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A sociedade europeia do Alto Medievo viveu uma grade retração do pensamento jurídico; de um lado, pela perda da cultura e dos instrumentos jurídicos da tradição romana – que na ausência de escolas organizadas, significaram um processo de vulgarização do Direito, transformando os procedimentos jurídicos em práticas rudimentares fundadas no empirismo e nos costumes locais –, e, de outro, pela força do controle social exercido pela hegemonia da doutrina cristã109 – cuja

teologia, mais interessada na salvação individual do que propriamente de caráter filosófico-político – buscava conciliar razão e fé por meio da reinterpretação dos clássicos gregos110. Como bem explica Wolkmer:

107 BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 275.

108 LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 43-49. O

autor explica em detalhes os desdobramentos do Direito no Império Bizantino.

109 WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma História das Idéias Políticas. Florianópolis: Boiteux,

2006, p. 35.

110 WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma História das Idéias Políticas. Florianópolis: Boiteux,

A supremacia da Igreja Romana como instituição com legitimidade maior da cristandade consolida os ensinamentos de uma filosofia política em torno da forma de governo, da obediência e dos deveres do cristão ao poder público, as origens e os fundamentos do poder constituído, as relações entre Igreja e Estado etc. Inicialmente, pode se dizer que a concepção cristã de governo e de autoridade legal se baseia numa filosofia do Direito divino, em que o poder constituído provém de Deus, que dá legitimidade aos governantes, competindo ao povo escolhido a obediência e a subordinação às autoridades em exercício111.

Contudo, sobre a influência da Igreja Católica em termos de produção jurídica, Gilissen enfatiza que mesmo com a oficialização do cristianismo no século III e o consequente desenvolvimento do Direito canônico, este não será propriamente “absorvido” pelo Direito Romano, instalando-se, de fato, um sistema dualista – direito laico e direito religioso – que irá perdurar até o século XX112.

Em realidade, após a queda de Roma, os territórios europeus invadidos pelos bárbaros passaram a se organizar em pequenos reinados e principados – dominados por diferentes tribos com costumes heterogêneos: vândalos, burgúndios, godos, francos, bávaros, saxões, lombardos, etc., todas abrangidas pela denominação comum de “povos germânicos”. Nesses reinados, o Direito Romano (da jurisprudência que se transformou em costume – o chamado “Direito romano vulgar” –, e não o do Corpus Iuris Civilis, que ainda é bastante desconhecido no ocidente) permaneceu sendo aplicado às populações de origem romana, enquanto os germânicos utilizaram o Direito costumeiro que lhe era tradicional, criando, assim, na Europa do Alto Medievo, especialmente entre os séculos V a VIII, uma tradição jurídica produto dessa amálgama113.

Isso se deu principalmente pela diferença de nível entre os sistemas, o Direito romano era muito mais evoluído do que aquele dos conquistadores, razão pela qual os germânicos ficaram impedidos de impor seu sistema jurídico114. À prática de

aplicar o Direito (leis) do respectivo povo, raça ou tribo, independentemente do local em que se vive, foi dada a denominação de “princípio da personalidade do direito”115.

111 WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma História das Idéias Políticas. Florianópolis: Boiteux,

2006, p. 42.

112 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 127. 113 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 128. 114 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 167. 115 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O direito romano e seu ressurgimento no final da idade

média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.) Fundamentos de História do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 149.

Embora o último imperador romano do Ocidente seja destituído em 476, a influência romana não deixou, no entanto, de se fazer sentir no Ocidente. A organização administrativa e religiosa conserva aí as características da época romana durante vários séculos. O direito privado romano permanece o direito das populações romanizadas enquanto que os invasores germanos mantêm os seus costumes ancestrais; aplica-se pois a personalidade do direito, pelo menos durante alguns séculos116. (grifo nosso)

Essencialmente consuetudinário e oral, o Direito dos povos bárbaros não era “um”, para cada povo e seus diferentes costumes havia um direito tradicional próprio, guardadas algumas semelhanças117. Contudo, a partir do século V, alguns

reis sentiram a necessidade de ordenar compilações de suas leis reais, especialmente entre os Francos e os Visigodos118.

