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A representação das mulheres na guerra: as vivandeiras

No documento MARIA MEIRE DE CARVALHO (páginas 30-33)

A representação social é sempre representação de alguma coisa (objeto) e de alguém (sujeito). As características do sujeito e do objeto nela se manifestam. A representação social tem com seu objeto uma relação de simbolização (substituindo-o) e de interpretação (conferindo-lhe significações) Estas significações resultam de uma atividade que faz da representação uma construção e uma expressão do sujeito.

(JODELET, 2001:27)

Nesse capítulo, dedico-me à leitura das representações na perspectiva apontada por Jodelet (2001), com o intuito de perceber a veiculação de tais construtos nos conjuntos discursivos visuais, saberes que conformam/formam/produzem a identificação das vivandeiras5. O conjunto de

imagens de vivandeiras, de mulheres que atuaram em espaços bélicos na França do século XIX, expõe, na materialidade de seus diferentes aportes - pinturas, gravuras, desenhos, fotografias e esculturas -, representações que nos revelam não apenas sobre a presença de mulheres nos palcos das guerras, combatendo junto aos seus companheiros de tropas em diferentes lugares e momentos, mas, sobretudo, interpelam-nos a investigar os significados socialmente conferidos à experiência configuradora das vivandeiras.

5 Vivandeira vem do francês vivandière, não se sabe precisamente como e quando o termo

surgiu; terminologia que exprime viande, francês para carne, ou meaning latin para alimento de vivenda, da raiz . Durante os séculos subseqüentes, vivandière receberia uma variedade de

meanings, geralmente do giver hospitality , da giver vida , e mais tarde quem vende

alimentos e bebidas às tropas . Para maiores esclarecimentos ver A História da Vivandeira - texto original em francês, disponível no site web www.vivandiere.net/hist.html. Acesso em 02/04/2005.

São imagens que, quando visualizadas, instigam-nos a interpretar a representação da vivandeira e, ao mesmo tempo, a representá-la. Interpretá- la no sentido de decifrar as idéias, regras, tradições e convenções que norteiam tal construto. Da mesma forma, essas imagens são representações carregadas de valores que nos permitem apreender alguns dos múltiplos sentidos conferidos socialmente à presença e às ações das mulheres nos campos de guerras. Na interpretação, é visível a ação pedagógica das representações no sentido de apresentar ao mundo social como as mulheres na guerra deveriam ser representadas. Tais imagens são, portanto, versões construídas sobre as mulheres que atuaram nos conflitos armados, incorporadas às tropas, distribuídas em pelotões combatentes, atuando como tais e também como enfermeiras, como comerciantes responsáveis pelo fornecimento de víveres, como prostitutas, como espiãs, como mães, esposas, noivas, amantes etc.

Visualizar as vivandeiras nas diversas materialidades iconográficas6 é exercício instigante, pois se trata de um conjunto de imagens

que ora as liberta das amarras do social e ora as aprisiona. Essa ambigüidade presente nas imagens se explica pelo fato de que foram construídas sob um imaginário social atravessado por representações dicotômicas de sexo/gênero, raça e classe, dentre outras. Um imaginário produzido e também produtor de uma lógica binária, heterossexual e patriarcal7, que concebe o mundo em

termos de pares opostos, fixos e estáveis e que confere ao feminino a posição de inferioridade em relação ao masculino. Um imaginário que comporta também deslocamentos e mudanças em sua dimensão criativa, perturbadora e inventiva. Afinal, como bem atenta Maria Sylvia Porto Alegre, o imaginário não responde apenas pela reprodução, pelo assujeitamento, mas também pela

6O termo iconográfico é empregado no sentido de designar as várias formas de manifestação

artística, desde o desenho gráfico até a fotografia. Essa materialidade é entendida como constituinte/constituidora do ambiente visual de criação humana. Assim, por meio do conjunto iconográfico selecionado, discuto como as imagens idealizam e constroem o campo das representações sociais, carregadas de significação.

7 O termo patriarcal, segundo Ávila (2007:35), é utilizado não apenas no sentido literal do pai

ou direito paterno, mas, sobretudo, no sentido utilizado pelas feministas a partir da década de 60, do século XX, qual seja: o de um conceito que se refere especificamente à sujeição das mulheres e que sintetiza o direito político que todos os homens exerceram pelo simples fato de serem homens. Carole Pateman (1993:38-63) assinala que é urgente que se faça uma história feminista do conceito de patriarcado, dado às discussões e complexidade desse conceito.

criação, participação, portanto, da inventividade humana, no que ela deve à subjetividade e ao imaginário (PORTO ALEGRE, 1998:110).

O material iconográfico é aqui concebido na perspectiva de uma interpretação e compreensão provisórias, na perspectiva de um estudo da imagem pensada como uma hermenêutica visual , expressão utilizada por Maria Sylvia Porto Alegre, para designar as conexões de sentidos que levam em conta a relativa autonomia das produções simbólicas [...], uma atividade específica na qual toda a história de uma cultura está inscrita (idem, ibidem).

As conexões às quais a autora se refere são conexões de sentidos que possibilitam acessar algumas das condições de produção discursiva sobre as vivandeiras, um conjunto imagético produzido em diferentes momentos e espaços em que se veiculam, circulam e conservam efeitos de verdades; em que se produz o efeito de verdade sobre a atuação de mulheres nos campos de guerra. Um conjunto de imagens cujos elementos são produtos da criação humana, um baú iconográfico, que, em suas diferentes materialidades, revela que

as formas de linguagem e sua relação estreita com o imaginário e com as ideologias mostram que não há nas imagens uma forma unívoca de perceber o real, ou seja, não há um sentido literal intransponível. [...] Elas são artefatos culturais e, como tal, pertencem ao mundo compartilhado dos indivíduos e dos grupos sociais, participam da construção da vida coletiva em fatos pequenos, mas densamente entrelaçados de alta complexidade. (PORTO ALEGRE, 1998:110)

Com efeito, na análise da produção imagética das vivandeiras foi possível perceber que não há uma forma unívoca de perceber o real . O que existe é a construção de uma função aglutinadora da produção imagética, preservadora da ordem, revelada no sentido pejorativo. Trata-se de sentido que aporta para a relação estreita (da linguagem) com o imaginário e com as ideologias .

Assim, práticas discursivas produzem as vivandeiras e sentidos sobre a ação das mulheres na guerra, de modo a conter os efeitos desestabilizadores que tal atuação possibilitava, já que são imagens que ensinam a interpretar aquela representação. Tais práticas discursivas são entendidas, na visão de Orlandi, como linguagem em ação, isto é, as maneiras

a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas (2002:45).

No documento MARIA MEIRE DE CARVALHO (páginas 30-33)