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A REFORMULAÇÃO DA METODOLOGIA DO CÍRCULO FILOLÓGICO

3 ESTILÍSTICA DE LEO SPITZER COMO MÉTODO DE INVESTIGAÇÃO

3.4 A REFORMULAÇÃO DA METODOLOGIA DO CÍRCULO FILOLÓGICO

Como foi apresentado acima, a contribuição de Leo Spitzer para os estudos literários é extraordinária, apesar de algumas das suas mais fortes opiniões serem vagas e de sua inclinação ao universalismo ser exagerada, principalmente quando atribuía demasiado peso na

relação entre estilo individual e “alma de uma nação”. Esta tese de doutoramento, no entanto, propõe uma adaptação evolutiva das ideias de Spitzer a fim de chegar finalmente mais perto de uma estilística sociológica (ou antropológica). Descansar a lupa linguística sobre as letras de fado em busca de um desvio estilístico revela-se muito mais eficaz do que estudar um só autor pelos seguintes motivos:

a) Porque o fado é uma canção nacional, entendida, produzida e consumida como tal pela totalidade da população, como já foi visto nos capítulos acima, há mais de um século. Portanto, tem muito mais força enquanto revelador da cosmovisão de um povo;

b) O corpus analisado não apresenta os cacoetes linguísticos de um só autor, mas de centenas de compositores que vêm de diferentes histórias de vida, havendo desde um músico-letrista analfabeto que cria as letras verbalmente, até poetas consagrados que escrevem para o fado (caso de um José Régio, de um Alexandre O’Neill, de um Pedro Homem de Mello, de um Ary dos Santos);

c) O ritual do fado (o encontro comunitário, a festa, a apresentação, a teatralidade) serve de filtro social da produção discursiva de tal manifestação artística. Em outras palavras, por mais que um autor individualmente resolva inovar num estilo, sua canção terá sempre de passar pelo crivo do povo. Na tasca, no clube de bairro, alguém cantará tal fado, haverá ou não aplausos, pessoas gritarão ou não “—há fadista!”, o compositor ou o interprete será ou não cumprimentado com loas no final da apresentação, etc. Esse conjunto de atividades comunitárias que ocorrem no ritual do fado (e que não teria como existir em nenhum exemplo de Spitzer) serve como as tramas de uma peneira; uma peneira social que só deixa passar aquilo que é autêntico, que é comunitário, que é compartilhado pela massa, pelo povo. Portanto, se um fado feito na década de 1930 é cantado e aplaudido até hoje, esse fenômeno tem mais peso (o que a letra desse fado diz é mais importante) do que um fado do ano passado, ou um fado antigo que já sumiu das tascas. O mesmo acontece com o filtro do mercado fonográfico: canção gravada e regravada por diferentes intérpretes significa que o povo se identifica com aquela música, com aquela letra, com aquela representação artística da realidade, que também passa a ser sua;

d) Como já escrito na seção1.2 deste trabalho, Portugal pode ser alegadamente uma nação culturalmente mais monolítica do que outras, como defendeu também António José Saraiva (SARAIVA, 2007, p. 79-80). País de pouco numerosa população protegida por uma das fronteiras mais antigas de toda a Europa, não se pode separar nele blocos muito diferentes.

É, portanto, por todas essas vantagens que esta tese procurará aplicar o método estilístico sobre um corpus mais abrangente, sugerindo, assim, uma estilística antropológica17 que revelaria, com mais confiança, idiossincrasias de um povo.

A segunda divergência desta tese de doutoramento em relação ao pensamento de Spitzer é que o elemento estilístico para chegar à alma de um povo, ou grupo social determinado, não deveria ser o desvio, a inovação estilística de um único autor, mas sim a obsessão estilística repetitiva de todo o grupo social, o desvio coletivo. Se se puder descobrir uma norma linguística grupal idiossincrática de um povo, muito provavelmente nesta norma está algo fundamental a ser interpretado. Antes de entrar no campo da literatura, o mesmo pode ser exemplificado em termos linguísticos.

