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1.1 APRENDIZAGEM SOCIAL: A FUNÇÃO EDUCATIVA DO ORÇAMENTO

1.1.3 A questão da aprendizagem no orçamento participativo

particular, sendo as generalizações muitas vezes vagas demais para explicá-los.

Conforme Souza (2001), o modelo de orçamento participativo tem seus precedentes ainda no regime militar, onde práticas e experiências difusas de participação popular com o incentivo dos governos municipais e em oposição ao regime autoritário possibilitaram que novas relações fossem sendo construídas entre Estado e sociedade civil. Entre os casos mais marcantes temos os de Lages-SC e de Boa Esperança-ES, onde entre 1978 e 1982 o governo municipal realizou diversas ações de infraestrutura junto com a população. As ações baseavam-se tanto em consultas prévias como em mutirões para a construção de casas próprias. Outras experiências de caráter consultivo que foram menos conhecidas ocorreram em Vila Velha-ES (1986-1988), Diadema-SP (1983-1988) e em Piracicaba-SP (1978-1982), conforme Pires (2000).

Para Pires (2000), o orçamento participativo tem seu segundo momento de desenvolvimento após a redemocratização e com a promulgação da Constituição de 1988. Nesse instante, observa-se a maior consolidação de seu formato. Sua difusão passa a ser associada às conquistas do Partido dos Trabalhadores (PT) a governos municipais. As experiências dessa fase deram-se entre 1989 e 1992 com destaque para municípios como Porto Alegre-RS, Piracicaba-SP, Santo André-SP, Betim-MG, Santos-SP e São Paulo-SP.

No período de 1993 em diante, o orçamento participativo tem maior visibilidade, sendo praticado por governos de partidos diferentes do PT. Essa prática passa a ser vista como forma inovadora tendo papel na consolidação das instituições democráticas brasileiras. Nesse instante, houve o aumento de sua visibilidade por organismos multinacionais e o início da produção de diversos trabalhos e reflexões acadêmicas sobre o assunto (SOUZA, 2001). Destaque para os estudos realizados pelo então já aclamado intelectual português Boaventura de Souza Santos, que viu no orçamento participativo, principalmente através da análise do caso de Porto Alegre-RS, um exemplo de reinvenção de práticas políticas dos países em desenvolvimento.

1.1.3 A questão da aprendizagem no orçamento participativo  

Os estudos realizados sobre orçamento participativo mostram as diferentes questões com as quais os pesquisadores ocuparam-se ao longo do tempo. Assim, dada a abrangência das perspectivas postas ao orçamento participativo, seu campo de estudo vai além das áreas da

Administração Pública e da Ciência Política ultrapassando os cortes das disciplinas e áreas acadêmicas. Para Souza (2001, p. 88), o orçamento participativo

[...] relaciona temas como descentralização, democracia, capital social, accountability, desenvolvimento, governança (“bom governo”), “empoderamento” de grupos sociais excluídos, educação cívica, justiça social, desenvolvimento sustentável e gestão urbana.

Dessa forma, Souza (2001) apresenta quatro visões do orçamento participativo; cada uma delas gerando uma agenda de estudos com temas específicos. São elas: as visões do orçamento participativo como modelo de gestão, processo educativo, política pública e mecanismo de mudança social. Apesar de cada uma delas gerarem diferentes formas de observar o OP, não são compreensões totalmente distintas, relacionando-se conforme as perguntas feitas e as respostas procuradas.

Por diversas razões, o orçamento participativo parece apresentar importância como elemento de educação cívica dando oportunidade de aprendizado àqueles que sempre estiveram à margem das decisões políticas no Brasil. Isso se dá principalmente aos mais pobres que, por não estarem inseridos em uma rede de influência, não têm a oportunidade de discutir as questões públicas.

Esse ganho intangível parece ultrapassar as obras de infraestrutura e os serviços alcançados para a comunidade na medida em que é gerado um processo de aprendizagem social. Conforme Souza (2001, p. 94), “Nesse sentido, o mérito do OP parece não estar necessariamente nos ganhos materiais para segmentos de baixa renda, mas sim na ampliação da participação e do poder de decisão para grupos anteriormente excluídos do processo decisório.”.

Fedozzi (2007) mostra através de uma pesquisa quantitativa como no caso de Porto Alegre foi possível perceber a partir da percepção dos participantes que o OP é “...uma conquista que ultrapassa eventuais gestões administrativas ou partidos políticos.” (FEDOZZI, 2007, p. 38).

Em Porto Alegre, há uma mudança partidária em 2005. Naquele momento, o partido que assumiu (PPS-PTB) optou pela preservação do orçamento participativo entendendo-o como uma conquista da cidade. Em um processo de mudança como esse a aprendizagem mostra-se como algo fundamental, já que muitas vezes há modificações na metodologia do orçamento participativo e é inevitável a alteração de atores governamentais e mesmo do corpo técnico de burocratas municipais (FEDOZZI, 2007).