O ápice de desenvolvimento do modelo de vida feudal se deu nos séculos IX e X. No território antes dominado pelo Império Romano, a Europa Ocidental transformou-se

numa multiplicidade de pequenos senhorios economicamente auto- suficientes, comandados por nobres belicosos que mantinham exércitos próprios. O poder real, apesar de ocupar um lugar no topo da hierarquia medieval, era incapaz de impor a sua vontade aos nobres, o que gerou o desaparecimento da atividade legislativa imperial e principalmente o desmembramento do poder judicial nas mãos dos senhores feudais. Dessa forma, o direito fica adstrito às relações feudo-vassálicas, ou seja, as relações dos senhores com os seus servos. O costume passa a ser a fonte por excelência do direito feudal.119

A evolução do Direito no Alto Medievo, de V a XII, pode ser sintetizada em quatro vetores: (a) embora inicialmente mantido, pelo progressivo desaparecimento do Direito romano; (b) pelo crescimento do Direito dos povos germânicos em contato com os povos romanizados; (c) pela atividade legislativa dos reis e imperadores; e (d) pelo progressivo “desmembramento do poder no quadro das instituições

116 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 166-168. 117 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 162. 118 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 171. Para

uma leitura detalhada desta legislação germânica, ver: GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 169-181 e LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 38-42.

119 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O direito romano e seu ressurgimento no final da idade

média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.) Fundamentos de História do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 150.

feudais”120. A brevidade com que se abordou este período se dá pela menor

influência que ele gravou na cultura jurídica ocidental. “Do longo tempo entre a tomada de Roma por Odoacro e o ano 1000 muito pouco sobreviverá em termos estritamente jurídicos, e pode-se com segurança dizer que o direito comum dos séculos XII a XV supera culturalmente de modo avassalador o que tinha existido antes”121.

Assim, se durante o Alto Medievo, o Direito – composto pelos costumes e práticas bárbaras – possuía caráter indutivo e empírico, com a transição para o Baixo Medievo percebe-se a “incorporação de postulados formalistas do direito romano, o direito ocidental adquire o caráter dedutivo que lhe é característico, com seu significado universalizador, abstrato e consubstanciado pelo atendimento dos requisitos formais essenciais”122.

Com o processo de abertura gradual da vida feudal intramuros durante o período do Baixo Medievo e a fundação das primeiras universidade europeias com características modernas, se estabelece um cenário propício para a retomada do estudo de um Direito mais dogmático e reflexivo. O novo interesse no estudo da compilação de Justiniano foi denominado de período da recepção e pode ser dividido em três grandes fases: (a) entre os séculos XII e XIII, no qual a jurisprudência romana prevalece sobre os direitos locais e ainda existe um trabalho interpretativo muito limitado por parte das primeiras escolas – glosadores e comentadores – que primeiramente se esforçam em compreender o texto elaborado com mais de 500 anos de diferença; (b) XIV e XV, no qual dos direitos locais crescem e se mantêm ao lado do Corpus Iuris Civilis como fontes; e (c) a partir do século XVI, no qual os decretos reais se afirmam como fonte maior, antecipando o monopólio do Direito como produto estatal na modernidade123.

Essas transformações se deram por diversas causas, e cada qual com suas específicas variantes nacionais e regionais. Nesse sentido, o presente trabalho se

120 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 167. 121 LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 50.

122 VÉRAS NETO, Francisco Quintanilha. Direito romano clássico: seus institutos jurídicos e seu

legado. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.) Fundamentos de História do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 110.

123 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O direito romano e seu ressurgimento no final da idade

média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.) Fundamentos de História do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 151-152.

limita a resgatar os “componentes mais expressivos”124 do contexto geral europeu,

que se justificam em fatores de natureza cultural, econômica, política, sociológica e epistemológica.

Sob o ponto de vista cultural, a abertura dos muros da vida feudal implicou o reencontro com a cultura clássica (gregos e outros), ou seja, os povos germânicos –, assim como os romanos o fizeram mil anos antes – foram expostos à cultura do Oriente, muito mais rico e desenvolvido, e a assimilaram. Também na seara econômica há uma série de fatores que contribuíram para a recepção, mas a formação da burguesia como classe econômica e o surgimento embrionário do capitalismo, com a expansão das cidades e do comércio, são indiscutivelmente as duas razões centrais.

O início da sociedade mercantil será catalisador para o Direito, pois a substituição da economia fechada pela de troca125 impõe a necessidade de um

Direito que ofereça os instrumentos e processos que viabilizem o trânsito dessas riquezas, como os institutos de direito comercial, a noção de propriedade – inexistente no Alto Medievo –, bem como os critérios racionais de prova – permitindo o abandono das ordálias – e a prática de uma magistratura profissional, entre outros. Contudo, essa acolhida não será plena e completa; na verdade, há autores que divergem da tese de que o Direito da compilação fosse mais adequado para o novo comércio da burguesia medieval. Franz Wieacker argumenta que o direito romano, produto de um regime autoritário e de uma economia baseada na escravidão, na qual o comércio ocupava lugar secundário, não oferecia a flexibilidade e a dinamicidade necessárias à nova era.

