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Enquanto a Revolução Norte-Americana foi decisiva para os rumos do constitucionalismo299, a Revolução Francesa foi determinante para a teoria do

Direito, no sentido de que, até a chegada do século XX, toda a doutrina jurídica estava centrada no Direito Privado. Embora o período revolucionário francês também tenha se ocupado da elaboração de Constituições300 – diversas (inclusive!),

em um curto período: (a) 1791, na fase da Assembleia Nacional; (b) 1793, no período da Convenção; (c) 1795, na fase do Diretório, após a ditadura de Robespierre; (d) 1800, com a fase do Consulado, após o golpe de Napoleão no 18 de Brumário do ano VIII (9 de novembro de 1799) –, foi a promulgação do Código Civil, em 1804, o grande divisor de águas para as transformações do pensamento jurídico do século XIX e seguintes.

O processo revolucionário francês marcou uma violenta ruptura com o antigo regime monárquico e com os resquícios do modelo de vida feudal, inclusive quanto às fontes do Direito; até então, a França ainda convivia com uma multiplicidade de ordenamentos jurídicos, territorialmente divididos: ao norte, aplicava-se o Direito costumeiro, e, ao sul, o Direito romano do Corpus301.

Inicia-se uma fase de profundo individualismo302, tanto no Direito privado,

como no Direito público – com a doutrina do liberalismo. Os interesses comerciais da burguesia florescem com a garantia da livre iniciativa, da proteção à propriedade privada, da não intervenção nas relações entre particulares e a observância do princípio do pacta sunt servanda; em resumo, com a tutela da autonomia privada, assegurada pela nova sistematização que a novidade do Código trazia303. “Trata-se

de uma instrumentalização do jurídico como significação dos interesses da burguesia e da dinâmica produtiva capitalista”304.

Essa instrumentalização se evidencia nos motivos da nova classe dominante para a preferência pela codificação. Tal projeto nasce, ainda durante a revolução, da

299 A Constituição dos Estados Unidos, de 1787, foi e permanece muito influente até os dias atuais e

é a também a mais duradoura do período moderno, estando em vigor até hoje.

300 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 430-437. 301 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 2006, p. 65.

302 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 413. 303 LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 59-60. 304 WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma História das Idéias Políticas. Florianópolis: Boiteux,

crença de que seria possível um legislador universal – que edita leis válidas em todo lugar e tempo – e, principalmente, do desejo por um Direito mais simples e direto. Simplicidade e unidade são as duas grandes aspirações.

Para a mentalidade racionalista, o Direito legado pelo medievo – costumeiro ou escrito (do Corpus reinterpretado) – está eivado de uma caótica historicidade e a pluralidade de fontes e registros tornava o conhecimento muito difícil para a população em geral. Por isso, as velhas leis deveriam ser substituídas por uma

ciência do legislador305. Cria-se o mito de que a lei escrita, sistematizada no código, garante maior clareza, certeza e segurança do que outras espécies de fontes e, portanto, seria de mais fácil compreensão para a sociedade leiga em geral.

Started to shake the authority of Roman law: of a law that had given rise to intricate doctrinal disputes, that was wedded to outdated and impractical subtleties, and that had been enacted by the despotic rulers of another age and country. Also, since Roman law was applicable in subsidio, countless more specific territorial or local laws could govern a particular dispute. The great number and complexity of legal sources thus contributed to a widespread feeling of both legal uncertainty and inefficiency as far as the administration of Justice was concerned. The codifications of the Law of Reason were supposed to tidy up this messy situation: they were to provide a systematic regulation of the entire private law, ousting all rival sources of law, including, in particular, the Roman-Canon ius commune.306

Convém mencionar que o Code Civil de Napoleão (1804) não foi o primeiro código da Modernidade; sua novidade reside, principalmente, na forma como foi

recebido. Os precedentes mais antigos remontam à antiguidade e os mais ilustres –

códigos Teodosiano (438) e Justiniano (534) – já foram objeto de estudo no presente trabalho. Mas estes não eram códigos legislativos, seus conteúdos eram uma miscelânea de decretos, doutrina, costumes, pareceres, etc. Os códigos estritamente legislativos se afirmam, em vários territórios europeus, somente no século XVIII307.

O ideário liberal também é uma marca característica desta legislação. O código foi assentado nos pilares do liberalismo: a autonomia individual se expressa

305 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 2006, p. 65.

306 ZIMMERMANN, Reinhard. Roman law, Contemporary law, European law. Oxford: Oxford

University Press, 2000, p. 2-3.

pela exigência de cumprimento dos contratos e pela garantia da sucessão hereditária308.

