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1 A razão fundamental: perseguir a luz residual da origem

A razão movente que é transportada do romance para esta análise pode ser formulada em termos de percurso de luz, tendo como seu fundamento a encomenda feita pelo padrinho, na já identificada metáfora da procura de vestígios do dia 25 de Abril entre as pedras da calçada de Lisboa. Pode dizer-se que no segundo painel se perseguem de várias formas esses possíveis vestígios de luz, no caminho inverso ao do tempo que passa nas entrevistas e na hipótese de devolver ao futuro os instantes primordiais e límpidos da reviravolta da história.

Este objectivo assim expresso faz ressurgir uma certa ideia de pesquisa científica, nomeadamente a que procura conhecer e questionar a origem do Universo, tal como hoje o conhecemos, e que está apoiada na luz como realidade e como conceito físico. A analogia, na sua complexidade, pode tornar-se talvez clarificadora. Do ponto de vista científico, a partir de resíduos ainda presentes em todos os mais recônditos interstícios do Universo – resíduos esses constituídos por uma radiação, dita fóssil, feita de grânulos de uma luz primordial – foi possível caminhar no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, em perseguição dessa leve luz, para um determinado lugar cada vez mais longe das nossas percepções no espaço e, em simultâneo, para um passado distante. Procurava-se assim situar e compreender o acontecimento inaugural em que essa luz terá sido produzida. Juntando outros relevantes factos entretanto descobertos, encontrou-se então, plausivelmente, essa singularidade, ou seja, o dito acontecimento primordial, que se pode designar por explosão inicial ou Big-Bang e em que terão nascido, de uma só vez, o espaço e o tempo. A partir desse instante, ter-se-á dado início à sucessão de acontecimentos cósmicos, expandindo todo

44 o universo e acompanhando um certo relógio universal, tal como hoje, neste presente, se supõe conhecer.

Nesta reflexão são contempladas as ressurgências de uma certa linguagem das ciências físicas para a justificada e plausível teoria do princípio de tudo. A narrativa da procura desse acontecimento primeiro, a origem do Universo, constrói-se em termos que, em geral, não pertencem às descrições científicas e vêm tornar essa narrativa fascinante, aproximando-a de uma tonalidade ficcional. Consultem-se, como exemplo, Carl Sagan na sua emblemática obra Cosmos, no capítulo “O limiar da eternidade” (Sagan 1984: 281), ou no capítulo seguinte, “A persistência da memória” (Sagan, 1984: 311); consulte-se ainda a obra de Hubert Reeves A Hora do Deslumbramento (Reeves,1986: 67). Nas obras referidas a título de exemplo, bem como em muitas outras neste âmbito, os próprios títulos e subtítulos são, em si mesmos, reveladores de uma certa poética assumida na linguagem que divulga e explica o universo. Sabe-se que a Física tem uma estreita margem para tal vôo; mas talvez a mediação dessa polissémica palavra “luz” que inunda toda a pesquisa, possa vir a justificar a desmedida ampliação que se evoca. Esse conceito está, ele próprio, imbuído de múltiplos atributos, múltiplas facetas, simbolismos, características físicas e descrições que conferem um constante fascínio e alguma ambiguidade a um suposto acontecimento tão distante das percepções humanas admissíveis e portanto de qualquer experiência possível.

Referenciando, neste âmbito, Bachelard (2012: 41), em La philosophie du non, o desenvolvimento do pensamento científico vem revelar os obstáculos que foram criados à sua própria evolução como resultado de uma cega fidelidade a um empirismo determinista ou ainda a um realismo primário – a própria ciência, sobretudo a partir do início do século XX, vem confirmar uma ruptura epistemológica irreversível. Evolui-se no sentido de pensar abstratamente sobre o próprio pensar e, dado como provado o engano que a experiência directa nos produz, Gaston Bachelard, a propósito da evolução de um conceito aparentemente tão simples como o de massa, que a todos é aparentemente tão familiar, revela que os supostos paradoxos também se desfazem com alguma ousadia: “C’est alors que la philosophie dialectique du “pourquoi pas?”, qui est caractéristique du nouvel esprit scientifique, entre en scène. Pourquoi la masse ne serait-elle pas négative ? (…) Il faut forcer la nature à aller aussi loin que notre esprit” (Bachelard, 2012 : 36). De facto, a pergunta aparentemente elementar “e porque não?” abre toda a inquietação do modo de pensar transgressor e efectivamente inovador.

