• Nenhum resultado encontrado

A vivandeira francesa: a invenção de um modelo

No documento MARIA MEIRE DE CARVALHO (páginas 33-39)

A análise de alguns textos iconográficos franceses, produzidos nos séculos XIX e XX, possibilita perceber a linguagem em ação , isto é, a produção de sentidos e de posicionamentos em relação às vivandeiras nas relações sociais e cotidianas da guerra. Ao analisar a composição da fisionomia, dos gestos reveladores de atitudes e ações, busco as marcas configuradoras da matriz8francesa para compreender os sentidos inscritos nas práticas discursivas, isto é, apreender os sentidos conferidos às mulheres nos campos de batalhas. Tudo isso resulta nas diversas conotações de vivandeiras : mulheres desonradas prostitutas, semi-prostitutas; mulheres honradas mães, esposas, viúvas, enfermeiras dedicadas; mulheres mitificadas heroínas da guerra.

Michel Foucault trabalha com a categoria de destruição das

evidências que propõe

reconhecer a fonte dos discursos, o princípio de sua expansão e de sua continuidade, nessas figuras que parecem desempenhar um papel positivo como a do autor, da disciplina, da vontade de verdade, é preciso reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso (1996:51-52).

Assim, destruir as evidências é estranhar o comum, desnaturalizá-lo, desfamiliarizar o que está evidente, visível, dado, de modo a perceber o implícito, o não-dito contido no dito. Busquei, assim, desfamiliarizar o saber sobre as vivandeiras e sua emergência na ordem do discurso, com o propósito de tentar entender como as representações foram produzidas,

8A palavra matriz é utilizada como recorrência presente nos sentidos conferidos às vivandeiras

a partir do modelo francês do século XIX. Na análise das imagens evidencio algumas dessas matrizes imprimidas às vivandeiras, como o cantil, o chapéu e o uniforme e tento apresentar outros elementos, como o fuzil e a espada que levam à desconstrução dessas matrizes consolidadas no esforço repetitivo dos discursos textuais e iconográficos. Segundo Ávila (2007:16), as matrizes de sentido são palavras ou ícones que se destacam pela repetição e pelo sentido ali instaurado, formadores de indícios que nos permitem aceder à inteligibilidade do texto.

significadas e ressignificadas nos diferentes discursos. Foi, enfim, um desafio e um exercício com o objetivo de des-cobrir imagens, acessar idéias, costumes, práticas, papéis, valores, normas, significações a elas estabelecidas a partir de um permanente e complexo jogo de linguagem, de significação, de exercício de poder.

Ao buscar as matrizes de sentido das vivandeiras, encontrei referências dessas mulheres junto aos pelotões zouaves do exército francês do século XIX. Os zouaves formaram um corpo da infantaria do exército francês, originalmente composto por soldados argelinos que se destacaram por atos de bravura e por seus trajes. Eles usavam um uniforme oriental desgastado, considerado pitoresco em relação aos demais, o que aponta para as hierarquizações estabelecidas entre os pelotões combatentes formados pelos soldados nacionais, autênticos franceses, e aqueles formados pelos colonizados, os argelinos. É justamente junto a esse inferiorizado corpo de combatentes que os registros informam terem sido incorporadas as mulheres, identificadas, então, como vivandeiras 9.

Em A história da vivandeira, texto disponível na web (2005), há referência aos regimentos zouaves como aqueles que traziam vivandeiras em seus pelotões. Segundo essa versão, muitas dessas mulheres tornaram-se esposas dos soldados e, uma vez integradas às tropas, prestaram serviços como enfermeiras, guerreiras, cozinheiras, espiãs, mascotes . Todavia, não obstante essa diversidade de atuação, dos múltiplos serviços por elas realizados na guerra, as vivandeiras são representadas por uma imagem fixa e singular de uma mulher que usava chapéu e carregava um cantil, uma espécie de barril de madeira na qual carregavam água, whisky ou conhaque. Após a integração e atuação das vivandeiras junto aos pelotões de zouaves, suas imagens passaram a ser insistentemente veiculadas com o cantil e o chapéu, assim se notabilizando nos registros iconográficos.

Trata-se de investimentos discursivos que irão circular como verdade única, compartilhadas pelos indivíduos e grupos sociais a respeito das

9 Para maiores aprofundamentos, ver A História da Vivandeira - texto original em francês,

mulheres que atuaram na guerra. A multiplicidade e diversidade da experiência dessa atuação foram reduzidas a uma imagem-síntese de vivandeira, uma mulher que usava chapéu e carregava um cantil.

