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As várias escolas que se desenvolveram, a partir da segunda metade do século XIX em direção ao século XX, fundadas na novidade da inspiração

395 IHERING, Rudolph von. O espírito do direito romano. Rio de Janeiro: Editora Alba, 1943, p. 37-38. 396 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005, p. 30-

31.

397 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. 168.

398 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. 167.

399 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito,

sociológica, também representam uma significativa transição estrutural na análise do Direito, que parte do Direito Privado rumo a um novo foco, o Direito Público. O Movimento do Direito Livre foi o precursor e impulsionou as demais correntes, cuja base comum era a identificação crítica às posturas formalistas do século XIX, calcadas na interpretação exegética e formalista400, sendo François Geny, duro

crítico do exegetismo francês, um dos primeiros expoentes desse movimento a partir da publicação de sua obra sobre a interpretação e as fontes do direito, na qual defende seu método de “livre investigação científica”, que já foi objeto de comentários em subcapítulo anterior.

O Movimento do Direito Livre, caracterizado pela radicalidade de suas posturas, muitas delas controversas, tais como a possibilidade de o juiz decidir

contra legem, teve uma duração intensa, mas breve. A publicação da obra de Geny,

em 1889, marca seu nascedouro e seu ápice se dá entre os anos de 1905 e 1914, entrando em declínio após a Primeira Guerra Mundial, e foi especialmente desenvolvida em solo alemão, austríaco, francês e belga401. Dentre os autores de

maior destaque, identificam-se o segundo Ihering, Hermann Kantorowicz, Gustav Radbruch, Eugen Ehrlich e Philipp Heck, os dois últimos dissidentes que seguiram com a Jurisprudência dos Interesses. Pelas datas acima referidas, é importante destacar que, portanto, o movimento se desenvolve em oposição ao sistema vigente já sob a tutela do Código Civil alemão (Bürguerliches Gesetzbuch – BGB) de 1900. Mas curiosamente, na crítica de Losano, a escola que, paradoxalmente, critica o sistema por vincular os juízes a um mundo que não corresponde à realidade, “pressupõe a sistematicidade do direito porque é precisamente dela que se pretende distanciar”402, como se percebe na posição adotada quanto às lacunas.

Sobre crítica ao formalismo e à sistematização em conceitos do século XIX e, principalmente, quanto à admissão de lacunas e sua forma de resolvê-las, Losano afirma que o pensamento destas primeiras décadas é marcado pela “contraposição entre a rigidez da certeza do direito, muitas vezes sufocantes, e a flexibilidade da decisão individual, muitas vezes imprevisível. Tal pensamento se coloca à procura

400 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito,

2017, p. 110.

401 LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito: o século XX. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

v. 2, p. 150-151.

402 LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito: o século XX. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

não dos nexos que unem normas diversas, mas dos interstícios entre normas unificadas”403; é um discurso sobre as lacunas do Direito e a função criadora do juiz

ao preenchê-las – o que era vedado pelas escolas anteriores, de interpretação exegética dos “textos sagrados”.

O movimento recebe seu nome por defender que, além das fontes formais, produto do legislador, existe também um Direito livre, usado pelo juiz para colmatar as lacunas legislativas404. Nesse sentido, é possível afirmar que foi somente a partir

das escolas de matriz sociológica que a noção de fontes materiais – ou aquilo que Streck, a partir da leitura de Joseph Raz, denomina de “tese dos fatos sociais” – ganha maior destaque.

O que pode ser definido como características comuns de todas as linhas de pensamento são: (a) a influência da análise sociológica do Direito e as implicações dessa mudança de paradigma; (b) a crítica ao formalismo e aos limites interpretativos impostos pelas escolas do século XIX; (c) a inevitabilidade das lacunas e do papel criativo do juiz na colmatação dessas, por meio das fontes materiais – defendem que, diante da indiscutível existência de lacunas legislativas, é necessário investigar os interesses sociológicos que impulsionaram o legislador na elaboração da lei, como substrato para a decisão judicial; (d) o foco na atividade do juiz.

Outro autor de destaque, Philipp Heck iniciou sua trajetória acadêmica filiado ao Movimento do Direito Livre, mas em razão de sua postura mais moderada rompeu com o movimento, para dar início à chamada Jurisprudência dos Interesses, cuja inovação mais marcante é a introdução da ideia de ponderação como mecanismo de avaliação dos interesses sociológicos em conflito405. Uma vez que o

juiz se utiliza da ponderação para recompor os interesses em conflito no caso concreto, quando a lei for lacunosa, é possível afirmar que, para esta escola, tanto os interesses sociais, quanto à ponderação, operam como fontes materiais – categoria desenvolvida por François Geny, como já estudado anteriormente.

403 LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito: o século XX. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

v. 2, p. 158.

404 LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito: o século XX. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

v. 2, p. 162.

