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A TERCEIRA CERCA DA CIDADE DE LISBOA

4 “LISBOA, CIDADE-MULHER DA MINHA VIDA”: PERSONIFICAÇÃO DA CIDADE

4.5 A TERCEIRA CERCA DA CIDADE DE LISBOA

Ficaram claras acima as origens históricas da personificação de Lisboa nas letras de fado, assim como na Literatura e em outras artes. Em seguida, foram expostas também idiossincrasias da alma portuguesa que justificam e explicam por que o português tem diferenciado apreço pela prosopopeia. Agora, resta responder a seguinte pergunta: por que a personificação no fado é tão presente, tão obrigatória? Por que na poesia do século XX que fala de Lisboa a personificação, apesar de existir, caiu em desuso, mas sua presença no fado continua forte?

Para responder essa pergunta é preciso explorar outro aspecto que se revela por meio da Análise de Discurso aplicada sobre as letras de fado acerca de Lisboa: a tradição. O fado, seja o seu tema a cidade ou qualquer outro, quase sempre fala do passado, de profissões que não mais existem (como a varina), de uma vida antiga, das navegações, das touradas, etc. No

corpus desta tese, ao menos 51% dos fados cantam, com diferentes graus de intensidade, a

Lisboa do passado e suas tradições:

Lisboa Antiga

Lisboa, velha cidade, Cheia de encanto e beleza! Sempre a sorrir tão formosa,

E no vestir sempre airosa. O branco véu da saudade Cobre o teu rosto linda princesa!

Olhai, senhores, esta Lisboa d'outras eras, Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais! Das festas, das seculares procissões,

Dos populares pregões matinais que já não voltam mais! (MATOS, 2010).

Lisboa dos Manjericos

Olha, olha para ela Trás o mundo num balão Ai Lisboa é sempre aquela Aí Lisboa é sempre aquela Que mantém a tradição. (RODRIGUES, 2000).

Venham Ver Lisboa

Se quiserem ver uma cidade que é um altar Onde a tradição é um motivo de beleza [...]

Ó Lisboa antiga a tradição tem seu lugar

E as recordações espreitam a gente em cada esquina (SILVA, 2010).

Bairros de Lisboa

Vamos ambos pela mão De duas rimas de fado Aos bairros de tradição Na boémia do passado! (MARCENEIRO, 1993)

Ai Lisboa

Eu nasci numa cidade que em verso Escreveu alguém, que foi berço Dos caminhantes do mar. (RODRIGUES, 2010).

Lisboa

Andou de lado em lado Foi ver uma toirada Depois bailou, bebeu Lisboa

Ouviu cantar o fado Rompia a madrugada Quando ela adormeceu. (RODRIGUES, 2004).

Maria Lisboa

É varina, usa chinela, tem movimentos de gata;

na canastra, a caravela, no coração, a fragata. (MARIZA, 2002).

Lisboa é sempre Lisboa

Lisboa é sempre Lisboa Dos becos e das vielas E das casinhas singelas D'Alfama e da Madragoa Dos namorados nas janelas Das marchas que o Povo entoa Da velha Sé, das procissões E da Fé, com seu pregões Lisboa é sempre Lisboa. (SILVA, 2010).

Comparando com a poesia do século XX, por exemplo, o caso é bem outro. O modernismo português acolheu com entusiasmo os ideais futuristas, com tudo que este implicava em relação à mudança, à internacionalização da sociedade, ao culto da máquina e das cidades em oposição ao trabalho rural do campo. Fernando Pessoa começa assim o seu artigo acerca d’O Provincianismo Português:

Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro. (PESSOA, 1980, p. 159).

Para os modernistas, o português era campônio, com todos os seus hábitos ultrapassados, sua falta de brilho, sua estreiteza de vistas. Sá-Carneiro escreveu assim em Céu

em Fogo:

Lisboa era uma casa estreita, amarela — parentes velhos que não deixam sair as raparigas — luz de petróleo, tons secos, cheiros de alfazema...

[...]

Porque a sua tristeza provinha disto só: na Lisboa medíocre não circulavam mulheres luxuosas na audácia seminua dos últimos figurinos, nem silvavam automóveis pejando as avenidas [...] e os cafés eram desertos [...]. (SÁ-CARNEIRO apud LOUREIRO, 1996, p. 310).

À maneira de Marinetti e seus seguidores futuristas, Álvaro de Campos vibra com o progresso e com a febril agitação da cidade grande.

Este é um produto do estádio civilizacional da época, caracterizado por avanços significativos na ciência e na técnica, de que resultam progressos equivalentes na indústria e, consequentemente também, no comércio. [...] Desse ‘momento estridentemente ruidoso e mecânico’ nos dão conta a ‘Ode Triunfal’, a ‘Ode Marítima’, a ‘Saudação a Walt Whitman’, a ‘Passagem das Horas’, para citar apenas os textos mais importantes nesta matéria. (LOUREIRO, 1996, p. 79–80).

