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A reelaboração do gênero emergente meme: uma análise possível

4 COMO SÃO ELABORADOS OS MEME?

4.2 A reelaboração do gênero emergente meme: uma análise possível

Ao nos referirmos ao termo reelaboração de gênero, estamos fazendo menção a um processo de extrema complexidade que visa a descrever o fenômeno de surgimento de

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novos gêneros à medida que as relações e atividades humanas se multiplicam paulatinamente. Bakhtin (2016) assertivamente afirmava que quanto mais as práticas sociais entre os homens aumentassem mais haveria a necessidade de novos gêneros para as organizarem. Por isso o termo reelaboração faz tanto sentido para explicar a emergência dessas novas formas discursivas, as pessoas estão em constante processo de elaboração de suas formas de comunicar para, assim, dar conta das novas demandas sociais. Essa reelaboração se dá por meio do uso de formas já conhecidas que vão ganhando novas maneiras de se apresentar ao mundo, bem como de serem usadas socialmente. Sobre isso Bakhtin diz que

Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos etc.) surgem nas condições de um convívio cultural mais complexo em relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – ficcional, científico, sociopolítico etc. No processo de sua formação eles incorporam e reelaboram diversos gêneros primários simples que se formaram nas condições a comunicação discursiva imediata. (BAKHTIN, 2016, p. 15).

Um dos aspectos do contexto complexo ao qual relacionamos a reelaboração do gênero em questão refere-se aos sites de redes sociais, os quais, em certa maneira, refletem os rumos da atual sociedade. Nesse espaço virtual, as pessoas se encontram e lá deixam seus rastros, seus pensamentos e impressões do mundo em que vivem, além de suas mais profundas expectativas. É um verdadeiro caldeirão de onde as mais diversas vozes ecoam, materializando, de alguma forma, a polifonia tão citada pelo filósofo russo.

Os memes são reelaborados a partir de diversos gêneros primários e secundários, os primários são responsáveis pela comunicação imediata, tal como a conversa cotidiana. Já os secundários são as formas mais complexas, os quais são utilizados nos processos comunicativos mais elaborados, tais como artigos jornalísticos, leis, decretos, entre outros. Na imagem a seguir, temos um exemplo de um meme que foi elaborado trazendo elementos de um diálogo, uma conversa que poderia ter se realizado em um encontro furtivo em que duas pessoas se cruzam e, corriqueiramente, se cumprimentam demonstrando um interesse superficial sobre a vida do outro. As marcas gráficas apresentadas na primeira parte do texto deixam claro o aspecto dialogal da sequência textual por meio do uso dos travessões. Logo em seguida, observamos o que parece uma outra voz com a expressão “*no fone de ouvido*”, indicando talvez a voz de um narrador, de alguém que está observando de fora essa conversa, mais uma sequência textual é inserida na tessitura do meme, nesse caso uma de feição mais secundária, mais própria de narrativas literárias em que o narrador aparece contextualizando a história contada.

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Figura 13 – Meme “Diálogo e música triste”

Fonte: Instagram ([FELIPEZANDO...], 2019)27.

O aspecto cômico e majoritariamente digital apresenta-se ao fim da materialidade da figura 13, acima, com a reprodução gráfica de uma interface de um tocador de músicas em que o protagonista da curta narrativa aparece ouvindo uma canção com título bem sugestivo e que aponta para o oposto de sua resposta à pergunta inicial. De acordo com a enunciação trazida pelo meme, o personagem não estava nada bem, pedindo, inclusive para ser salvo. A música em questão é uma canção do grupo mexicano RBD cujo trecho mais conhecido, com sua respectiva tradução é “Sálvame de la soledad/ (Sálvame del hastío) Estoy hecho a tu voluntad/ (Sálvame del olvido) /Sálvame de la oscuridad/ (Sálvame del hastío) No me dejes caer jamás28” (Salva-me do esquecimento/ Salva-me da solidão /Salva-me do tédio/ Estou a sua disposição/ Salva-me do esquecimento/ Salva-me da escuridão/ Salva-me do tédio/ Não me deixe cair jamais) (DAMIÁN, 2004, p. 1).

Esse grupo ficou famoso no Brasil quando a telenovela mexicana da qual os integrantes eram protagonistas foi exibida nacionalmente. O tradicional dramalhão mexicano tematiza as canções do grupo e, talvez por isso, a música “Sálvame” tenha sido usada para compor o emaranhado de gêneros para dar a luz a esse meme.

Notamos esse complexo de gêneros na composição dos memes como sua característica enquanto gênero emergente em constante processo de estandardização com um aspecto peculiar dado o seu contexto de produção que aqui reconhecemos como o ambiente

27Disponível em: https://www.instagram.com/p/BstnwNbh8b1/?utm_source=ig_web_copy_link.

28Disponível em: https://www.google.com/search?/q=salvame+rbd+letra&oq=salvame+rbd&aqs=chrome.1.6 9i57j0l5.4545j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8.

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dos sites de redes sociais. Além disso, ao descrevermos o meme como um gênero majoritariamente pertencente à esfera humorística, essas mesclas semióticas recebem uma liberdade deveras maior, vez que o discurso humorístico possui, em seu interior, uma plasticididade muito acentuada.