Mas a verdadeira inovação não estava no texto do novo código, e sim na forma como foi interpretado309. Os juristas da Escola de Exegese defendiam que a lei

era a única e exclusiva fonte do Direito, ou seja, somente o Código Civil era fonte para a produção de decisões judiciais. É estabelecida uma equiparação do Direito à própria lei (código), enquanto direito consuetudinário, doutrina e precedentes perdem a natureza jurídica310. Por isso, as frases de Bugnet, “no conozco el derecho

civil, no enseño más que el Código de Napoleón”, e Demolombe, “mi divisa, mi profesión de fe, es también los textos antes que nada! Publico un curso de Código de Napoleón ; mi objeto es, por tanto, interpretar, explicar el Código de Napoleón mismo, considerado como ley viva, como aplicable y obligatoria ; y mis preferencias por el método dogmático no me impedirán el tomar por fundamento siempre los artículos mismos de la ley”, são tão representativas311.

A ideia de que somente a lei, em especial os códigos – entre 1804 e 1810, Napoleão promulgou o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Código Comercial, o Código Penal e o Código de Instrução Criminal312 –, eram fontes

exclusivas do Direito estava alinhada com uma concepção restritiva da separação de poderes, na qual compete (somente) ao legislador produzir as leis (e, portanto, o Direito), enquanto ao juiz cabe apenas aplicar a lei. Trata-se de uma concepção bastante estatista do Direito, fundada no princípio da onipotência do legislador313,

mas que também dá azo ao princípio da lei como verdadeira expressão da vontade

geral, ideia tão cara à Revolução Francesa.

O fundamento da nova concepção do estudo do direito era a doutrina legalista: todo o direito está na lei. Só o legislador, agindo em nome da nação soberana, tem o poder de elaborar o direito. Não pode, portanto, existir outra fonte de direito senão a lei.314

308 LOSANO, Mario G. Os grandes sistemas jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 59-60. 309 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 2006, p. 73.

310 COING, Helmut. Elementos fundamentais da filosofia do Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris Editor, 2002, p. 319.

311 GENY, François. Método de interpretación y fuentes en derecho privado positivo. Madrid: Hijos de

Reus, 1902, p. 25.

312 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 448. 313 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 2006, p. 86.

A equiparação do texto da lei ao próprio Direito implicou, por evidente, a necessidade de se substituirem regras, práticas e direitos consagrados em outras espécies de fontes pela previsão legislativa. Por consequência, a lei – além de única fonte admitida – deve ser também completa, ou seja, deve fornecer as regras suficientes para solucionar todos os casos que se apresentam aos juízes. O nome da Escola Exegética ou Legalista decorre desse entendimento. O Direito está todo na lei e o juiz ao interpretá-la não cria Direito, apenas aplica aquilo que o legislador produziu anteriormente; a interpretação deve se limitar a uma exegese gramatical diante da clareza do texto.

O juiz devia ser apenas uma máquina que aplicasse inteligentemente um conjunto claro e estável de regras; e estas, portanto, deviam formar uma rede completa, regular e sem solução de continuidade, que indicaria automaticamente a solução de qualquer problema com o qual fosse confrontado.315

Essa ilusão de completude do Código – ou seja, de que este é capaz de abarcar todo o Direito –, significou também uma tendência de isolamento316, na

medida em que o Código “se bastava a si mesmo” e que sua “promulgação era garantia suficiente de sua validade”317. Desta forma, ao abandonar a compreensão

da intrínseca historicidade do Direito, os professores franceses acabam por romper com a temporalidade. O Direito se resume ao Código e a tarefa dos professores se limita a explicar seu texto318. A radicalidade dessa postura pode ser explicada pelo

espírito dos intelectuais iluministas que lideraram a Revolução Francesa.

Diferentemente dos pensadores ingleses, os franceses letrados não possuíam cargos públicos ou participavam dos negócios públicos, mas todos “partiam do princípio de que era necessário que regras simples e elementares, baseadas na razão e no direito natural, substituíssem os costumes complicados e tradicionais que regulavam a sociedade da época”319.

315 KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 411.

316 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 516. 317 KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 412.

318 Como perfeitamente explicitado pelas frases de Bugnet e Demolombe, logo acima referidas. 319 KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: WMF Martins

Edmund Burke (1729-1797), parlamentar e intelectual inglês, já havia refletido sobre os riscos do radicalismo burguês em tratar de forma abstrata as liberdades (direitos) fundamentais, contrapondo a importância e a solidez do caráter histórico das liberdades conquistadas pelos cidadãos ingleses aos direitos humanos abstratos que serviram de emblema para a Revolução Francesa. Afirmando que não é possível construir o Estado sobre as ideias abstratas de liberdade e igualdade, criticou a destruição da tradicional monarquia francesa como uma tentativa de construção de uma nova ordem social fundada na negação histórica que o jusnaturalismo impulsionou na busca por universais320.