Tanto quanto se pode avaliar a qualidade de uma ordem jurídica apenas a partir das suas normas e instituições sem a valorização da sua função social, o que se pode dizer é que as fortes tendências absolutistas e eudemonísticas da legislação justinianeia não poderiam ter sido especialmente favoráveis aos primórdios do desenvolvimento de uma sociedade aquisitiva, virada para a liberdade, para a mobilidade e para o lucro, como a da época moderna europeia.126

124 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O direito romano e seu ressurgimento no final da idade

média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.) Fundamentos de História do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 152.

125 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 240. 126 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,

Por tudo isso, pode-se concluir que o maior interesse com a introdução do

Corpus Iuris Civilis será especialmente em relação aos aspectos formais desse

Direito, permitindo um trançado do formalismo romano (processos) com as práticas mercantis medievais (costumes) para uma atualização do direito material127. “O que

se aprendia em Itália e França era um método, uma «gramática» jurídica, não o direito realmente aplicável nos vários domínios”128.

Assim, a adequação do direito civil clássico aos interesses empresariais da burguesia nascente não era devido ao conteúdo material de sua legislação, produto de um contexto econômico diverso do existente na Europa à época da ascensão do capitalismo, mas sim a sua estrutura uniforme e racional, baseada na aplicação de leis escritas, previamente estabelecidas, por tribunais compostos por técnicos, que atendiam critérios racionais de prova e argumentação no processo judicial.129

A perspectiva epistemológica – ancorada na criação das universidades e na nova tradição filosófica da escolástica – é de grande riqueza e profundidade. A institucionalização das Universidades será um locus de formação transnacional do ensino jurídico, o ius commune130, na medida em que o Direito romano será ensinado – e depois levado – por estudantes de diferentes regiões da Europa continental, todos com uma língua comum, o latim. Assim, produz-se uma verdadeira revolução no estudo, na prática e mesmo na concepção do que se entende por Direito. Este renascimento é bem sintetizado pelos seguintes fatores: (a) Unidade e ordenação das fontes (que se dividiam em três grandes espécies: Corpus Iuris Civilis, Direito Canônico e costumes locais); (b) Unidade do objeto da ciência jurídica; (c) Unidade quanto ao método e à metodologia jurídica; e (d) Difusão de uma literatura especializada e uma língua comum, o latim131.

Sob uma outra ótica, a recepção da compilação de Justiniano também pode ser interpretada com um avanço em razão de atributos, prima facie, mais vantajosos

127 VÉRAS NETO, Francisco Quintanilha. Direito romano clássico: seus institutos jurídicos e seu

legado. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.) Fundamentos de História do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 109.

128 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,

2004, p. 78.

129 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O direito romano e seu ressurgimento no final da idade

média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.) Fundamentos de História do Direito. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 155.

130 LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 106. 131 HESPANHA, Antonio Manuel. História das instituições jurídicas. Coimbra: Almedina, 1982, p. 441.

que os costumes locais, tais como, ser um Direito escrito, ser um Direito mais “completo”, pois introduzia diversos institutos até então desconhecidos na sociedade feudal, ser um Direito mais teórico e erudito e ser um Direito mais evoluído, porque produto de uma sociedade mais complexa que a feudal. A penetração da jurisprudência romana não foi uniforme; mas em razão da unidade de objeto e metodologia, o Direito da Europa continental será comum, pois a base de construção dos ordenamentos nacionais em formação será a mesma, o que fica conhecido como ius commune132.

Desse substrato comum, que será o alicerce para a formação da tradição da

Civil Law (romano-germânica) é possível identificar, mesmo nos primeiros séculos

da recepção (XII e XIII), traços que posteriormente serão marcantes desse sistema, como a ideia de que regras jurídicas são aquelas dotadas de generalidade e abstração e a formação de uma racionalidade jurídica na qual os casos concretos devem ser precedidos e solucionados por regras gerais fixadas pelo legislador, o que sinaliza o início da lei como a principal fonte do Direito133.

A Universidade de Bolonha, na Itália, foi a primeira a se organizar134. Irnério

(1050-1125), professor do trivium das artes liberais, deu início ao ensino jurídico proferindo aulas sobre trechos do Digesto e é considerado o fundador da Escola dos Glosadores. A metodologia de ensino da escola – que deu o nome pelo qual ficou conhecida – era com base nas glosas: que basicamente consistiam em anotações interlineares (entre as linhas do livro) ou marginais (nas laterais das páginas)135 com

a finalidade primeira de compreender o texto. Tal metodologia não era nova, na verdade já era a forma de ensino da gramática do trivium136. “No estudo da

132 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 203. 133 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 204. 134 “As Universidades são uma invenção medieval”. Embora bastante diferentes da estrutura que

assumem contemporaneamente, muitas Universidade europeias remontam desse período. A época, estas escolas sequer possuíam um campus ou prédio próprio para a finalidade do ensino. As aulas aconteciam em salas ou espaços organizados por cada professor, muitos cedidos pela Igreja. O ensino das artes liberais estava estruturado em dois cursos básicos: O trivium: lógica/dialética, retórica e gramática; e o quatrivium: aritmética, geometria, astronomia e música/harmonia. Esse era o curso geral e a base exigida para os cursos maiores, como medicina, teologia e Direito. Para uma leitura aprofundada sobre o contexto universitário ver LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 104-116.

