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On determining and revising a minimum existence standard

Capítulo 1. A “questão social” e a dignidade da pessoa humana

O pós segunda guerra, entre outras mudanças radicais de paradigma,

colocou na ordem do dia a chamada “questão social”112, enraizada na Revolução

Russa e na Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado em contraponto ao modelo de Estado de Direito Liberal. A reacção ocidental a este

status quo caracterizou-se pelo surgimento, como terceiro género em face do

modelo soviético e do modelo liberal, de concepções designadas como Estados

112 Seguimos aqui NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais: Teoria Jurídica dos Direitos Sociais

Sociais, positivadas exemplificativamente na Constituição de Weimar, assumindo a construção do que haveria posteriormente de se designar na Constituição Alemã como Estado de Direito Social. A questão social foi entrando, pois, no léxico sociológico e jurídico, colocando-se com mais premência à medida que as sociedades desenvolvidas atingiam patamares de progresso económico que impunham a protecção das classes sociais mais expostas – seja por fundamentos de distribuição de riqueza, funcionamento de mercado, religiosos, ou outros.

É no culminar deste processo evolutivo (radicalmente abreviado nos termos da enunciação que se vem de fazer) que surge a sedimentação de um direito do Homem a um mínimo de existência condigna (doravante, MEC). A sua consciencialização jurídica é produto de várias concepções de solidariedade social (laboralistas, assistencialistas, universalistas) que tiveram como mérito a sensibilização da comunidade para a situação dos depauperados e a consequente radicação na sua consciência jurídica colectiva de um direito do cidadão à protecção nas eventualidades.

Da necessidade de protecção daqueles afectados por algum acontecimento que diminua a sua capacidade de obtenção de rendimentos deslocou-se o foco, numa lógica a fortiori, para os que na realidade não deixaram

de obter rendimentos por alguma eventualidade – antes não os chegaram a

auferir. Na verdade, embora esteja conceptualmente e logicamente situado a seu montante, como procuraremos demonstrar, o direito a um MEC é em termos cronológicos derivado de um direito à Segurança Social consagrado de modo muito diverso em vários ordenamentos jurídicos num processo relativamente

recente e cuja dialéctica está longe de se esgotar113.

Não é o momento para proceder a uma resenha história da problemática

dos direitos sociais114, mas sim para sinalizar a consagração na consciência

113 Ilustra esta ideia a consideração de Manuel Afonso Vaz do carácter expansivo da intervenção

do Estado no tocante aos “direitos sociais”, que são retirados da opção constituinte autorial para a esfera da disponibilidade do legislador; vd. VAZ, Manuel. O Enquadramento Jurídico- Constitucional dos ‹‹Direitos Económicos, Sociais e Culturais››. In VAZ, Manuel; LOPES, Azeredo (coord.) - JURIS ET DE JURE – Nos Vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto. Porto: Universidade Católica Editora, 1998, pp. 445. A este ponto voltaremos mais tarde.

114 O tema é tratado com minúcia em NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais.... Vd., também e

remetemos sem pretensão de exaustão, QUEIROZ, Cristina. Direitos Fundamentais Sociais, Coimbra: Coimbra Editora, 2006 e ANDRADE, Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 2012. Do outro lado do Atlântico,

jurídica desenvolvida, em traços largos, de um modelo de preocupação com o homem situado e concretamente considerado e não meramente atinente à protecção das liberdades do homem abstracto, idealmente autónomo. O contexto de inserção sócio-económica do Homem na sua natural desigualdade fáctica passou a ser encarado como constitutivo das próprias noções básicas de

dignidade de pessoa humana, igualdade e justiça115, enquanto inerente à

diversidade de condições iniciais de vida de cada um de nós,.

Com efeito, o Homem parte tendencialmente de uma situação social que o limita e o enquadra por factores que não dependem de si e que não se reportam a nenhuma ligação causal com qualquer sua conduta voluntária num passado relativamente recente, perante os quais é impotente por seus próprios meios e esforços. Despido de todos estes factores, resta este, só consigo, tendente a socializar-se com os demais em situações paralelas. Haverá um mínimo de condições que lhe permitirão ou estimularão essa aculturação. Se pensarmos no Homem depurado de todas aquelas condicionantes, no seu momento inicial, haverá um patamar mínimo abaixo do qual a sua expressão individual na comunidade e a sua realização não lograrão manifestar-se. Aquela nudez reporta-nos à consideração da própria essência humana, aquilo que nos distingue das demais entidades ou seres vivos considerados como tais e nos unifica enquanto espécie: a dignidade de cada qual, enquanto tal e de uma espécie capaz de construir um sistema de convivência baseado em regras com conteúdo ético-valorativo.