Pela documentação consultada, é possível perceber que, até por volta do século XVIII, as vivandeiras que participavam das guerras ou campanhas armadas vestiam roupas comuns. Em meados do século XIX, a corporação militar, numa ação disciplinadora, uniformizou-as conforme o destacamento que integravam.

Essa ação domesticadora sobre aquelas que queriam a vida verdadeira buscou a homogeneização de conduta das vivandeiras. Assim, por volta de meados do século XIX, as vivandeiras foram separadas de suas contrapartes, as cantineiras, e aceitas oficialmente nos campos de batalha, enquanto aquelas foram designadas a permanecer no acampamento. A partir dessa incorporação singular nos batalhões, elas receberam o status de integrantes das tropas, ou seja, deviam se portar segundo o padrão militar, com

o mesmo corte dos uniformes de cada pelotão de unidade

(www.clearwaterhats.com/ladies). Não eram mulheres engajadas informalmente na corporação, mas formalmente nela incorporadas, assujeitadas às suas regras disciplinares e às posições hierárquicas de sua estrutura. No caso delas, ocupavam as posições inferiores.

A separação entre as duas categorias de mulheres resultou numa mudança também do termo para designar cada uma delas. O termo vivandière conviveu, até certo tempo, com o termo cantinière, que remete ao sentido de serviçal, de servir bebidas. Posteriormente, os sentidos se confundem. Permanece o termo vivandière com o sentido de cantinière, contrapondo-se àquele conferido às vivandeiras que acompanhavam as tropas, o de pessoas livres e sem regras, que escolheram a vida verdadeira . Trata-se de imagem presidida pelo sentido de rebeldia, de uma vivência feminina fora da ordem patriarcal, monogâmica e heterossexual. Substituir essa imagem pela da cantineira foi construção engenhosa, ancorada em outro sentido, o de mulheres disciplinadas que viviam para servir aos outros e à pátria. Não por acaso, em 1865, o regulamento do exército francês estabelecia o quantitativo de vivandeiras que comporia seus quadros: um por um no batalhão da infantaria,

dois por um no esquadrão da cavalaria, e em quatro por um no regimento da artilharia ou da coordenação de pelotão 10. Trata-se de proporção que revela a situação diferente e desigual como foram incorporadas e também como atuaram nos combates.

Com a institucionalização, uniformizadas e disciplinadas, elas estavam autorizadas a ser objeto de exposição pública como integrantes do Exército. Dessa maneira, há um investimento discursivo nessa imagem padronizada, com intensa veiculação em cartões-postais, em artes estatuárias e algumas embalagens de cigarros e produtos alimentícios. Tais imagens, representadas em diferentes suportes materiais, circularam como verdade sobre as vivandeiras.

Significativamente, as vestimentas, adereços e objetos que compõem tal imagem foram e ainda são usados pelas atrizes e bailarinas que encenam apresentações teatrais, balés e óperas11 etc. Essas imagens fazem parte de um cenário, de uma encenação, de uma representação simbólica acerca do que elas desempenhavam nos campos de combate, espaço considerado de uso exclusivo masculino, identificado como do gênero feminino e também fora dele. Vê-se, assim, um processo de realimentação e de reafirmação de imagens e sentidos. Um processo de realimentação do imaginário, que reafirma sentidos de uma representação que orienta e organiza as condutas, as relações sociais e a leitura de mundo.

Se, inicialmente, as vivandeiras eram as companheiras dos combatentes que, com eles, queriam a vida verdadeira , por volta de 1800, elas são descritas e representadas carregando barris de madeira (que antes era tarefa das cantineiras), pintados frequentemente de vermelho, branco e azul, contendo conhaque, com marca registrada. Nesse momento, não havia sido ainda processada a distinção entre vivandeira e cantineira. Elas eram representadas não apenas como fornecedoras de alimentos e demais víveres às tropas regulares do exército francês, mas também como integrantes dos pelotões, combatendo junto aos regimentos de infantaria e cavalaria.