Os modernistas, portanto, davam as boas vindas à interferência externa que era exercida sobre a pureza cultural portuguesa. Como nestes versos de Campos,

Ah, os primeiros minutos nos cafés de novas cidades! A chegada pela manhã a cais ou a gares

[...]

Os ónibus ou os eléctricos ou os automóveis... (CAMPOS, 2002, p. 103).

O café, por acaso, torna-se símbolo deste cosmopolitismo. Não apenas frequentado pelos poetas e artistas modernistas, o café também aparece em muitas de suas obras. Para Sá- Carneiro, poeta para quem Lisboa representava o atraso, enquanto Paris era o luxo, o futuro, o café é muitas vezes presente em seus poemas:

Seja enfim a minha vida Tarada de ócios e Lua: Vida de Café e rua, Dolorosa, suspendida— (SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 89). Minha mesa no Café,

Quero-lhe tanto... A garrida Toda de pedra brunida

(SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 94). Entanto eis-me sozinho no Café:

De manhã, como sempre, em bocejos amarelos. (SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 119).

Vou deixá-la—decidido— No lavabo dum Café, Como um anel esquecido. É um fim mais raffiné.

(SÁ-CARNEIRO, 1995, p. 98).

O café, símbolo da cidade moderna, quase nunca aparece no fado, que, curiosamente, estava, na mesma época, experimentando uma das suas maiores ondas de popularização,

catapultado pelos meios de comunicação, pelo advento das técnicas de gravação sonora, da Rádio e dos teatros de revista. O fado canta e enaltece a tasca, a taberna bairrista, enquanto a poesia erudita, os cafés, como pode ser exemplarmente demonstrado pelo icônico fado intitulado A Tendinha, de autoria de José Galhardo:

Velha taberna

Nesta Lisboa moderna É a tasca humilde e eterna Que mantém a tradição. Velha Tendinha És o templo da ginjinha Dos dois brancos de gimbrinha Da boémia e do pifão.

(RODRIGUES, 1998).

Neste fado, a tasca é templo que protege e diviniza a tradição. O fado nunca foi cantado em cafés, assim como os poetas modernistas raramente citam o ambiente das tascas. Exceção para escritores com a sensibilidade de um António Botto, que escreveu alguns poemas que mais parecem letras de fado:

Lisboa

Lisboa da fadistice

― Senhora Dona e galdéria! Lisboa das zaragatas

Por qualquer coisa e por nada; Lisboa dos decilitros

De tasca em tasca, vadia, Complicante e à bofetada; Lisboa da tradição ―Sorriso de nostalgia!

(BOTTO, 2002, p. 307, grifo nosso).

O universo fadista, portanto, é aquele da tradição: de lembrá-la, enaltecê-la e protegê- la. É muito comum, por exemplo, o fado dar bronca na cidade de Lisboa quando esta deixa de ser suficientemente portuguesa, como é o caso do famoso fado que repreende a cidade por ser demasiado francesa:

Lisboa não sejas francesa

Não dês desgostos ao teu pai Lisboa não sejas francesa Com toda a certeza Não vais ser feliz.

Lisboa, que idéia daninha Vaidosa, alfacinha, Casar com Paris (NUNES, 2010).

Bairro Eterno

Oh! Lisboa dona airosa Que fizeste à Mouraria Que anda triste e desgostosa A soluçar noite e dia [...]

Vais passar a ser moderna Ter mais cor mais fantasia Sem deixar de ser eterna Mouraria, Mouraria (MAURÍCIO, 1999).

Assim sendo, destaca-se uma das mais importantes funções sociais do fado: a proteção do portuguesismo, da tradição. É como se o fado fosse a terceira cerca de Lisboa (depois da medieval e da fernandina). Ele protege a cidade (e o país) da influência externa, da pasteurização do que é genuíno e do que faz de Portugal Portugal. Talvez sintoma disso seja o fato de o fado estar mais ou menos contido, cercado, em aproximadamente 100 melodias. Todas as letras de fado se encaixam numa delas, sendo que deve haver algumas dezenas que são aquelas que se ouvem normalmente nas tascas e agremiações. Destarte, o repertório fadista acaba por ser restrito a essa barreira tradicional, a esse muro. Inovação não é a maior virtude do fado.

Parece concordar com tais argumentos, de que o fado representa e protege o portuguesismo, Eça de Queiros, numa singular passagem de sua célebre carta a Oliveira Martins, a 10 de maio de 1884:

Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, francês — excepto num certo fundo, sincero, de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada. Em tudo o mais, francês, de província. (QUEIRÓS apud NERY, 2010, p. 141, grifo do autor).