Porém, apesar de fazer referencial a um valor que aparentemente todos comungariam, o conceito da dignidade da pessoa humana revela-se altamente contingente e relativo. Pois é precisamente quando se procura operacionalizar o seu conteúdo que mais se instala o dissenso sobre a sua determinabilidade, o

que é justificável: “subjaz sempre à dignidade humana uma determinada imagem

SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais – Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

115 Por exemplo, veja-se a lapidar afirmação de Amartya Sen – “(...) justice cannot be indifferent

to the lives that people can actually live. The importance of human lives, experiences and realizations cannot be supplanted by information about institutions that exist and the rules that operate” – in SEN, Amartya. The Idea of Justice. London: Penguin Books, 2010, p. 18. Acrescentamos que sem o devido relevo à inserção do homem no seu contexto e às experiências empíricas daí retiradas, nenhuma ordem normativa logrará, na verdade, cumprir com uma pretensão de vigência.

do homem e que essa imagem é sempre relativa”116. Vai sem dizer que o entendimento da dignidade da pessoa humana está indelevelmente ligado à posição do seu descritor e às suas concepções filosóficas, morais, políticas, religiosas e de todo o género. No fundo, aquele depende do feixe de potencialidades realizadas ou a concretizar no sujeito que influenciam a sua compreensão da realidade e concepção do ser. É, por exemplo, particularmente forte do ponto de vista simbólico a inspiração judaico-cristã do valor da dignidade da pessoa humana, construído a partir da ideia da criação do Homem à imagem

e semelhança de Deus117. Ainda assim, podemos retirar desta formulação a sua

impressividade para a dimensão e compreensão do princípio – não lograremos, porém, consubstanciar daqui um apurar jurídico do mesmo, o que ora nos ocupa.

As várias acepções do princípio da dignidade da pessoa humana implicam

um esforço acrescido para a ciência jurídica118 – de determinar o mínimo

denominador comum de entre essas várias concepções por forma a irradiar o seu valor nos demais princípios e preceitos constitucionais de um modo coadunável com a maior vigência possível dos direitos fundamentais de cada um à sua luz, almejando a paz jurídica. Não espanta, pois, que a sua formulação seja variada, sendo apenas possível retirar da experiência jurídica uma súmula

ou síntese119 da influência de todas aquelas concepções e do modo como se

concretizam na vigência dos direitos que inspiram. Tratando-se de uma irradiação ontológica, uma aproximação ao seu conteúdo juridicamente atendível terá de ser sempre tão aberta quantas as imagens do homem caibam e se

116 Citamos KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito (trad.). Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2009, p. 269.

117 MIRANDA, Jorge. Anotação ao art. 1º. MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui. Constituição

Portuguesa Anotada, Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2010, p. 79 remete, neste âmbito, para KRIELE – Grunprobleme der Rechtsphilosophie, 2, Aufl. Munster, 2004, p. 170.

118 Veja-se o alerta de GONÇALVES, Joaquim. Itenerâncias de Escrita – Vol. I. Lisboa: Imprensa

Nacional Casa da Moeda, 2011, p. 124, a propósito da identificação de quais os direitos humanos a universalizar: “(...) tais direitos, já a tragédia grega o pressentira, podem não estar consignados em leis escritas e, acrescentaríamos nós, podem não ser formulados em linguagem jurídica. Ora, é precisamente para um estatuto escrito e jurídico que os direitos humanos, tal como costumamos referi-los, tendem, o que, não obstante a sua reconhecida vantagem, não deixa de formalizar e, em consequência, escamotear, níveis profundos da existência humana”.

119 Convergem neste aspecto ALEXANDRINO, José de Melo. A estruturação do sistema de

direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa, vol. II – A construção dogmática. Coimbra: Almedina, 2006, p. 314 e MACHADO, Jónatas. Liberdade de Expressão: Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social. Coimbra: Almedina, 2002, p. 359. De monta, o levantamento histórico da relação do princípio da dignidade da pessoa humana com textos legislativos e jurisprudenciais de McCRUDDEN, Cristopher. Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights. The European Journal of International Law, 2008, n.º 19, pp. 655 – 724. Vd., em particular e acerca do MEC, pp. 692 e 693.

articulem numa dada sociedade; mas tão fechada quanto a exigência de segurança jurídica impõe aos sistemas civilizados para que se constitua como

verdadeiro princípio de base e prius de todos os direitos fundamentais120.

Note-se: a dignidade da pessoa humana é decorrente da própria noção de uma ordem jurídica e de Direito, postulantes de integridade e integralidade. Por

um lado, “ser pessoa é ser sujeito de direito e o direito só pode sê-lo de

pessoas”121. Por outro, se a igualdade é a ideia directiva da noção de Justiça, a sua realização assim orientada tem sempre como base dos seus princípios o valor ontológico do sujeito enquanto ser de igual dignidade ao seu par. Esta revela-se como limite mínimo e máximo desta ponderação: do princípio suum

cuique tribuere aos princípios da responsabilidade e da tolerância, transpira a

igual dignidade da “vida medíocre” e a impossibilidade de destruição ou

anexação desta pela “vida máxima” ou “realizada”122. A concretização da

dignidade da pessoa humana dentro de dada comunidade não pode depender

da concepção maioritária da sua vontade123.

Capítulo 2. Dignidade da pessoa humana e direitos