O desejo de acabar com os excessivos privilégios e anomalias fez com que os iluministas franceses – na ausência de uma experiência prática com as instituições públicas, capaz de instituir reformas –, adotassem uma política de “remoção completa das antigas estruturas”. O projeto era “começar novamente do nada, construindo dessa vez o edifício do estado sobre princípios puramente racionais”321. Esse ideal iluminista no Direito tinha, inicialmente, inspirações

jusnaturalistas. A simplificação do Direito em um conjunto reduzido de leis claras e universais significava o retorno à natureza, em oposição ao complexo e arcaico emaranhado de normas do Direito histórico322.

Essa concepção foi a base para os projetos de Código, que ao longo do período revolucionário, antecederam o efetivamente promulgado em 1804. Cambacérès, político e jurista francês que trabalhou ao lado de Bonaparte e elaborou esses primeiros textos, afirmava que “existe uma lei superior a todas as outras, uma lei eterna, inalterável, própria a todos os povos, conveniente a todos os climas: a lei da natureza”323. Contudo, foi somente o projeto idealizado pela comissão

liderada por Portalis que viabilizou o texto do novo Código, abandonando completamente a posição jusnaturalista, tendo sido elaborada com base no Tratado

de direito civil de Porthier, mais notório jurista francês do século XVIII324.

320 COING, Helmut. Elementos fundamentais da filosofia do Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris Editor, 2002, p. 65-66.

321 KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 331.

322 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 2006, p. 65-66.

323 CAMBACÉRÈS apud BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 2006, p. 69. 324 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 366; e

François Geny, ao reconstruir os passos da codificação francesa, registra que já nas primeiras propostas ao projeto de Código, ainda durante a fase constituinte, Cambacérès reconhecia a impossibilidade do legislador de “dizer tudo” e afirmou que a tarefa do Código era “establecer principios fecundos, que puedan previamente servir á resolver muchas dudas, y que contengan desarrollos posibles que sirvan para dejar subsistir pocas cuestiones”325. Denunciando o sofisma sobre o qual a

Comissão governamental se apoiava, a posição de Portalis, chefe da comissão de juristas que redigiu o projeto do Código de Napoleão, era no mesmo sentido, reforçando a ação do tempo sobre a sociedade e o Direito.

Hágase lo que se quiera, jamás las leyes podrán reemplazar

enteramente al uso de la razón natural en los negocios de la vida. Las necesidades de la sociedad son ton varias, el comercio

entre los hombres tan activo, los intereses tan múltiples, sus relaciones tan extensas, que es imposible al legislador preverlo todo. En aquellas mismas materias en que ponen su atención, hay una multitud de detalles que se le escapan ó que son demasiado cuestionables y variables para hacerlos objeto de una disposición de la lay. – Además, como suspender la acción del tiempo? Cómo oponerse al curso de los acontecimientos ó variar la dirección de las costumbres? Cómo conocer y calcular previamente lo que sólo la experiencia nos da á conocer?326 (grifo nosso)

Sem dúvida, o aspecto mais relevante da influência dessa escola para a questão das fontes é a introdução do debate sobre a existência de lacunas na lei e/ou no Direito e como solucioná-las. Elevando a legislação (os Códigos) à única forma de produção das normas jurídicas, foi a escola que forjou a base da noção moderna de fontes – pelo menos entre os países de tradição romano-germânica – pois ao afirmar que todo o Direito está contemplado no Código e que este é, portanto, completo, gera um questionamento sobre os limites fáticos dessa legislação em oferecer regras jurídicas suficientes para resolver todos os casos (presentes e futuros) que seriam apresentados aos juízes. Por isso, a Escola de Exegese é especialmente interessante para abordar a questão das lacunas, na medida em que a forma de recepção do código desenvolveu a pretensão (utopia) de completude – de que o código trazia todas as respostas –; e este é o primeiro cenário no qual se consolidou o debate sobre as lacunas e como solucioná-las.

325 CAMBACÉRÈS apud GENY, François. Método de interpretación y fuentes en derecho privado positivo. Madrid: Hijos de Reus, 1902, p. 88.

326 PORTALIS apud GENY, François. Método de interpretación y fuentes en derecho privado positivo.

Antes de enfrentar diretamente o tema das lacunas, é pertinente, todavia, estabelecer algumas distinções. O positivismo exegético, embora admitisse a analogia, a “livre criação” do Direito e até mesmo o uso subsidiário do Direito Natural327, paradoxalmente defendia a completude do Código, ou seja, embora

teoricamente operasse com a ideia de que o Código era completo e que, portanto, somente as regras lá existentes constituíam normas jurídicas, no plano prático admitia a necessidade do uso da analogia ou até mesmo outras formas subsidiárias de integração do Direito – quando o juiz precisa decidir e fundamentar sua decisão para um caso não abrangido pelo texto do Código. Sob essa primeira visão, cumpre ressaltar que para os legalistas somente as regras expressas do Código constituíam normas jurídicas (negavam o caráter normativo dos princípios) e sob o ponto de vista interpretativo predominava uma concepção gramatical de que na literalidade do texto se dispensa a interpretação. Essa era a ideia de “lacuna da lei”.

