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A quem cabe a responsabilidade do ensino primário? Livre expressão

2 ASSOCIATIVISMO PEDAGÓGICO: RESPOSTA AOS PROBLEMAS DO

2.3 A LIVRE INICIATIVA COMO MODELO DE ORGANIZAÇÃO

2.3.3 A quem cabe a responsabilidade do ensino primário? Livre expressão

A situação do ensino primário brasileiro, atrelada aos altos custos da escolarização, trouxe para o seio das ligas pernambucana e sergipana uma antiga questão: ―A quem deve cabe a responsabilidade do ensino primário?‖ (E.A, 1920, p. 3). Ao colocar em pauta o assunto, as associações firmaram-se como lugares de sistematização de discursos e canais de propagação de uma opinião pública, como fazem as sociedades livres em geral. As opiniões dividiam-se à época entre os defensores da União e da Municipalização, embora tenha predominado no contexto estudado a primeira alternativa como resposta às questões suscitadas pela liberdade do ensino.

A Constituição Federal do Brasil de 1891, vigente até 1934, tratava da educação em três artigos. No Art. 30 determinava a União legislar acerca do ensino superior. No Art. 35 determinava a criação de instituições de ensino superior e secundário por parte da União. No Art. 72 estabelecia a laicidade do ensino a ser ministrado nos estabelecimentos públicos (BRASIL, 1891). Contudo, na Carta Magna inexistiam referências ao ensino primário e essa ausência foi o mote das várias interpretações em torno da obrigatoriedade e organização desse nível de ensino no âmbito dos estados e municípios, bem como da iniciativa privada. Ainda no Império, as Assembleias Provinciais legislaram acerca da instrução primária e secundária nas diferentes regiões, em função das determinações da Lei n. 16, de 12 de agosto de 1834, a qual alterou a Constituição Política do Império, nos termos da Lei de 12 de outubro de 1832 (BRASIL, 1832). Na Republica, o principal argumento para a ausência da União nos assuntos do ensino primário foi a ―institucionalização legal do ensino livre‖.

O Decreto n. 8.659, de 5 de abril de 1911, que aprovou a Lei Orgânica do Ensino Superior e do Fundamental na Republica, concedeu autonomia didática e administrativa às instituições públicas de ensino superior e secundário (BRASIL, 1911). Publicada no Governo de Hermes da Fonseca e do Ministro da Justiça, Rivadávia da Cunha Corrêa (1866-1920), o instrumento legal conhecido por ―Lei Rivadávia‖, desoficializou o ensino no país e liberou a criação de instituições educacionais superiores pela iniciativa privada, dispensando a equiparação entre instituições modelares. De acordo com o instrumento legal, o ensino livre seria fiscalizado por um conselho superior, responsável por garantir a execução de propostas pedagógicas pautadas na difusão do conhecimento científico, único capaz de gerar as forças intelectuais necessárias ao progresso material do país. Somente por intermédio da educação seria possível ao Brasil alcançar uma consciência para o trabalho conforme os ditames da sociedade moderna. Quanto à educação primária, dizia respeito ao ambiente doméstico e devia ser provida pela mulher.

A crítica formulada no interior das ligas pernambucana e sergipana contra aquelas medidas pautou-se na conclusão de que o estado republicano reproduzia o comportamento do passado imperial ao investir no ensino superior, nas artes e ofícios em detrimento da instrução primária. A República, assim como o Império, induzia os estados e municípios a arcarem com o ônus de um ensino para o qual não havia recursos. A lei vigente não podia servir a causas contrárias à pátria na visão dos defensores do ensino primário obrigatório, de modo que o Governo Federal não ofenderia a Constituição por difundir a educação moderna. Ao contrário, o Estado daria um exemplo dignificante se trabalhasse em conjunto com as ligas contra o analfabetismo, por que:

[...] no Brasil não houve até hoje uma só providência governativa pela verdadeira e geral diffusão do ensino primário, em prol da extinsão progressiva do analphabetismo brasileiro! Sequer o ensino secundário oficial estaria assentado nos princípios modernos educacionais, não obstante os avanços garantidos pela ‗Lei Rivadávia‘. (AMBAZUJA, fev. 1920, p. 6). Para os críticos, a Lei Rivadávia gerou uma indústria da diplomação e uma série de reformas despropositadas, contraditórias do ponto de vista da orientação e do método de ensino. Contra o estado de imoralidade advindo da falta de controle, propunha-se a ação conjunta, uniforme e regulada para o ensino primário. Um misto de esperança e ironia deu tom às discussões quando o Ministro da Justiça, Alfredo Pinto Vieira de Melo (1863-1923), solicitou aos estados os números de escolas primárias existentes, alunos matriculados, frequência e total de gastos dispendidos em 1920. Os dados comporiam um relatório que seria examinado para tomada de providências ―de caráter federal, concernentes á diffusão do ensino primario no Brasil.‖ (PELA DESANALPHABETIZAÇÃO..., abr. 1920, p. 2).

Um ano depois ocorreu a Conferência Interestadual de Ensino Primário. O Ministro da Justiça realizou esse evento para articular os sistemas estaduais do ensino e a nacionalização das escolas primárias. Todavia, diferentemente de representar a proposta difundida pelas ligas contra o analfabetismo, um discurso estatal centralizador adentrou o debate educacional naquele momento com clara intenção de descaracterizar a propaganda do ensino primário anterior. Esse discurso chama atenção por ter prevalecido na história da educação brasileira:

Passou a fase de literatura, — prossegue o Ministro Alfredo Pinto — das considerações enfáticas e pessimistas, das estatísticas impressionantes, apontando os males do analfabetismo. Precisamos, antes, de uma resolução, eficientemente prática.

