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5 Personagens moventes entre a fotografia e a fábula

As personagens são simultaneamente colocadas e também resgatadas, uma a uma, da velha fotografia referencial – saem de dentro do papel fotográfico emoldurado para dar corpo na obra à “Viagem ao coração da fábula”. Vai-se então transferindo, em cada capítulo, pelas mãos da equipa de jovens jornalistas, um tempo de registo da luz primordial para o presente, procurando a intemporalidade das referências fundamentais. Os protagonistas são agora personagens com o seu lado verosímil, saído de um certo real, mas simultaneamente fantástico, com os seus arredores de sombras e de faces ocultas pelos mistérios que vão suscitando – personagens repassadas pelo tempo, pelas memórias, pelas suas vidas e pelos confrontos com o real.

De notar ainda que o nome do próprio restaurante Memories designa um lugar, mas é também nome de código. À pergunta de Ana Maria Machado: “Mas havia quem chamasse a este restaurante o Memories, não havia?”, o chefe Nunes responde, clarificando: “Havia, sim, havia. Era um nome de código. Disse o chefe deliciado. Tudo começou com as conspirações de setenta e dois, e depois prolongou-se, foi-se prolongando-“ (p. 73). O restaurante tinha sido lugar de tertúlia e de conspiração contra o regime anterior, tendo havido necessariamente senhas, códigos e secretismos, era um lugar de referência que continuou a ser ponto de encontro no pós - 25 de Abril. Sobre a evocação convocada pela

59 fotografia, escreverá a narradora, a propósito das memórias do chefe Nunes referentes à fotografia:

E contou que aquela tinha sido uma noite memorável. (…), e naquela noite tinham estado ali os três grupos rivais, cada um com os seus papéis, mas o casal de poetas, juntos na fotografia, tinham escrito um lindo poema que haviam recitado, e tudo acabara em bem, concluiu. (p. 76)

A revelação deixa fios suspensos na narrativa: três grupos rivais, política e ideologicamente diferentes estavam numa reunião de confronto e um casal de poetas vai deixar, como lastro, um poema estruturante do lirismo implícito no romance (p. 283). Apenas na última entrevista, dada pelos poetas, este enigma, tal como outros, vai ser resolvido (dele se dará conta no final do capítulo seguinte).

A fotografia captada no Memories é então um conceito organizador e pedra mestra na reconstrução da memória dos entrevistados. Os protagonistas que dela emergem, nas entrevistas realizadas, pertenceram ao momento do registo fotográfico e são testemunhas directas dos acontecimentos vividos nesse dia inaugural – o princípio do tempo - de que se quer falar. Os entrevistados serão oito, distribuindo-se entre quatro militares: Oficial de Bronze, Major Umbela, El Campeador, Charlie 8 (pela voz da sua viúva) e quatro civis: o próprio fotógrafo, Tião Dolores, o responsável pela música, Dr. Ernesto Salamida e dois poetas, Francisco e Ingrid Pontais. Para além dos oito entrevistados, estão representadas mais seis personagens, perfazendo um total de catorze: Cui, o professor de biologia; Casares, o mecânico; Lorena, que entretanto tinha falecido sem honras; os pais da narradora (António Machado e Rosie Honoré) e o cozinheiro do restaurante, o chefe Nunes; este último acabará por falar apenas com Ana Maria Machado, sem conceder a entrevista para a CBS.

A fotografia deste grupo representa uma espécie de jantar/ ceia memorável, e vem lembrar algumas pinturas célebres; de entre essas representações de referência talvez seja de destacar O Grupo do Leão, de Columbano Bordalo Pinheiro,188531. De facto, podem

distinguir-se algumas analogias. Tal como na fotografia do Memories, nessa célebre pintura estão representadas catorze pessoas numa cervejaria de Lisboa, o que escapa assim à referência simbólica, aparentemente fácil, da representação bíblica da Última Ceia. Pedro Lapa, na sinopse sobre este quadro feita no site do Museu do Chiado, esclarece:

31 A obra O Grupo do Leão foi pintada para a cervejaria Leão de Ouro, situada na actual Rua 1º de Dezembro.

O grupo representado reunia-se nessa cervejaria, tendo assumido o nome da própria casa. Na remodelação desse local de tertúlia, Columbano pintou o retrato do grupo, o único retrato desta geração naturalista de Lisboa e que até 1945 aí esteve exposto. No local encontra-se uma réplica e o original está exposto no actual Museu do Chiado.