Segundo Souza (2001), o processo educativo envolve todos os atores locais importantes como prefeito, burocratas, vereadores, movimentos sociais, população envolvida e as

instituições que eles atuam. Assim, Souza (2001, p. 93) enxerga que “As constantes mudanças nas regras, procedimentos e no funcionamento do OP mostram que a experiência faz parte de um aprendizado para os envolvidos.”.

Sobre a visão política do orçamento participativo, apesar de essa ser muito diversificada e apresentar muitas posições e focos diferentes, destaca-se que a aprendizagem social também aparece como elemento fundamental para a construção de valores coletivos, como o civismo, a organização social e a cidadania.

Nessa perspectiva, Villas-Boas (1994) vai além, enxergando o orçamento participativo como um meio que possibilita a criação de uma nova cultura política, aumentando a conscientização da cidadania e tendo reflexos diretos na melhoria da condição de vida da população.

O orçamento participativo enquanto elemento de aprendizagem pode incrementar novas habilidades nos atores envolvidos, sobretudo na população que atua como participante reivindicando suas demandas através de plenárias. Uma consciência coletiva maior pode ser gerada fazendo com que novas formas de relações mais altruístas, associativas e cívicas se desenvolvam na sociedade e gerem ganhos potenciais ao longo do tempo.

Pateman (1992), produzindo as bases de uma teoria da democracia participativa, via a educação dos envolvidos no processo participativo como um dos fatores mais importantes dessa prática. Analisando Davis (1964), a autora mostra que a ideia de democracia participativa tem um propósito importante que é “...a educação de todo um povo até o ponto em que suas capacidades intelectuais, emocionais e morais tivessem atingido o auge de suas potencialidades e ele tivesse se agrupado ativa e livremente, numa comunidade genuína.” (PATEMAN,1992, p. 33 apud DAVIS, 1964).

Apesar de essa visão parecer utópica e demasiadamente ambiciosa, ela demonstra ter sua importância no estabelecimento de princípios básicos e fundamentais para o fator aprendizagem como elemento de educação em políticas de participação popular.

Pateman (1992), quando trata de autores clássicos da ciência política e da teoria democrática, mostra que, para eles, a educação cívica também era um dos maiores ganhos da democracia participativa. Quando analisa a obra de Rousseau, por exemplo, ela indica alguns pontos importantes de sua concepção de democracia participativa, como a de que a participação possui a função “[...] de integração - ela fornece a sensação de que cada cidadão isolado “pertence” à sua comunidade.” (PATEMAN, 1992, p. 41) e de que

[...] as “associações tácitas” ocorreriam inevitavelmente, isto é, que indivíduos não organizados estariam unidos por alguns interesses comuns, mas que seria muito difícil que tais associações tácitas obtivesse apoio para políticas que as favorecessem especialmente, devido à própria forma como se dá a participação (PATEMAN, 1992, p. 38).

Diante dos argumentos apresentados, a aprendizagem social e política trazida no processo educativo da participação popular é um tema que remete tanto ao orçamento participativo quanto às discussões mais elementares sobre democracia participativa e participação política. As posições dos autores, apesar de serem influenciadas por perspectivas, temporalidades, localidades, visões individuais e posições políticas e ideológicas diferentes, parecem convergir em pelo menos um aspecto; o aspecto de que a participação política tende a criar novas habilidades entre os indivíduos, já que ela possibilita que esses participem de um processo de aprendizagem.

Uma concepção importante aqui é de que nem sempre os ganhos da participação são materiais e imediatos, mas é certo que os envolvidos podem passar por uma nova educação social extracurricular. Essa talvez possa gerar entre eles uma maior autonomia, cidadania, incentivo ao associativismo e talvez até mesmo redes e laços de confiança e solidariedade que podem levar a busca de objetivos comuns.

Essa discussão pode ser fundamental para um projeto de construção dos alicerces de uma democracia mais participativa e ainda mais se nos atentarmos ao caso do Brasil, que tem um histórico de centralização das decisões políticas e más práticas como o elitismo, patrimonialismo, descaso, falta de representatividade das pessoas mais pobres e com menor prestígio social, clientelismo, corporativismo e outros vícios políticos.

Assim, é possível que o envolvimento da população ao longo do tempo em esferas participativas possa gerar um aprendizado que leve, se não a mudança drástica e definitiva, pelo menos a alteração do formato de certas relações e a construção de uma sociedade mais cívica e ativa, alterando o quadro de submissão e dependência visto historicamente na relação Estado-sociedade e que afeta principalmente os mais pobres. Porém, isso ainda é um desafio.