António José Saraiva, por exemplo, em um dos ensaios sobre as características próprias da língua portuguesa contido no volume A Cultura em Portugal (2007), demonstra como diferentes rumos evolutivos provindos do latim vulgar e que resultaram na criação do português e do espanhol estão diretamente ligados a traços de personalidade dos povos que fizeram tal movimento. Segundo o autor

[...] é evidente que [as diferentes línguas] se diversificam no sentido de constituir expressões de personalidades colectivas diferentes e contrastantes. São, por excelência, obra colectiva e popular [...], feita de ínfimas deformações e inovações que, acumulando-se num dado meio fechado, se orientam num dado sentido[...]. Através ou dentro da língua está o criador colectivo, abstracção indispensável para raciocinar tanto em matéria linguística como em literatura tradicional. (p. 43).

Este mesmo ponto de vista, que é uma das bases do idealismo linguístico de Spitzer e também um dos pilares teóricos desta tese de doutoramento, é também compartilhado pelo criador da escola filológica em Espanha, Ramón Menédez Pidal:

17 Devido à forte influência do filtro ritualístico nos fados analisados preferiu-se aqui utilizar o termo estilística

Qualquer mudança na actividade colectiva tradicional, tanto no que respeita à linguagem, como à canção popular, como ao costume jurídico, etc., funda-se no facto de que muitas gerações consecutivas participam de uma mesma ideia inovadora e a vão realizando persistentemente, apesar de pequenas variantes no modo de concebê-la; constituem uma tradição nova em pugna com outra tradição mais antiga. (apud SARAIVA, 2007, p. 43, grifo nosso).

Um exemplo dado por Saraiva acerca da relação entre falante e forma de falar é o do enfraquecimento fonético das vogais átonas “o” e “e”, que o brasileiro ainda conserva, emudecidas em Portugal a partir do século XVIII, assim como as vogais finais. Segundo ele, tal fenômeno está de acordo com a atitude do falante, no caso o povo português, que não é teatral e extrovertida como o espanhol e o italiano, e mesmo como o brasileiro, mas sim uma atitude introvertida e pouco projetada para o exterior (SARAIVA, 2007, p. 50). Essa mesma diferença de cosmovisão, ou perfil do povo português também serve, segundo o mesmo autor, para justificar a vasta quantidade de ditongos descrescentes (eu, deus, meu, pai, coisa) em português, que revelam uma atitude mais calma, mais mansa, em comparação aos ditongos crescentes espanhóis (yo, Dios, duele, cielo), muito mais dramático e teatral (SARAIVA, 2007, p. 58-59).

Se somente um único brasileiro falasse de forma mais aberta do que um português, pronunciando todas as vogais demoradamente, nada se poderia interpretar desse desvio linguístico com relação ao espírito do Brasil. Porém, quando é comprovado que quase a totalidade dos 200 milhões de pessoas que falam uma língua pronunciando as vogais mais lentamente do que os falantes do seu local de origem, quando esse fenômeno existe, algo mais profundo pode ser interpretado18.

Do mesmo modo, resumindo, acredita-se nesta tese que a repetição obsessiva de um

clichê, e não de um desvio estilístico, por um grande grupo de compositores de fado é muito

mais revelador do que a idiossincrasia de um único artista.

18 Uma tentativa seria a de que o português, por um lado, sempre teve a tendência de proteger a língua e o país de

espanhóis (que facilmente compreenderiam um portugues falado vagarosamente), comerciantes estrangeitos e imigrantes que povoavam Lisboa. (Como num jogo de futebol entre Argentina e Brasil: os jogadores têm a tendência a falar mais rápido e com mais gírias para não serem compreendidos pelo adiversário.) Do lado brasileiro, por sua vez, poder-se-ia argumentar que uma terra historicamente habitada por muitas pessoas cuja lingua portuguesa não era a lingua materna, e com a intenção de fazer comércio entre si, a única forma era falar pausadamente, abrindo as vogais para serem bem compreendidos.

4 “LISBOA, CIDADE-MULHER DA MINHA VIDA”: PERSONIFICAÇÃO DA