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On determining and revising a minimum existence standard

Capítulo 2. Dignidade da pessoa humana e direitos subjectivos

Considerado como um valor irradiante dos direitos fundamentais, impera aqui considerar se uma busca da determinabilidade jurídica do princípio da dignidade da pessoa humana poderia basear directamente um direito subjectivo que fundasse uma qualquer pretensão do cidadão. É que sendo o princípio da

120 No mesmo sentido, vd. ALEXANDRINO, José de Melo. A estruturação..., 2006, p. 311. Sobre

o princípio da dignidade na Constituição da República Portuguesa (CRP), por todos, vd. MIRANDA, Jorge. Anotação ao art. 1º. MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui – Constituição... pp. 73 e ss..

121 Assim, NEVES, Castanheira. O Papel do Jurista no Nosso Tempo. DIGESTA – Escritos

Acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros – Volume 1º. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 40, porque “o primeiro sentido da ideia de direito é, certamente, o do respeito incondicional da pessoa humana, pois que divergindo e convergindo a comunidade na pessoa moral – a comunidade é a convivência ética das pessoas – o direito não pode sequer pensar-se se não for pensado através da pessoa e para a pessoa”.

122 Vd. KAUFMANN, Arthur. Filosofia..., p. 226 e 227, p. 274 e 275.

123 Conforme alertado por em CORTÊS, António. Jurisprudência dos Princípios. Lisboa:

Universidade Católica Editora, 2010, p. 259. Assume assim, repetidamente, a ideia do princípio da dignidade da pessoa humana como correlacionado com a própria forma do estado de direito democrático e com as regras da maioria governante – esta não se representa só a si própria, outrossim também à minoria contraposta.

dignidade da pessoa humana uma base da ideia de Direito e um limite mínimo à ponderação dos seus princípios, nenhuma ordem jurídica poderá permitir, na sua pretensão de completude, o tratamento de um indivíduo que não alcance este mesmo limite mínimo. A elevação de um princípio como o da dignidade da pessoa humana a patamares tão solenes como “razão moral do Estado”, “base dos direitos fundamentais”, “prius de liberdade” não se compadece com um sentido normativo quasi-decorativo. Cuidamos de um princípio jurídico,

postulando judicialidade e vigência, o que apenas será alcançável – e, pelo

exposto, assim realizando a própria ideia de Direito – através de formulação de condições para que encontre expressividade na concretização de institutos jurídicos e de soluções por si inspiradas.

Nesta medida, podemos dizer que a própria realização das ideias de liberdade e de justiça como bens comuns estão dependentes da possibilidade real das mesmas, ou seja, da gestação de condições para que o sujeito possa efectivamente comungar de e participar em tais valores fundamentais. Tal concepção parece-nos inclusive aflorar no art. 1º da Constituição da República Portuguesa (CRP) ao afirmar a dignidade da pessoa humana (mais do que a própria humanidade) como a base da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, realizada pela vontade popular, expressão política de uma ideia de autonomia. É a ideia de dignidade que informa o princípio da igualdade essencial de todas as pessoas perante a lei e o interesse público, verdadeira base moral

da organização do Estado e do Governo em democracia124.

Vejamos: não haverá, jamais, liberdade ou igualdade na convivência social sem que o sujeito disponha dos recursos mínimos para existir condignamente. É aqui que, na nossa óptica, surge a configuração de um direito a um MEC como ponto de partida para realização dos demais direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. O MEC é uma condição prévia para exercício da igualdade: esta supõe aquele. Este direito é verdadeiramente antecedente à ideia de liberdade e de justiça, pelo menos quando acoplada à ideia de construção de sociedade, que nos parece remeter para um conceito de justiça

124 Num interessantíssimo rastreio quanto à origem da “importação” da referência à dignidade

humana no constitucionalismo estatal americano, recorda Vicki C. Jackson que a dignidade é a base moral do governo democrático, implicando a igualdade fundamental de todos perante a lei. Vd. JACKSON, Vicki. Constitutional Dialogue and Human Dignity: State and Transnational Constitutional Discourse. Montana Law Review, 2004, n.º 65, p. 23.

distributiva porque associada a uma ideia de solidariedade125. É um conceito situado a montante e que deve ser entendido como uma condição inicial de

liberdade126 e de acesso efectivo a igualdade no exercício de direitos,

participação e fruição de recursos sociais numa lógica distributiva.

É, nesta medida, mais do que um direito social127 porquanto sem o MEC, o

homem não está verdadeiramente situado em sociedade e não goza da possibilidade de exercer qualquer seu direito cívico ou político. Pelo que não choca a nossa consciência a consideração deste direito como um verdadeiro mínimo denominador comum existencial de acesso à sociabilidade, paralelo ao homem abstracto coberto pelo véu da ignorância da concreta posição social que lhe caberá de Rawls e livre, portanto, de qualquer vício de julgamento que não a

prossecução potencial dos seus objectivos128.

