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2 OS PRINCIPAIS TEMAS DO FADO

2.2 A IMPORTÂNCIA DAS LETRAS

Característica marcante do fado é a posição de destaque que as letras das canções tem no conjunto da música, assim como no todo do ritual. Uma das primeiras e mais claras evidências desse fato é a importância dada ao silêncio nos encontros onde se canta o fado. Não teria ele, portanto, outra função senão a de canalizar todas as atenções ao texto das canções. Como é sabido, algo muito diferente de um ritual (roda) de samba, por exemplo. Concordando com esse ponto de vista, o fadista António Pinto Bastos declarou o seguinte em entrevista à Teresa Castro d’Aire: “[...] o fado vive também muito das palavras, da mensagem, do sentimento, e se eles [o público] estão só ali a ouvir a melodia e não percebem aquilo que está a ser cantado estão automaticamente a perder uma parte importante daquilo que lhes é dado”. (D’AIRE, 1996, p. 60).

Segundo defendem os historiadores do fado, a explicação diacrônica para tal fenômeno está em suas origens. Conforme Vieira Nery, a música dos primeiros fados revela uma prática melódica fundamentalmente improvisatória a partir de um grupo estável de padrões formais. Desde os primórdios do fado até os dias de hoje, há uma nítida separação funcional entre música e letra. Há um corpus limitado de melodias, conhecidas e partilhadas

pelos músicos, sobre o qual se aplicam as ilimitadas letras. Tal característica do fado está diretamente ligada à tradição de improviso que sempre existiu, principalmente em tempos passados. Alguns dos poemas antigos que nos chegaram “são meras sequências de quadras soltas, que circulavam na tradição popular sem indicação de autoria, podendo ser apropriadas livremente por cada autor”. (NERY, 2004, p. 83).

O fado foi, em seus primórdios, uma música produzida e consumida entre a realidade operária e o submundo lisboeta, sendo uma prática cultural destinada aos momentos de lazer e de encontro comunitário: “prostitutas e marginais se entrecruzam com marinheiros e estivadores, operários fabris e artesãos, trabalhadores braçais e vendedores ambulantes, embarcadiços, retornados do Brasil, negros e mulatos”. (NERY, 2004, p. 58). Assim sendo, como tal camada baixa da população era, em sua grande maioria, analfabeta, o fado foi, por muitas décadas, umas das principais fontes de notícias, crônicas e histórias deste povo. Soma- se a isso, igualmente, o primitivo estado dos meios de comunicação de Portugal no século XIX para se ter completo o quadro. Daí, portanto, a grande importância dada às letras dos fados, como atestam também os fadistas Rodrigo:

[...] o fado acabou por ser adoptado pelo povo, porque na altura os meios de comunicação quase não existiam e então o fado era uma forma de se contar muita coisa, e alertar, e dizer determinadas verdades que tinham de ser ditas e, quanto a mim, esta foi uma das funções mais importantes do fado, e ainda hoje é, nalguns aspectos. Ainda hoje o fadista é uma espécie de veículo de consciencialização [sic] social. [...] Portanto a função do fado começou por ser essa, a de fazer crônica social [...] (D’AIRE, 1996, p. 15);

João Braga:

o fado é um tipo de música em que o mais importante é a história que se conta, e porquê [sic] isso? Porque são melodias muito bonitas, mas muito pouco ricas; o suporte das melodias, os acordes, são quase sempre os mesmos, [...] e que dá para quase se dizer, para se recitar um poema, ou recitar uma letra que conta uma determinada história”. (D’AIRE, 1996,p. 68);

e António Pinto Bastos:

“[o fado é] um bocadinho pobre do ponto de vista musical. Eram acompanhados pelas guitarras, mas nessa altura o fado era muito mais o que se dizia, e como se dizia, do que propriamente a voz, e a música muito menos ainda, era uma coisa que tinha muito pouca importância. Portanto, no princípio era uma espécie de despique entre as pessoas que cantavam, eram as desgarradas, que tiveram na altura uma

importância muito grande, eram as disputas entre as pessoas capazes de improvisar versos engraçados e, aliás a propósito disso, penso que o fado não começou por ser uma canção triste. Era, sim, o divertimento daquelas pessoas que não tinham muito mais com que se divertir”. (D’AIRE, 1996, p. 54).

Inicialmente, quase todos os temas possíveis foram cantados através do fado. A classificação clássica desses temas no século XIX é a de Alberto Pimental que, em um dos primeiros estudos a este respeito (PIMENTEL, 1904, p. 101–103), dá exemplos de fados botânicos, fados matemáticos, fados mecânicos, fados químicos, entre outros:

Além da vida do fadista e da morte das mal-fadadas que viveram entre o povo, o Fado canta ainda outros assumptos, a saber :

a) O amor, como o fadista é capaz de o sentir; sem delicadeza e sem recato;

b) Os trabalhos e soffrimentos das classes sociaes que estão em contacto com o fadista ou próximas a elle;

c) Os aspectos da vida popular e a chronica das ruas, como as hortas, os pregões, a noite de Santo António;

d) Os grandes crimes e os grandes desastres terrestres ou marítimos, que impressionam a opinião publica;

é) A morte de personagens celebre;.

f) Os conflictos políticos ou religiosos que provocam discussões na imprensa e no parlamento;

g) A nomenclatura popular de utensílios de trabalho nas artes e officios ou de anirnaes, arvores, plantas, flores, etc.;

h) As cidades, seus bairros e ruas, as villas e aldeias do paiz, n'um jogo de metaphora ou de antithese ; n'um sentido de orgulho local e patriótico ou de funda nostalgia.

i) Passagens da Bíblia, assumptos religiosos, especialmente relativos á vida eterna, e episódios da historia de Portugal;

j) Descripção das esperas de touros, peripécias das touradas, triumphos e desastres dos toureiros mais evidentes;

k) Expressão de malicias e gaiatices, que ou é formulada brutalmente n'uma linguagem obscena ou recorre ao equivoco e ao trocadilho;

I) Floreios de palavras exdruxulas e arrevezadas que muitas vezes não fazem sentido.

Entre as classes sociaes que são cantadas no Fado, avulta a dos marinheiros, talvez pela razão, de que o marujo é meio fadista.

Hoje em dia, o que se observa nas vielas e salões de Lisboa onde se canta o fado é uma gama muito menos diversificada de temas. Depois de uma extensa audição de mais de mil fados para esta pesquisa, em conjunto com muitas idas a casas de fados, foi possível constatar que a grande maioria dos fados cantados atualmente falam, em tom dolente, do amor romântico. Ou canta-se um sentimento de imensa tristeza por um amor que já não está mais

perto do eu lírico (por diferentes razões), ou um sentimento mais brando de melancolia, às vezes mesmo o eu lírico estando ao lado do ente amado.