Dados oficiais recentes, colhidos por este Ministério permitem asseverar que, em várias circunscrições do país, mais de 90% das crianças estão privadas do ensino e na mais absoluta ignorância. (BRASIL, 1946, p. 8-9)

Depois de cinco anos da propagação do ensino primário pelas sociedades livres, o Estado brasileiro se arvorava o título de salvador da pátria, único capaz de liberar o país da apatia e do propagado ―indiferentismo criminoso‖. Entretanto, um histórico de reformas voltadas para o ensino secundário e superior provava o fato de o analfabetismo permanecer subjugado por muito tempo (O ENSINO..., nov./dez.1923).

Se não fosse pela pressão fomentada pela opinião pública dificilmente se poderia esperar aquele início de discussão oficial. Vale lembrar o discurso de Mário Pinto Serva, da LNSP, difundido regionalmente, ante a proximidade do Primeiro Centenário de Independência e do persistente analfabetismo no Brasil. Em 1921 ele acusava a nação brasileira pelo insucesso do combate ao analfabetismo. Porquanto:

A unica commemoração condigna do centenario da Independencia nacional é a celebração de um Congresso de Educação, é a instalalação de milhares de escolas no Brasil inteiro, é a fundação de um Ministério Nacional de Educação, é a organização de milhares de cursos nocturnos para adultos, é creação de bibliothecas ás centenas ou milhares em todos os recantos do Brasil, é a instituição por toda parte de escolas profissionaes ou technicas. (SERVA, jun./jul. 1921, p. 2).

Em tal perspectiva, quaisquer outras formas de comemoração serviriam, apenas, para provar a falta de consciência da nação brasileira. Que sentidos teriam os festejos para a população de iletrados, pobres, doentes e inconscientes? O momento devia, sim, ser celebrado com congressos científicos, com o estabelecimento de uma programação nacional de reconstrução social, de construção de instituições novas. Se não havia recursos para assegurar o acesso à escola de todas as crianças, de igual modo não devia haver recursos para festas.

O debate do momento dizia respeito à federalização. Para este estudo, a federalização emerge da própria concepção associativa, não obstante as muitas possibilidades interpretativas. Em uma perspectiva teórica fundada na realidade, a federação representa o princípio máximo da constitucionalidade O Governo Federal tem um poder limitado, indispensável à garantia da unificação política e econômica. Esse poder é descentralizado, porque voltado para autonomia das comunidades, onde a vida concreta se realiza. É nas instituições regionais e locais que as preocupações reais dos seres humanos se expressam. A sociedade civil representa a federação porque integra uma unidade maior, baseada em preocupações militares e econômicas, e uma comunidade territorial diferenciada por certos costumes, tradições, língua etc., com poder para sustentar governos independentes. As sociedades federais desenvolvem-se a partir da solidariedade grupal entre coletividades locais. Foi esse modelo de federalismo que permitiu a fundação do estado democrático americano;

um modelo de estado capaz de limitar a soberania absoluta dos estados, de garantir a liberdade e igualdade (TOCQUEVILLE, 1987).

Quanto se trata do ensino primário, os discursos acerca da centralização/descentralização política e administrativa do Estado ficam mais evidentes nos projetos de lei. Elomar Tambara (2004, p. 4), ao tratar das vozes esquecidas do Congresso Nacional, mostrou que a pesquisa histórico-educacional brasileira tem privilegiado os projetos aprovados de reforma da educação, em detrimento de outras manifestações controversas ou auxiliares as decisões finais. Isso me obriga a atentar para a discussão desenvolvida no interior da LSCA acerca do projeto de lei do Deputado amazonense Antônio Monteiro de Souza (1872-1936), apresentado na Câmara dos Deputados em 5 de junho de 1914.

O autor do projeto defendeu a tese de que escolarizar era mais que instruir; era formar homens na moderna acepção do termo. A escola moderna devia implantar na consciência de cada indivíduo o princípio subjetivo da obediência, do cumprimento do dever. Para tanto, devia cultivar o conhecimento histórico e científico, além do conhecimento da realidade social. Devia estabelecer os deveres dos cidadãos, conforme o nível atual de civilização e desenvolvimento particular do país, porque nisso consistia a educação voltada para democracia ou para o self governament. É claro que tal educação demandaria investimentos materiais e toda a ajuda necessária por parte da União.

Ainda de acordo com Antônio Monteiro de Souza, o Governo central precisava ser tão animado quanto às células do organismo social e não se deixar abater pela apatia que viesse dos governados para fazer tal projeto educacional vingar. Não podia existir governo forte e nação fraca ou vice-versa. Era no equilíbrio de forças que residia a solução para os problemas do Brasil. Finalmente, a União assumiria a educação primária em vez de abandonar à iniciativa privada e aos cuidados regionais. A União caberia educar as massas camponesas e operárias. Caberia incutir em todos os brasileiros o ideal patriótico, para que cada pai de família passasse a reconhecer a importância de educar o filho e cada filho entendesse o porquê de estar nos bancos escolares. Nesse projeto apresentaram-se os indícios da pedagogia compartilhada pelas instituições pesquisadas. O caráter pedagógico das associações será discutido no próximo capítulo, a partir da base teórica que orienta a definição dos fins e meios institucionais, emoldurados na metáfora da luz.

3 PEDAGOGIA DA LUZ: ASSOCIAÇÃO DE IDEIAS E PRÁTICAS RACIONAIS DE