminais, de fato, existem à exaustão: a construção jurisprudencial e doutrinária é que necessita caminhar, sem titubeios ou tropeços, no mesmo sentido apontado pelo direito positivo.

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