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Santa Rosa: invisibilidade/ presença indesejada

No documento MARIA MEIRE DE CARVALHO (páginas 155-157)

3.5 A presença autorizada: a Sargenta Jovita

4.2.4 Santa Rosa: invisibilidade/ presença indesejada

A estranheza quanto à presença de mulheres em marcha também se nota no relato de Lins de Barros (1953), mesmo quando ele faz referência à

rusticidade e bravura de Santa Rosa, esposa de um soldado que deu à luz a uma criança e logo depois, trajada de homem , montou a cavalo, marchando junto à tropa com o filho nos braços. A bravura dessa mulher que colocou em risco sua própria vida e a de seu filho recém-nascido para não retardar a marcha , foi objeto da narrativa do 2º comandante:

Em meio a jornada, a Santa Rosa teve um filho. Era mulher de um dos soldados do destacamento do Cordeiro de Farias e acompanhou a Coluna juntamente com outras, desde a retirada do Rio Grande do Sul. Nas marchas longas, ela, já no fim da gravidez, ficava para a retaguarda e ia palmilhando resignada o caminho. Acreditava que assim o parto lhe seria mais fácil. Nas proximidades de Santa Luzia [...] eu soube que Santa Rosa estava sentido as dores. Com o adversário à vista, era-me impossível destacar homens para socorre- la e guardá-la. Entretanto, constrangia-me abandoná-la naquela emergência e eu via nos olhos de meus soldados um pedido mudo [...] Fui vê-la. Santa Rosa, pálida, com feições enérgicas, agarrava- se fortemente às costas de uma cadeira gemendo de dores. Era jovem, de cor branca, feições regulares. Bem arrumada podia parecer bonita. Sua figura, mesmo assim maltratada, era respeitável naquele momento de angústia. Em torno dela seu marido, uma curiosa da região e mais alguns soldados que faziam fogo, mergulhando uns trapos de pano numa panela de água quente. Esperei mais algumas horas, partindo finalmente, [...] era mais fácil para a Santa Rosa safar-se daquela situação com o pequeno grupo de voluntários que a acompanhava do que para o 2º Destacamento enfrentar [...] um combate sério em má situação [...]

Não caminhamos muito [...] Contou-me por fim, que cerca de trinta homens haviam regressado com o objetivo de escoltar Santa Rosa até o acampamento logo ela se desembaraçasse.

Logo ao amanhecer, chegou a nova do nascimento da filha de Santa Rosa [...] Ao meio dia ela apareceu a cavalo, em montaria de amazona, com a criança nos braços. Recusava a padiola por não querer retardar a marcha [...]

A rusticidade e bravura daquela mulher resistiram a tudo. Em poucos dias, trajada de homem, montava novamente a cavaleiro, confundindo-se, como antes, com o resto da tropa. (LINS DE BARROS, 1953 :118-125).

Essa longa citação descreve como Santa Rosa, que saíra com os combatentes do Rio Grande do Sul, foi tratada na marcha, pelos seus comandantes e seus companheiros de luta. Uma parte deles, com

solidariedade, haja vista que foi acompanhada por um pequeno grupo de voluntários . Quanto aos comandantes, o abandono é justificado por razões de guerra, já que era impossível destacar homens para socorrê-la e guardá-la .

Assim, enquanto Santa Rosa portou-se como soldado confundindo-se com o resto da tropa , ela foi tolerada. Quando, porém, diferenciava desta, no momento de dar à luz um filho, ela foi abandonada, já que acampamento de tropas não era lugar de mulher. Nesse momento, não se embaralhavam as funções e papéis sexuais: Santa Rosa permanecia no local para cumprir seu destino biológico - parir e as tropas prosseguiriam a marcha, cumprindo seus homens a função de guerrear. Assim, ante o perigo de serem atacados pelos inimigos, o comandante não hesitou em aplicar a lei da guerra de movimento e em deixar a parturiente no meio do mato. Para os comandantes, antes uma mulher grávida ficar à mercê dos legalistas do que toda a tropa se arriscar, em um combate sério , em má situação, para lhe dar cobertura no momento do parto. O embaralhamento das funções/papéis da presença de mulheres no palco das guerras possibilitava que outras situações fossem acionadas: logo após o parto, Santa Rosa retorna à marcha, cavalgando com o filho ao lado dos demais.

O comandante do Destacamento ao qual pertencia Santa Rosa, Osvaldo Cordeiro de Farias, faz uso dos mesmos argumentos de Lins de Barros para justificar o abandono a essa vivandeira:

Existiam mulheres em todos os destacamentos, exceto no de Siqueira Campos [...] viviam permanentemente conosco. Por isso, houve mulheres grávidas e alguns nascimentos. O primeiro caso foi o de uma mulher apelidada Santa Rosa, agregada ao meu destacamento. Em geral, acampávamos à noite e marchávamos durante o dia. Quando a situação estava muito difícil em virtude do assédio de tropas inimigas, dormíamos duas ou três horas e continuávamos marchando durante a madrugada. Numa dessas madrugadas, exatamente na hora de levantar acampamento, chegou alguém e me disse que Santa Rosa estava tendo um filho. Ora, não se podia parar por causa de Santa Rosa! [...] Pois não é que três horas depois, quilômetros adiante, Santa Rosa aparece com o guri no colo? A única diferença é que estava montada como as mulheres de antigamente, com ambas as pernas de um lado só, no silhão. (CAMARGO; GOES, 1981:132)

Ambos os comandantes não reconheciam Santa Rosa e as outras mulheres que integravam a marcha como legítimas combatentes

comprometidas com a causa. Aqui, elas são apenas vivandeiras, no sentido pejorativo dado ao termo. Não são nem mesmo sexo frágil , mas mulheres desviantes que não merecem a proteção de homens honrados. Trata-se, enfim, de presença indesejada, perniciosa e não-autorizada, que comprometia o desempenho militar das tropas. Enquanto contribuíam com serviços diversos, sua dedicação, resistência e bravura eram toleradas e até elogiadas. Quando não mais correspondiam a tais expectativas, representavam um problema, deviam ser expulsas, abandonadas.

No documento MARIA MEIRE DE CARVALHO (páginas 155-157)