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CAPÍTULO IV ENSINO DE CIÊNCIAS: PRÁTICAS DOCENTES EM TENSÃO

1 O CONTEXTO DE MUDANÇAS E A PRÁTICA DOCENTE

5.1 A RELAÇÃO DOS CONTEÚDOS COM A REALIDADE DO ALUNO E A

Analisando as propostas curriculares nacionais, em uma pesquisa realizada pela Fundação Carlos Chagas, Domingues, Koff e Moraes (1995), ao avaliarem os currículos de Ciências de 21 estados brasileiros, levantaram o questionamento sobre as referências ao cotidiano do aluno, que pode incluir tanto as situações vividas efetivamente pelos alunos, em seu ambiente, como situações decorrentes de um contexto mais amplo da sociedade. Nas declarações de duas professoras ficou evidente não só a preocupação de que os conteúdos estejam ligados com a realidade, mas que também tenham significado para os alunos:

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É preciso valorizar o momento que as crianças estão vivendo e também o contexto em que vivem. Quando a gente trabalha o sistema reprodutor na quarta série, para eles é maravilhoso pelo interesse que eles têm nessa faixa etária. Eles colocam sobre a dificuldade de conversar isso com os pais. Através do depoimento deles é que fazemos as aulas de Ciências serem interessantes. Não dá só para dar conteúdo, sem fazê-los perceber a importância da vivência deles. (Carla)

Não podemos esquecer que os conteúdos precisam estar relacionados ao cotidiano dos alunos para facilitar a compreensão da sua realidade. Não é que a gente não vá trabalhar os conteúdos científicos no ensino de Ciências das séries iniciais. ... temos que dar mais atenção aquilo que é do interesse da criança, tem relação com as experiências dela. (Adriane)

Segundo Porlán (1998), a perspectiva de trabalhar fundamentalmente conteúdos próximos aos interesses imediatos e as experiências dos alunos, sem tornar mais complexas as concepções que eles já possuem, como foi evidenciado na narrativa da professora Adriane, apesar de ser um avanço em relação ao modelo didático tradicional, caracteriza um modelo espontaneísta. Nesse modelo, que objetiva dar prioridade ao interesse do aluno como elemento organizador, em detrimento aos conteúdos formalizados, segundo Porlán (1993, p. 155), “O professor deve ter o papel de coordenador das atividades que vão surgindo das discussões, improvisando recursos, solucionando problemas e favorecendo a participação, expressão e comunicação de todos os alunos”.

O modelo supera as propostas tradicionais em vários aspectos. Frente ao plano de conteúdos e objetivos pré-definidos, apresenta outro aberto e flexível; frente à passividade do aluno, permite que ele se manifeste intensamente; frente à descontextualização do conhecimento escolar, introduz os problemas reais do entorno na sala de aula; frente aos procedimentos de avaliação individuais classificatórios, utiliza a participação dos alunos como critério para apreciar o andamento da classe, entre outros aspectos. Porém, de acordo com Porlán (1993), esquece o caráter intencional do ensino e a necessária orientação que o professor deve exercer. Pretende que os alunos sejam protagonistas de sua aprendizagem, mas ignora que para que tal situação se dê, é necessária uma adequada tarefa de condução por parte do professor. Concluindo essa análise, Porlán (idem, p. 157)

103 afirma que: “A presença onipresente e rígida da programação pode invalidar a aprendizagem, mas a ausência de um referencial pode invalidar (...) o ensino do professor”.

O autor ressalta ainda que:

A tendência espontaneísta (...) aporta uma visão democrática na dinâmica escolar, mas esquece o caráter intencional do ensino e a necessária orientação que o professor deve exercer. Pretende que os alunos sejam protagonistas de sua aprendizagem, mas ignora que para que tal situação se dê, é necessária uma adequada tarefa de condução por parte do professor (ibidem, p.160).

No meu ponto de vista, as professoras não tiveram a intenção de desvalorizar os conteúdos científicos no ensino de Ciências, mas sim de ressaltar a importância de valorizarmos, no trabalho docente, os saberes construídos pelos estudantes em sua prática social, relacionando-os a conteúdos significativos para eles. O que indica a necessidade de mudanças no currículo escolar – entendido como expressão dos conteúdos escolares – e, especialmente, nas práticas pedagógicas.

Elas também fizeram referências às questões de formação para cidadania, no tratamento dos conteúdos de ensino das séries iniciais. Viam-nas como uma forma de favorecer o desenvolvimento de posturas que estimulam o trabalho coletivo, a convivência social, o exercício da cidadania, assim como o desenvolvimento do raciocínio, da habilidade de pensamento, da capacidade de intervenção na realidade. É o que exprimem estas duas falas, de Elna e Flávia.

É necessário remodelar a maneira de ver do homem, que não tem sido educado para a cidadania. Ele precisa mudar essa postura acomodada e individualista diante dos problemas que a realidade vem apresentando e os conteúdos escolares, não só de Ciências, mas de todas as disciplinas, precisam trabalhar questões votadas para o exercício da cidadania. (Elna)

Esses conteúdos de saúde, ecologia, tecnologia precisam ser trabalhados com as crianças de forma crítica, com discussões que favoreçam a formação da cidadania, o respeito ao próximo e ao ambiente em que se vive. Elas já entendem e podem fazer pesquisas e discussões sobre esses temas. Isso poderá favorecer mudança de hábitos delas tanto com a natureza, quanto com si próprio e com o outro. (Flávia)

104 É importante ressaltar que a formação para a cidadania está expressa nos PCN como um dos objetivos gerais do Ensino Fundamental (BRASIL, 2001), assim descrito:

Compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito.

A perspectiva de trabalhar o contexto socioambiental dos alunos e as questões ligadas à cidadania, tratando didaticamente suas concepções prévias sobre os conteúdos, na perspectiva de ampliá-las, aponta para características do modelo didático de investigação. O que também foi evidenciado nos trechos anteriores do discurso das professoras Elna e Flávia.

Na prática investigativa, os conteúdos de Ciências, trabalhados de forma articulada ao contexto vivido pelos estudantes, podem se constituir como ferramentas importantes na formação de subjetividades capazes de uma leitura crítica sobre realidade. Refletindo sobre as narrativas das professoras e minha própria prática como professora das séries iniciais, concordo com esta idéia de Fracalanza (1986): o ensino de Ciências deve partir das realidades vividas pelos alunos, transformando-as em conhecimento científico, para que sejam reconstruídas no contexto de conhecimentos que propiciem um aprender significativo.

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