Figura 14 – Meme “De eu para eu”

Fonte: Instagram ([JESUS], 2019e)29.

A figura acima também nos apresenta um meme que se apropria de um gênero do cotidiano para elaborar sua mensagem engraçada, a estrutura epistolar é acionada ao fazerem o uso do emissário e destinatário para o envio de uma mensagem bem peculiar. Os elementos risíveis se encontram nos fatos de serem emissário e destinatário a mesma pessoa e a mensagem ser algo em tom

Como o gênero em análise encaixa-se na esfera humorística, percebemos que os recursos estilísticos utilizados para a elaboração dele atendem ao propósito de gerar riso em seu receptor, por isso os produtores recorrem tanto a expressões linguísticas jocosas quanto a junções bastante improváveis de linguagens visuais e hipertextuais para a promoção do riso em seus leitores.

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Figura 15 – Meme “Pesquisando porte de armas”

Fonte: Instagram ([PESQUISANDO...], 2019)30.

O meme acima ilustra bem a nossa afirmação a respeito da escolha de recursos semióticos para a geração de humor no interior desse gênero do discurso. Notamos a presença do uso de uma linguagem mais cotidiana refletindo um discurso mais informal muito próximo da oralidade. Tal característica pode ser notada no uso do advérbio “rápido” que, na frase que compõe umas das partes textuais do meme, assume a função de adjunto adverbial recebendo uma flexão de grau transmitindo a ideia de algo a ser feito muito rapidamente. Esse uso é próprio da linguagem informal em sua modalidade oral e se trata de uma marca de estilo recorrente na construção desse conjunto de materialidades em análise.

O uso da expressão “um negócio” também reveste-se de informalidade como um modo de dizer “algo”, “uma coisa” e podemos notar que tais escolhas lexicais ganham sentido quando lemos o que está digitado na caixa de pesquisa do site de buscas Google “porte de armas brasil lança-chamas”, o enunciador parece estar travando uma conversa consigo mesmo e, provavelmente, esgotou sua paciência com algo ou alguém e, por isso, está buscando informações que o esclareça tanto a respeito do porte de armas no Brasil quanto à possibilidade de comprar um lança-chamas e assim usá-lo para dissipar a causa ou o causador de seu destempero emocional.

Outro aspecto estilístico que observamos é o uso da linguagem hipertextual na composição do meme, no caso desse exemplo que estamos analisamos, notamos o uso da imagem da interface gráfica do site de buscas Google, tal uso parece auxiliar o leitor a fazer uma leitura hipertextual do signo evocado, isto é, um site que tem como principal característica prover resposta para todas as perguntas que porventura tenham um navegador da grande rede mundial.

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Ainda seguindo a análise do componente estilístico no processo de elaboração do meme, apresentamos um outro meme para corroborar com nossas observações a respeito das escolhas semióticas feitas pelos produtores desse gênero emergente.

Figura 16 – Meme “Surtadas se encarando”

Fonte: Instagram ([SURTADAS...], 2019c).31

No meme em questão, notamos o aspecto humorístico por meio do uso da expressão “surtadas”, fazendo referência à personagem em destaque no corpo do gênero e à pessoa que está lendo a mensagem emitida, isto é, o usuário do site de rede social onde essa peça foi veiculada. A escolha da expressão para definir a personagem é bastante propícia, uma vez que se refere à Carminha, uma personagem vivida pela atriz Adriana Esteves na telenovela Avenida Brasil (AVENIDA..., 2019) que foi exibida pela Rede Globo no ano de 2012. A personagem era uma vilã que ia até às últimas consequências para conseguir o que queria, e suas cenas de grandes surtos figuravam como um dos grandes chamarizes para atingir a grande audiência obtida pelo folhetim.

A relação estabelecida pela imagem e pelo usuário reveste-se de humor por meio da frase “aqui podemos ver duas surtadas se encarando”. O aspecto recorrente nessas escolhas lexicais e de construção frasal encontra-se no uso da oralidade, dessa vez a frase evoca alguém explicando algo para uma audiência, que nesse caso é o próprio usuário da página, a qual serve de suporte para o meme. Mais uma vez o hipermidiático surge como elemento importante na criação desse tipo de texto imagético-verbal por meio do uso da imagem da personagem que passou a compor o conjunto de referências de vilãs da cultura pop brasileira recente.

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Ao relacionarmos tal afirmação com a prática discursiva em análise, notamos que o aspecto composicional verdadeiramente apresenta grande valor para o reconhecimento dessa prática como gênero do discurso. Ao longo dos exemplos até aqui mostrados (vide figuras 13 – 16), percebemos a recorrência de uma estrutura em que aparecem o aspecto textual e visual, os quais fundidos, formam uma única materialidade que pode ser facilmente reconhecida pelos seus produtores e consumidores como um gênero do discurso, comprovando a assertiva bakhtiniana que, para cumprir sua função dentro da esfera discursiva a que pertence, o gênero deve apresentar uma forma facilmente reconhecível.