Sempre que tais barreiras tradicionais são questionadas causa desconforto no mundo do fado. É o caso da histórica polêmica do lançamento, em 1962, de um dos discos mais importantes da própria história do fado: Busto, cantado por Amália Rodrigues, com músicas de Alain Oulman e letras de David Mourão-Ferreira e Pedro Homem de Mello. A revolução

musical proposta por Oulman ― de linhas melódicas muito mais amplas que possibilitavam serem cantadas letras mais sofisticadas ― levou com que os guitarristas apelidassem tais fados de óperas, dada a sua complexidade. Com relação às letras, diziam que Amália passara a cantar poemas à Picasso. Hoje em dia, quase todos os estudiosos o qualificam como o LP mais revolucionário do fado e responsável pela sua modernização.

Desse modo, o tropo tradicional da personificação é utilizado no fado como um emblema de tradição. Um aspecto linguístico que lembra o passado, os poetas românticos, os lugares comuns do arcadismo, lembra a grande personificação de Lisboa feita por Fernão Lopes, que tem suas origens na literatura e pensamento romanos. Usa-se o tropo tradicional para lembrar, exaltar e proteger o que é tradicional. Um tropo tradicional que se insere num ambiente, numa produção cultural que trata repetidamente do tradicional e o protege.

A tradição nunca finda Inda ninguém a matou E o presente vive ainda Do passado que ficou! (MARCENEIRO, 1993).

É do mesmo modo curioso o mais popular epíteto da cidade de Lisboa: menina e moça. “Lisboa, menina e moça” é uma expressão corrente no fado, eternizada pela letra de Ary dos Santos, mas comumente escutada pelas ruas da cidade. É muito comum, por exemplo, alguém voltar de férias e ouvir: “então, já estás de volta à Lisboa, menina e moça?”. É, no entanto, tal epíteto, muito antigo. Editada em 1554, a novela pastoril de Bernadim Ribeiro, intitulada inicialmente Historias de Menina e Moça, e depois Saudades, ficou imortalizada pela primeira frase: “Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe”.

Se é então correto afirmar que o fado exalta, com a função de proteger, a tradição; se não é ilícito interpretar a profusão de personificações nos fados que falam de Lisboa como uma referência a esta tradição (ou a ideia abstrata do que é tradicional); se a prosopopeia se encaixa perfeitamente ao perfil poético e rústico do português, então, seguindo a proposta de Leo Spiter — de ir e vir do detalhe linguístico para o texto e vice-e-versa — seria esperado encontrar outras personificações no fado. E é justamente esse o caso.

A começar pelos próprios fados que cantam Lisboa, às vezes aparecem também outras prosopopeias, sendo a mais comum a do Tejo, como seu namorado.

Lisboa Namoradeira

Depois o Tejo Quer beijar Lisboa É tudo namoro É tudo ternura. (CONCEIÇÃO, 2008). Lisboa Formosa Em carícia apaixonada O Tejo beija-te os pés Lisboa cidade amada Lisboa tão linda és (MAURÍCIO, 1997).

Lisboa e o Tejo

Chama-lhe marinheiro sem rumo nem rota, Sempre atrás das asas de alguma gaivota Ele numa onda atira-lhe um beijo E assim namoram lisboa eo tejo. (FÉ, 1993).

Mas não só o Tejo é personificado no fado. Outra personificação interessante já citada no capítulo 2 é a personificação de uma ausência, da saudade.

Sabendo que em tua ausência Prazer algum me conforta No momento em que saíste A saudade entrou-me a porta. (BARBOSA, 2012).

Bairros também podem ser no fado personificados. Esta famosa canção, do repertório de Carlos do Carmo, letra de L. Neves, personifica o Bairro Alto como um homem que sai cantando pela cidade, junto com o próprio Fado e outros trovadores, criando assim uma surrealística cena boêmia em que interagem bairro, fado, ser humano e Lisboa:

Bairro Alto

Bairro Alto aos seus amores tão dedicado Quis um dia dar nas vistas

E saiu com os trovadores mais o Fado Pr'a fazer suas conquistas.

Tangem as liras singelas, Lisboa abriu as janelas, Acordou em sobressalto! Gritaram bairros à toa, Silêncio velha Lisboa,

Vai cantar o Bairro Alto! Trovas antigas, saudade louca. (CARMO, 1987).

Outras vezes apóstrofe, dialogismo e prosopopeia podem personificar as guitarras:

Guitarras de Liboa

Guitarras, atenção, cantai comigo! Calai o vosso pranto, trinai Como lhes digo, trinai

Guitarras, desta vez, sem ar magoado Trinai esse meu canto

Que é vosso este meu fado. (CAMANÉ, 1995).

E até mesmo os telhados da cidade:

Telhados de Lisboa

São modestos os telhados Que nasceram p´ra chorar, Ermitões ajoelhados De mãos postas, a rezar, [...] (BRITO, 1995).

Vê-se que a prosopopeia, apesar de aparecer quase que obrigatoriamente em todos os fados que tratam da cidade de Lisboa, também é muito privilegiado em canções que cantam outras aspectos da cidade ou mesmo outros temas, como a saudade.

Resta agora responder outra, e talvez mais interessante, pergunta: se Lisboa é uma mulher, que mulher é esta?