Já outras correntes de pensamento (também positivistas), mais abrangentes quanto ao reconhecimento das fontes do Direito, tendiam a admitir a ideia de lacunas do sistema jurídico ou do Direito como um todo, cabendo às fontes subsidiárias – tais como analogia, princípios gerais, costume e equidade, as quais algumas escolas não reconheciam sequer natureza de norma jurídica –justamente função de integração do sistema jurídico328.

Embora não seja o objeto central, a perspectiva do presente trabalho, diante da matriz teórica adotada, é no sentido de que tais lacunas decorrem da equiparação do Direito à lei, ou seja, sob o ponto de vista técnico, não existem; pois “se o Direito extrapola a lei, fica mais difícil de se falar em lacunas”329. Significa dizer

que mesmo não se admitindo o dogma da completude do Direito, isso não implica necessariamente reconhecer tais lacunas, o que não significa que sob a ótica hermenêutica elas não existam. Nesse sentido, Lenio Streck resume o debate:

a discussão sobre a existência (ou não) de lacunas no Direito assume relevância, basicamente, em dois aspectos: em primeiro lugar, a discussão é importante para a própria dogmática jurídica, na medida em que a tese das lacunas serve como forte elemento norteador e, também, como sustentáculo ao Direito visto de maneira

327 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 2006, p. 73-78.

328 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2014, p. 119-124.

329 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do

circular e controlado; em segundo lugar, serve, igualmente, como argumento desmi(s)tificador do próprio dogma do Direito baseado no modelo napoleônico, pois pode-se entender , sem dúvida, que, quando o juiz está autorizado/obrigado a julgar nos termos dos arts. 4º da LINDB e 126 do CPC (isto é, deve sempre proferir uma decisão), isso significa que o ordenamento é, dinamicamente, completável, através de uma autorreferência ao próprio sistema jurídico.330

Não obstante o Positivismo Exegético defender teoricamente o axioma da completude do Código de Napoleão, a hipótese de a lei abarcar todos os casos e situações (especialmente futuros) que seriam submetidos ao Judiciário foi, desde muito cedo, tratada como mera ficção entre os próprios legalistas. Nesse sentido, Delmas-Marty afirma “o tempo, única fonte verdadeira do direito. Essa é a lição de prudência e de modéstia que Portalis dirige a todos os que ficassem tentados pelo voluntarismo legislativo”, pois os próprios redatores do código bem sabiam que “um código, por mais completo que possa parecer, mal está terminado e mil questões inesperadas vêm oferecer-se ao magistrado”331.

Contudo, a solução específica para os casos de ausência de texto legislativo adotada pelo Código de Napoleão foi a previsão do Art. 4º: “o juiz que se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou insuficiência da lei, poderá ser processado como culpável de justiça denegada”332. Ou seja, a solução dos redatores

para vedar o non liquet (abstenção de julgamento) foi prever a punição do juiz por “denegação” de jurisdição, sem oferecer, entretanto, orientações sobre como proceder na fundamentação desses casos. Essa solução se desdobra em dois planos. Num primeiro, reforça o dogma da onipotência do legislador, ou seja, o juiz deve se esforçar para encontrar a resposta no interior da legislação produzida pelo legislador e que carrega sua intenção (como se a interpretação desvendasse a “vontade do legislador”). Mas na prática, abre-se uma segunda esfera, um espaço de “livre criação” do Direito, no qual o juiz decide com base em um juízo pessoal (subjetivo) de equidade ou aquilo que entende derivar dos princípios de Direito Natural333.

330 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2014, p. 156.

331 DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 59-60. 332 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone, 2006, p. 74.

Grande crítico do exegetismo e precursor da teoria das fontes do Direito no início do século XX, François Geny denuncia o despropósito da ideia de completude do Código, mas também o mito da “vontade do legislador”, especialmente quanto à noção de que o uso de outras fontes (subsidiárias à lei) – tais como a jurisprudência e a doutrina – estariam limitadas a fornecer uma dedução lógica daquilo que seria a intenção do legislador histórico.

Ante todo, este libro es una obra de sinceridad. Hace cerca de un

siglo que vivimos de una ficción que ha producido todas las ventajas que estaba destinada á procurar, y de la cual ya hace

tiempo que no tocamos sino los inconvenientes. Hay que volver á realidad. Consistía la ficción en creer, no en que la ley fuese

verdaderamente bastante para todo, cosa increíble, pues todo el mundo sabe que no hay ley alguna codificada que pueda abarcar y prever la totalidad de las relaciones jurídicas, sino que

la jurisprudencia como la doctrina en su función de interpretación de