45 Dir-nos-á ainda Bachelard reconhecendo a premente necessidade de aproximação de linguagens que aqui se evocam - a das Ciências e a do ressoar ancestralmente e transversamente poético que acrescenta sentido e reflexão ao dito pensamento científico:

La rêverie analogique, dans son élan scientifique actuel, est, d’après nous, essentiellement mathématisante. (…) Bref l’art poétique de la Physique se fait avec des nombres, avec des groupes, avec des spins, en excluant des distributions monotones, les quanta répétés sans que rien de ce qui fonctionne ne soit jamais arrêté. Quel poète viendra chanter ce panpythagorisme, cette arithmétique synthétique…(…) Nous avons besoin d’un poète inspiré et nous n’entrevoyons que l’image d’un colonel qui compte les soldats de son régiment. (Bachelard, 2012:p.49)

As hipóteses defendem um princípio sobre-racionalista e sobre-realista (surréaliste) para tentar compreender os fenómenos; porque, para perseguir e compreender as migalhas essenciais do real, temos de nos afastar para as essências do campo mais racional, talvez mais abstrato mas simultaneamente mais emocional: no limite da linguagem, ou seja, no escavar das ideias e das emoções mais profundas. Apenas na ficção, que no romance em análise obriga a uma profunda leitura de todos os sinais transformadores, se pode encontrar uma certa analogia com a ciência dita fundamental essencialmente ligada à concepção de teorias como as acima afloradas na tentativa de conhecer e compreender a essência do universo em que vivemos.

De facto, procura-se, no segundo painel deste romance, descobrir os vestígios desse “dia inicial inteiro e limpo”27 - andando para trás num tempo que se torna, por vezes,

ziguezagueante e improvável ao senso comum. A partir de migalhas residuais ainda presentes, trinta anos depois, nos interstícios porosos das calçadas de Lisboa, procuram-se os momentos fundadores e persegue-se a senda de uma certa pureza original.

Em entrevista sobre o romance, a problemática da transfiguração do real é clarificada por Lídia Jorge na revista Colóquio-Letras onde pode ler-se: “O que eu quero dizer é que o imaginário sempre parte do real. São migalhas do real, partículas daqui e dali que de súbito se isolam e assumem um empolgamento desmesurado” (Gastão, 2015:143). Perseguem-se as partículas vestigiais de um real já contaminado de enganos e constrói-se uma narrativa multifacetada, que reconfigura o tempo, procurando desocultar as origens. A pesquisa será efectuada através do escavar das memórias significativas, que vão emergindo do discurso das várias personagens e das reflexões sistemáticas da equipa de jornalistas, filtrando tudo o que é acessório na procura de uma essência que não vai, porém, ignorar as críticas, os desencantos e os ruídos perturbadores que o passar do tempo arrastou consigo. O que

46 parece ser o âmago dos acontecimentos irá transportar-se para o presente, assumindo-se um emaranhado de sombras que as vidas foram produzindo. Procurar-se-á, na sobreposição de pontos de vista testemunhais diferentes e de diferentes referenciais de análise, encontrar o fundamento e o sentido dos factos. Ou seja, o romance vai deslindar e perseguir o caminho dos ténues fios particulados de luz que podem revelar o essencial desse passado no seu transporte luminoso a um desejado futuro. A luz emergirá também de uma certa fotografia e do âmago dos que nela são retratados e será, de certa forma, sujeita a um registo espectroscópico, deixando assim revelar a estrutura fina da matéria em análise.