60 Columbano terá visto em Paris a Hommage à Delacroix (1864) ou o Coin de table (1872) de Fantin Latour. (…) Ora Columbano ao trocar o referente pela fotografia como se esta devolvesse modelos vivos e para, a partir dela, estruturar o processo de representação da sua pintura confrontou-se com um resultado diverso do que o modelo vivo proporcionava, dadas as especificidades deste dispositivo técnico de percepção.(…) Conta-se que Columbano teria acrescentado o retrato do dono da cervejaria para perfazer o décimo quarto elemento, fugindo ao fatídico número da Última ceia que ecoa como uma memória mais longínqua. 32

Também nesta fotografia, o cozinheiro Nunes bem como o próprio fotógrafo estão representados, não para conferir apenas uma diferença de número, mas sim para, de igual direito com os outros intervenientes, poderem vir a ter um relevante protagonismo na memória e no significado dos acontecimentos. Pertencem à fábula, dirá a narradora: “Mas o mais importante é que nenhuma daquelas figuras se encontrava em trajes formais, a fotografia reproduzia personagens oficiais a viverem um momento de pausa.” (p. 54)

As posições relativas das personagens, os sentidos e os contextos que vão interessando ao decorrer da narrativa constituem uma informação dispersa em fios ou fragmentos espalhados em todo o painel central do romance que o leitor, eventualmente, poderá recompor. Assim, e como exemplo, sabe-se que existe uma direita e uma esquerda:

António Machado ocupava o primeiro plano esquerdo de um grupo de vários e Rosie Honoré, sentada à direita, ocupava um plano intermédio no canto oposto da mesa.

(…)

Charlie 8 surgia sentado, recuado, de certa a forma empurrado sobre a sua esquerda, pelo braço de Salamida, (…). (pp.53-54)

Existem símbolos que serão apenas cenários, tais como uma “pistola de brincar” na mão do Cui, ou “um tridente” nas mãos do cozinheiro:

Atrás, por cima da sua cabeça, três barbudos, três jovens de cabelos compridos, esguedelhados, dois deles levantavam copos, o terceiro, o menos barbudo, segurava na mão uma arma, apontando-a ao rosto de quem olhasse. Era o Cui. A partir do escadote de Jacob, eu fazia um esforço para me lembrar daquilo que dizia Rosie Machado sobre a arma empunhada pelo Cui. Estava em jurar que a arma era inofensiva, uma pistola de brincar, um objecto de plástico que apenas produzia um som de matraca que faria rir, uma pistola de Carnaval, e contrariava quem dissesse o contrário. Do lado oposto, o cozinheiro do Memories, em toque branca, com um tridente, era de longe a figura mais vistosa, entalado entre Tião, o fotógrafo e El Campeador, o maior carvalho vermelho, segundo o padrinho. (…)

A garrafa de Charlie, a pistola empunhada pelo Cui, as lagostas suadas dispostas em vários pratos, a terrina coberta, de grande asa, que estava diante do peito de Salamida, eram elementos de evocação. (pp. 55 e 56)

32 LAPA, Pedro. O Grupo do Leão. www.museuartecontemporanea.pt/ArtistPieces/view/26. Consultado em 23

61 De notar ainda que até mesmo os objectos sobre a mesa, com a sua carga simbólica, tinham saído da moldura para habitar a história – nomeadamente a terrina, ainda tapada quando a fotografia é captada:

Lembrava-me de Rosie Honoré e António Machado pegarem na fotografia para comentarem os objectos espalhados pela mesa fotografada como se fossem personagens vivas que pudessem sair da moldura e andar pela casa. (p.56)

A equipa de jornalistas irá marcar os encontros que têm como finalidade as programadas entrevistas com alguns dos actores envolvidos no dia memorável, vinte e cinco de Abril de mil novecentos e setenta e quatro em Portugal.

As personagens, bem como os espaços contêm elementos transfiguradores, alguns quase fantasmagóricos ou mágicos, e tornam-se eminentemente visuais.

Salientam-se ainda, mas sem a regularidade invocada, as incursões pessoais da narradora/ jornalista, que podem talvez ser consideradas como fazendo parte de uma contaminação intencional que desmonta, mas simultaneamente aprofunda, todo o processo supostamente investigativo, conferindo-lhe a subjectividade emocional e aprofundando a dimensão ficcional.

No desenvolvimento do segundo painel do romance encontram-se os testemunhos de oito das catorze personagens representadas na referida fotografia. Algumas delas aproximam- -se de um certo conceito de herói, ou seja, de personagens que podemos admitir maiores do que a vida e que, no entanto, deixam surgir sempre a sua humanidade e as singularidades que as caracterizam. Os testemunhos baseados no guião de entrevista já referido, criando aquilo que Graciete Besse define como polifonia, sobrepõem-se em palimpsesto:

Le croisement des différents discours crée une polyphonie à coulées suspendues et met en évidence la singularité des existences qui est humanisée, constituant un remarquable indicateur de l’histoire où l’individuel se confond avec le collectif. (Besse, 2015: 242) As vozes individuais revelam-se nas suas diferenças, permitindo assim multifacetar e dinamizar um certo arquivo aparentemente adormecido, realizando um persistente trabalho de alquimia e desocultação da matéria sobre os mesmos acontecimentos. A perseguição das poeiras luminosas, ainda existentes nos interstícios das memórias do vivido, irá assumir o sentido da viagem, almejando chegar ao âmago desse “dia inicial”.

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Capítulo IV- Testemunhos e ressurgências de sentido