O processo educativo para criar essa nova concepção cidadã mostra-se como uma alternativa que pode alargar a busca por esse caminho de reinvenção de valores e relações políticas. Cabe saber de que forma isso pode acontecer, até que ponto depende só e unicamente do envolvimento dos atores sociais e políticos e até que ponto há uma responsabilidade institucional e de políticas públicas para gerar, valorizar e incentivar a aprendizagem dos atores envolvidos no OP?

Pontual (2000) realiza através da sua tese de doutorado um estudo sobre o processo educativo e a aprendizagem dos atores da sociedade civil e do Estado envolvidos no OP. Ele aponta que o OP realiza a mediação educativa necessária para gerar o aprendizado dos atores e que isso é capaz de criar a eles novos significados. O processo educativo é fator fundamental para a construção da cidadania através do modelo de educação popular.

A educação popular é um conjunto de obras e teorias que receberam destaque no final da década de 1950 no Brasil e na América Latina e que tinha por objetivo fortalecer os atores ligados aos movimentos sociais. Posteriormente, a educação popular recebeu críticas por não atender a realidade contemporânea e também por ser um pouco simplista (PONTUAL, 2000).

Na década de 1990, há autores que resgatam e criticam as teorias da educação popular, mas a partir de uma ótica da radicalização da democracia, ou seja, da participação política e difusão da cidadania. A característica mais fundamental da educação popular é criar um processo educativo para além da escolarização visando à constituição e qualificação de vários atores sociais e políticos da sociedade civil (PONTUAL, 2000).

A criação de outros espaços para a produção e transmissão do saber e o caráter pedagógico das organizações são pressupostos da educação popular, já que, conforme Pontual (2000, p. 39), “Ao afirmar a existência de outros espaços de produção e transmissão do saber, a educação popular (EP) parte da premissa da existência de uma pedagogia presente no processo das organizações”.

Para Pontual (2000), a cidadania está associada à qualidade social da democracia e a capacidade de gerar pessoas autônomas e críticas. Entre os sinais do desenvolvimento da cidadania, o autor destaca o ato de a população participar em instituições da sociedade civil, exercer o associativismo, o poder de controle sobre o governo e a capacidade em resolver pacificamente os conflitos.

Atenção especial deve ser dada a um desafio gerado pelos conflitos. Este desafio é o de construir novas práticas de exercício do poder substantivamente democráticas para superar uma de suas condições que é a de provocar a desagregação e fragmentação. Para isso, é necessário ir além de uma lógica posta, que é a do neoliberalismo e que valoriza o individualismo e a competitividade ao invés da solidariedade. Assim,

A ação participativa pode e deve ser local, específica e motivada por interesses pessoais e grupais, mas o horizonte deve ser universal para não se tornar corporativista. Os participantes são singularizações do gênero humano e enquanto tal devem orientar suas práticas pela mediação da ética universal, para que ela se contextualize (SAWAIA, 1997, p. 157 apud PONTUAL, 2000, p. 42).

Em uma perspectiva habermasiana, Pontual (2000) aponta que o indivíduo vive hoje em um mundo de incertezas e complexidades, o que demanda dele adquirir competências comunicativas para tornar-se um sujeito autônomo e criativo. Para a materialização dessas premissas temos que esse mesmo indivíduo deve desenvolver pontos de vista universais, ter abertura às ações de associativismo e realizar o julgamento crítico e a posição comunicativa dos problemas de uma comunidade.

O aprendizado, diante dessas circunstâncias, apresenta-se como uma construção e reconstrução e não como simples adaptação ao que existe. Quando analisa outros dois autores, Pontual (2000) observa que

Em Freire e Piaget encontramos uma proposta de aprendizagem mediante construções e tomadas de consciência, ações e reflexões, uma aprendizagem pela práxis construída tanto pelo educando quanto pelo educador, uma aprendizagem ativa, operatória (Pontual, 2000, p. 43).

As instituições participativas parecem ter responsabilidade sobre o incentivo das ações de aprendizagem social. Segundo Pontual (2000, p. 44), há a “[...] necessidade de uma ação educativa planejada e a criação de instrumental pedagógico capaz de capacitar os diversos atores envolvidos nas práticas participativas”. Isso mostra que a participação requer uma prática pedagógica explícita e intencionada para orientar mudança de atitudes, valores, comportamentos e procedimentos.

Fedozzi (1997), estudando o OP de Porto Alegre-RS, vê seu modelo como criador das condições institucionais favoráveis à emergência da cidadania. Ainda mostra que o modelo operacional de OP, como forma de gestão sócio-estatal, vem, até o presente momento, promovendo condições institucionais favoráveis à emergência da forma-cidadania. Essa posição de Fedozzi (1997) requer uma análise crítica sobre a capacidade das instituições públicas e do próprio OP incentivarem o aprendizado dos envolvidos e terem isso bem definido como política pública.

1.2 SOCIEDADE CIVIL: DA VISÃO COMO ESFERA AUTÔNOMA E BENEVOLENTE