10Ver texto (em inglês), disponível no site www.findarticles.com

O artigo trás como título: Imagens militares: viva as vivandeiras . (acesso em 05/04/2005)

11 Para maiores aprofundamentos, ver texto em francês disponível no site www.vivandiere.net

Retratadas como mulheres resistentes, de pele bronzeada pela exposição ao sol, os feitos das vivandeiras circularam na mídia impressa que noticiava sobre as guerras do séc. XIX, particularmente as do período napoleônico, momento em que há uma intensa circulação dessa imagem. Ela é usada para estimular o patriotismo e, sobretudo, o recrutamento, nesse momento em que o exército francês, sob o comando de Napoleão Bonaparte, desafiou muitos países, anexou-os e expandiu as fronteiras da França na Europa e fora dela.

É visível na proliferação de imagens desse momento e contexto o esforço discursivo em produzir um modelo de vivandeira: uniformizada, disciplinada, colaboradora no esforço comum de guerra, enquadrada nos papéis de gênero pré-determinados servir aos outros, seja fornecendo comida (cesta), bebida (cantil), seja cuidando dos feridos (enfermagem), seja dando apoio moral aos companheiros combatentes (noiva, mãe, irmã, viúva), seja atendendo ao contrato sexual, combatendo no palco da guerra, ao lado dos companheiros de tropa e, juntos, lutando pela pátria. Como bem atenta Carole Pateman, o contrato social pressupõe o contrato sexual, a liberdade civil pressupõe o direito patriarcal. Nesse caso, todas as mulheres são servas de um tipo especial na sociedade civil, isto é, esposas (1993:80-81).

São imagens que, por suas conformações específicas, constituíram para uma política de produção de identidade, segundo os valores e papéis vigentes, modo pelo qual a sociedade se refere a si mesma e se refere ao próprio passado, presente e porvir; o modo de ser das outras sociedades para ela. (CASTORIADIS, 1995:416).

Nessa proliferação de imagens, sou interpelada não apenas para aqueles sentidos propositalmente reconhecíveis, mas também com outros em torno das vivandeiras, essas mulheres que atuaram tanto dentro , como também fora da ordem. Como ressalta Tereza de Lauretis,

as mulheres como seres históricos, sujeitos de relações reais , são motivadas e sustentadas por uma contradição em nossa cultura, uma contradição irreconciliável: as mulheres se situam tanto dentro quanto fora do gênero, ao mesmo tempo dentro e fora da representação. [...] esta é a contradição sobre a qual a teoria feminista deve se apoiar, contradição que é própria condição de sua existência (LAURETIS, 2004:218).

Então, se como indivíduos, as mulheres se situam tanto dentro quanto fora do gênero , no espaço das guerras elas também se constituem tanto dentro como fora do gênero e, assim, da ordem estabelecida, que é presidida por convenções de sexo/gênero. Além daquelas imagens já consagradas no imaginário social - enfermeiras, amantes, cantineiras, mães, esposas e prostitutas -, emergem também dos discursos as imagens de combatentes, comerciantes, oficiais, espiãs e mascotes. Enfim, diversas e diferentes imagens que dão a conhecer algumas das formas de como a sociedade viu e representou a múltipla atuação das mulheres no campo da guerra. Imagens que remetem a uma multiplicidade de atuação, às relações de poder que atravessam sua produção.

Com efeito, não há como desconhecer que as imagens textuais e iconográficas trouxeram à tona não somente alguns indícios das práticas cotidianas das vivandeiras, mas também veicularam sistemas de significação ou regimes de verdade sobre elas. Como salienta Foucault, os textos

e também todas as categorias de imagens não podem, então, ser apreendidos nem como objetos cuja distribuição bastaria identificar nem como entidades, cujo significado se colocaria em termos universais, mas presos na rede contraditória das utilizações que os constituíram historicamente (FOUCAULT,1986:14).

Ao fazer a leitura dos textos imagéticos ou não, há que se considerar suas condições de produção, a rede contraditória das utilizações que os constituíram historicamente . Conforme Foucault, ao referir-se à

rarefação do discurso , toda produção discursiva

é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (1996:9).

No jogo de linguagem em que as imagens das vivandeiras são criadas, elas revelam as forças que organizam os sentidos aglutinadores do mundo. Aprisionadas pelos discursos textuais e iconográficos, cuja função é a de conjurar seus poderes e perigos , essas mulheres instigam-nos a pensar as relações de poder que presidiram sua produção, especialmente, reveladas pelos adereços e indumentárias que usavam.

1.3 - Adereços, vestimentas e objetos que conformam a representação da

No documento MARIA MEIRE DE CARVALHO (páginas 33-39)