É certo que tal concepção coloca nas mãos do sujeito a prestação daquilo a que todos, na medida do necessário, teríamos direito a fim de potencializar a realização dos valores da justiça, encerrando destarte a participação estatal no processo de realização da sociedade justa, assim devolvida ao indivíduo numa espécie de optimismo antropológico inconfessado. Nesta medida, abstrai a ideia

125 Argumentam, todavia, outros autores que a redistribuição de recursos é formulação de

condições prévias para a criação da possibilidade do exercício de liberdades fundamentais. Vd. DEAKIN, Simon; BROWNE, Jude. Social Rights and Market Order: Adapting the Capability Approach. In HERVEY, Tamara K.; KENNER, Jeff. Economic and Social Rights under the EU Charter of Fundamental Rights – A Legal Perspective. Oxford: Oxford – Portland Oregon, 2003, pp. 27 e ss..

126 Conforme a expressão de TORRES, Ricardo Lobo. O Mínimo Existencial e Direitos

Fundamentais. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Rio de Janeiro, 1990, n.º 42, p. 70.

127 O tónico dos direitos sociais é frequentemente colocado na possibilidade conferida aos seus

titulares de invocarem posições jurídicas concretas exigentes de uma prestação positiva estadual em situações sociais deficitárias ou de necessidade. Veja-se, por exemplo, ALEXY, Robert. A Theory of Constitutional Rights (trad.). Oxford: Oxford University Press, 2010, p. 3 que considera que os entitlements são garantias de segurança das pré-condições factuais para o gozo das liberdades. Não que tal retire aos direitos sociais a natureza de direitos fundamentais – “Ser um direito fundamental significa, em Estado constitucional de Direito, ter uma importância, dignidade e força constitucionalmente reconhecidas que, no domínio das relações gerais entre o Estado e o indivíduo, elevam o bem, a posição ou a situação por ele tutelada à qualidade de limite jurídico- constitucional à actuação dos poderes públicos”, cabendo a sua garantia ao poder judicial. Desenvolvendo, NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais..., pp. 251 e ss..

128 Este está colocado numa situação de igualdade inicial aceita como justo que o que é devido

a qualquer elemento da sociedade em abstracto que se encontre na sua posição desconhecendo que patamar social atingirá na realidade, não beneficiando assim qualquer membro concreto da comunidade. Vd. RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça (trad.). Lisboa: Presença, 2013, pp. 33 e 34. O autor considera ainda que o mínimo social está localizado naquele ponto em que tendo em consideração o nível de rendimento médio da sociedade, sai maximizada a expectativa do grupo social menos favorecido, no que avultam considerações de direitos de acesso e promoção dos mesmos. Identificando a impossibilidade de um conceito unívoco de justiça nesta distribuição, SEN, Amartya. The Idea of..., pp. 9, 10, 109-110.

rawlsiana das capacidades do indivíduo de transformar os meios estatalmente consignados em condições para a realização da sua autonomia, também composta pela capacidade do homem determinar os objectos que valoriza e

desenvolver as próprias capacidades para os alcançar129.

Sucede que, e cumpre recentrar a discussão, enquanto falamos do direito a um MEC falaremos de um direito subjectivo e, portanto, de uma pretensão do

indivíduo face ao Estado ou terceiros130 (aqui, tendencialmente numa vertente

negativa do mesmo). Ora, a realização da autonomia e do desenvolvimento das capacidades para tal não podem ser impostas extrinsecamente. Aquilo que o Estado poderá possibilitar ao indivíduo tem limitações inerentes à própria dimensão da dignidade humana de cada qual individualmente considerado, não podendo ir mais além do que da criação de um patamar de base para a sua realização e dotação do indivíduo de meios para compreender não só o que pode realizar mas qual o seu leque possível de realizações. O MEC está a montante da vontade de realização, gerando condições para que esta surja. Poderá, o Estado, compensar défices de situações contextuais; todavia, não pode remediar todo o próprio contexto, pelo menos num momento primitivo e referencial da realização humana e social como aquele que curamos e imponível como uma tarefa primária de realização estatal.

Nesta óptica, o propósito de um MEC deve ser sobretudo o de proporcionar condições para a participação de todos e de cada qual no processo de decisão e vivência democrática tendo presente a impossibilidade do Estado, face ao próprio entendimento da autonomia como, no limite, contra-maioritária ou contra interesse público, de impor um critério de comportamento justo ou devido à sociedade, indo aqui contida na vivência democrática a inserção social do sujeito por dispor dos pressupostos mínimos para tal. É evidente que não se esgota aqui

129 Neste aspecto, vd. SEN, Amartya. The Idea of..., pp. 225 e ss., ou, do mesmo autor, SEN,

Amartya. Sobre a Ética e Economia (trad.). Coimbra: Almedina, 2012, p. 56, no que consideraríamos a inegável utilidade como critério de avaliação de justiça social mas como um critério curto para a uma teoria de decisão.

130 Aqui, veja-se, sobre a comunidade ética fundamento que orienta a realização do Direito e das

exigências concretas para a realização do homem, NEVES, Castanheira. O Papel do Jurista..., p. 43: “(...) jamais alguém poderá ver noutrem apenas o “objeto” de um interesse ou de uma dependência, mas sempre haverá de ver nele um “sujeito” numa relação de sujeitos, melhor, numa relação de pessoas (...) por outro lado, ninguém poderá ser considerado apenas como objeto ou fator fungível num plano de eficácia, antes deverá ser sempre considerado como um valor último, uma pessoa”.

a realização da dignidade da pessoa humana; talvez se alcancem, porém, os limites da contribuição estatal para a vigência de um MEC.

Capítulo 3. Concretização do direito subjectivo a um