405 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito,

Na Jurisprudência dos Interesses, “a norma jurídica tem por finalidade resolver conflitos de interesses”406, que permeiam tanto a esfera legislativa, quanto

jurisdicional, sendo os preceitos legislativos ao mesmo tempo forma de tutelar interesses e produto de interesses407. Heck – a partir do segundo Ihering – trabalhou

com uma visão finalística, investigando a finalidade do Direito.

A norma jurídica serve para resolver conflitos de interesse; mas, já que o legislador não pode prever todos os conflitos possíveis, as leis apresentam lacunas: a tarefa do juiz consiste em preenche-las, remetendo-se à solução indicada pelo legislador para resolver conflitos análogos. Os valores aos quais o legislador recorre em casos análogos, guiam, portanto, não apenas a interpretação e a decisão do juiz na solução dos conflitos de interesses não previstos pelo legislador, mas também a interpretação das normas já emanadas.408

Paralelo a esses movimentos na Europa continental, há que se destacar o Realismo Jurídico desenvolvido nos Estados Unidos e, também, em território escandinavo (Dinamarca, Suécia e Noruega). Enquanto em solo norte-americano se destacam pensadores como Oliver Wendell Holmes Jr., Karl Llewellyn, Roscoe Pound e Jerome Frank, na Dinamarca o nome de maior projeção foi Alf Ross. O ponto em comum dessas escolas é a compreensão do “Direito como fato social”, pela substituição de uma ciência dogmática por uma jurisprudência empírico- sociológica, ou seja, mais do que um conjunto de conceitos dogmáticos e previsões legislativas, o Direito é um fato que se faz presente na vida da sociedade e a afeta de determinada maneira.

Sobre o realismo norte-americano ainda há que se acrescentar a peculiaridade do contexto da Common Law no qual estavam inseridos. O nome da teoria se deu pelo interesse em compreender a realidade do processo judicial, único meio de aplicar o Direito nos casos concretos409, o que justifica a célebre frase de

Roscoe Pound sobre a diferença entre o Direito dos livros e o Direito na realidade:

406 STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica. Belo Horizonte: Letramento/Casa do Direito,

2017, p. 111.

407 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do Direito. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2005, p. 65. 408 LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito: o século XX. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

v. 2, p. 164.

409 KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: WMF Martins

the law in books and the law in action”410, destacando a necessidade do Direito

de abrir-se para o estudo das influências da economia e da sociologia.

Mas o traço mais marcante da escola é a preocupação com o que

efetivamente era decidido pelos tribunais, por especial influência de Wendell

Holmes, que foi Justice da Suprema Corte. Para explicar sua posição, Holmes sugere que o Direito seja compreendido sobre a perspectiva do criminoso e explica que por mais que os estudiosos tentem definir o que é o Direito por meio de um sistema de raciocínio, princípios éticos ou axiomas, para o criminoso importa saber, de fato, como os tribunais de Massachusetts ou da Inglaterra decidem e o que podem fazer com ele. “Penso de modo muito semelhante ao dele. As profecias sobre o que os tribunais farão de fato, e nada mais pretensioso que isso, é o que eu quero dizer com direito”411.

Kelly esclarece que a preocupação dos juristas norte-americanos com as incertezas do Direito, especialmente a “influência de fatores não declarados” sobre as decisões dos casos concretos, é uma peculiaridade da Common Law norte- americana, desconhecida na Inglaterra em razão de três fatores: (a) a Common Law norte-americana estava dividida em muitas jurisdições estaduais independentes entre si; (b) os poderes legislativos estudais e federal estavam submetidos à Constituição e à jurisdição da Suprema Corte, que com frequência declara inválidos os atos legislativos; e (c) a atuação judicial possuía um caráter não profissional, em decorrência da magistratura eleita pelo voto popular412.

Nesse contexto, se faz muito pertinente o diagnóstico crítico de Streck, para quem os realistas aproximam o Direito de uma mera técnica operacional, resumindo o Direito apenas aquilo que o intérprete afirma ser, “daí dizer que o Direito se realiza pela decisão mesma”. Com isso, a tentativa de superação do formalismo-exegético, abre caminho para a discricionariedade e o decisionismo, na medida em que a equiparação do Direito àquilo que os tribunais decidem demonstra que as posturas realistas não guardam nenhum compromisso com a autonomia do Direito. Assim, sob a perspectiva das fontes, o Direito é a própria vida cotidiana, é um “fato social”,

410 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Roscoe Pound e a diferença do Direito dos livros e da vida

real. Revista Conjur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014abr27/

embargosculturaisroscoepounddiferencadireitolivrosvidareal?imprimir=1> . Acesso em: 15 mar. 2017.

411 KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: WMF Martins

Fontes, 2010, p. 482.

412 KELLY, John M. Uma breve história da teoria do direito ocidental. São Paulo: WMF Martins

ou seja, as normas jurídicas não são produto das fontes formais e de sua inerente função normativa – que asseguram a autonomia do Direito –, mas decorrem das fontes sociais (materiais), operando uma cisão, um verdadeiro “abismo entre o texto e decisão jurídica”413.