135 MASSAÚ, Guilherme Camargo. O precursor: Irnério. Revista Discurso Jurídico Campo Mourão, v.

4, n. 1, p. 57-73, jan./jul. 2008, p. 68.

136 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,

gramática, a breve explicação ou a modificação de uma palavra por seu sinônimo dava-se por meio da glosa”137.

A exegese realizada pelos glosadores buscava a máxima fidelidade ao texto; o que deve ser entendido sob o contexto peculiar do período, como as limitações de acesso às cópias do livro (littera), o distanciamento geográfico e temporal desde sua elaboração e a fase embrionária desse novo mundo universitário e científico que estava em formação. A influência do pensamento escolástico contribuiu para o esforço interpretativo da escola.

Tudo ponderado, permanece como certo que os glosadores utilizaram corretamente as figuras geralmente conhecidas da dedução lógica e das categorias aristotélicas: assim, os quatro causae materialis, finalis, efficiens e formalis, bem como as especificamente escolásticas causa proxima e remota, propria e impropria; além disso, a determinação dos géneros (genera) e das espécies (species, specialiter), e os processos da distinctio, divisio e subdivisio.138

Tais instrumentos escolásticos serão especialmente importantes pela postura medieval de estudar o Corpus Iuris Civilis como um “todo lógico racional”139, ou seja,

os medievais tentavam compreender o Corpus como um conjunto racional de normas harmônicas entre si; o que evidentemente era muito distante da verdade, como já demonstrado pela história da compilação. Vale destacar que a opção pela retomada do ensino do Corpus, dentre outras obras jurídicas existentes à época, se dá justamente pela noção de ratio scripta; isso significa dizer que os medievais atribuíam a autoridade da compilação à racionalidade decorrente da palavra escrita e da história da civilização romana140.

137 MASSAÚ, Guilherme Camargo. O precursor: Irnério. Revista Discurso Jurídico Campo Mourão, v.

4, n. 1, p. 57-73, jan./jul. 2008, p. 67.

138 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,

2004, p. 52.

139 ZIMMERMANN, Reinhard. Roman Law and European Culture. New Zealand Law Review, 341,

2007. Disponível em: http://www.direitocontemporaneo.com/wp-content/uploads/2014/02/Roman- Law-and-European-Culture.pdf . Acesso em: 05 mar. 2015, p. 360.

140 WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,

2004, p. 49-50. “A compreensão das intenções dos glosadores, pelos juristas modernos, através da origem da própria ciência jurídica, é mais dificultada do que facilitada por essas premissas. Pois, por sua vez, toda a autoridade do direito romano se baseou, até à aurora do historicismo moderno e do positivismo legal, na crença na ratio scripta. Na verdade, a fonte da legitimação da autoridade de Corpus Iuris modificou-se constantemente. N Alta Idade Média, fundou-se na «na ideia de Roma», i.e., na convicção de que, por força da identidade histórico-espiritual do corpus christianum com o império, o mundo da actualidade era ainda o mesmo dos juristas romanos; e, depois da derrocada dos poderes universais, ela baseava-se na convicção do humanismo jurídico

Apesar de todas as possíveis críticas às limitações da Escola dos Glosadores, indiscutivelmente o trabalho lá iniciado foi um marco decisivo para o curso do Direito e suas fontes na tradição da Europa continental.

Os glosadores, pela primeira vez na Europa, apreenderam dos grandes juristas romanos a arte de resolver conflitos de interesses da vida em sociedade, não mais com recurso à força ou a costumes espontâneos irracionais, mas através da discussão intelectual dos problemas jurídicos autónomos e de acordo com uma regra geral baseada nesta problemática jurídica material. Esta nova exigência dos juristas racionalizou e jurisdicionalizou para sempre a vida pública na Europa; em virtude de sua influência, de entre todas as culturas do mundo é a europeia a única que se tornou legalista. Na medida em que encontrou um princípio racional que substitui (pelo menos na ordem interna dos Estados) a decisão pela força dos conflitos humanos, a jurisprudência criou uma condição essencial para o progresso da civilização material – em especial da técnica da administração –, da organização racional da sociedade económica e mesmo do moderno domínio técnico da natureza.141

Contudo, algumas características negativas desse trabalho dos glosadores acabaram por permanecer e influenciar de forma determinante movimentos jurídicos futuros. Uma primeira consequência maléfica foi a introdução do chamado “legalismo”, ou seja, a prática de uma interpretação literal ou “fria” do texto – o que