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A representação discursiva do “ser mulher” no processo constituinte.

Capítulo 2. Processo Constituinte como uma transição na História?

2.3. A representação discursiva do “ser mulher” no processo constituinte.

Em cada etapa do processo constituinte sob análise, o tratamento discursivo dado à conceituação sobre o “papel” ou a “função” da mulher na sociedade e perante a família era identificado como uma categoria de análise em si, tamanhas vezes as afirmações sobre esse “ser mulher” apareceram nos discursos. Mesmo apesar das articulações que carregam com algum tema específico, foi possível identificar algumas nominações dadas sobre “ser mulher”.

Recordando as formulações de Michel Foucault sobre a criação de mecanismos de subordinação dos corpos e das vidas das mulheres pelos homens – a disciplina de mantê-las de forma adequada e docilizada em seus lugares originais –, elas foram pertinentes para a compreensão e análise da categoria aqui denominada.

O embate sobre a expectativa definidora do que é “ser mulher” naquele Brasil dos anos iniciais do século XX foi alvo de uma intensa produção pelas próprias ou por pesquisadoras das reflexões de gênero que lançaram a lupa sobre o passado, mostrando os protagonismos, as resistências e os silenciamentos oficiais sobre as disputas ocorridas partindo sempre de uma premissa de que havia um conteúdo inviolável à mulher, independente do ser que nela existisse. A determinação biológica do sexo ali apresentado a amarrava a esse conteúdo-destino inevitável.

Nesse sentido, impõe-se retornar as palavras da ativista Maria Lacerda de Moura, educadora e escritora multireferida nesse trabalho, que foi profunda numa definição livre sobre a condição feminina. Como Margareth Rago (2007) retrata, a opção pela ruptura com padrões burgueses de Maria Lacerda de Moura que, naquele início do século XX, por exemplo, ao se expor no prefácio do livro do psiquiatra argentino Julio Barcos, “Liberdade sexual das mulheres”, aponta sua coragem de questionar a identificação elementar da mulher com seu órgão reprodutivo e a dupla moral escravizadora do chamado “sexo frágil”:

“A ciência costuma afirmar que a mulher é uma doente periódica, que a mulher é útero. Afirma que o amor para o homem, é apenas um acidente na vida e que o amor, para a mulher, é toda a razão de ser da sua vida, e ela põe nessa dor, o melhor de todas as suas energias e esgota o cálice de todas as suas amarguras, pois que o amor é a conseqüência lógica, inevitável de sua fisiologia uterina. Há engano no exagero de tais afirmações. Ambos nasceram pelo amor e para o amor.” (Maria Lacerda de Moura – prefácio ao livro do psiquiatra argentino Julio

Barcos - Liberdade Sexual das Mulheres. Traduzido por ela, 4ª ed., 1929 apud Rago, 2007: 9)

Situando essa discussão da sexualidade e a importância do surgimento posterior da dimensão conceitual da categoria “gênero” para as reflexões produzidas ao longo do século XX, Margareth Rago e Lourdes Feitosa133 (2008) lembram Judith Butler que “mostrou teoricamente que as diferenças sexuais não poderiam ser explicadas por uma suposta natureza humana, instalada desde logo nos órgãos genitais, mas que resultam de construções culturais, sociais e históricas”.

O raciocício desenvolvido sobre a mulher ideal seguiu para a visão sanitarista, distinguindo-a da outra, a prostituta, que “é um esgoto seminal, uma mulher que não evoluiu suficientemente. São pessoas que têm o cérebro um pouco diferente, o quadril mais largo, os dedos mais curtos. Criam toda uma tipologia", diz Margareth Rago (2008). Portanto, a associação dos estereótipos do feminino ocorria nas duas pontas, sempre com a objetificação e falta de autonomia sobre o corpo pelas próprias mulheres: de um lado, a mulher subjugada a um comportamento moral padronizado para que pudesse cumprir o seu papel de reprodutora e responsável pelos cuidados e estabilidade da família e; de outro, o corpo como mercadoria disponível sem necessidade de negociar a relação134. Assim, a linha sanitarista tornou-se ainda mais relevante, inclusive para o Estado que desenvolveu ações em torno da eugenia135.

Os estereótipos criados, seja por um lado ou outro da subjugação dos corpos femininos, serviram de obstáculos e poderoso instrumental de calar vozes de mulheres ao longo da história. São raros os registros dos diversos fatos históricos que demonstram a resistência ou a ousadia feminina de assumirem protagonismos fora do perfil da mulher ideal ou daquelas que provocaram ruptura desse modelo patriarcal de dominação. A força e a racionalidade masculina - que tentou homogeneizar a sociedade por seus próprios

133 FEITOSA, Lourdes.; RAGO, Margareth. Somos tão antigos quanto modernos? Sexualidade e gênero na antiguidade e na modernidade. RAGO, Margareth.; Funari, Pedro Paulo A.. (org.). Subjetividades Antigas e Modernas. São Paulo: Annablume, 2008.

134 Sem esquecer que o sigilo do meretrício, servia para proteger o cliente com a conivência da família tradicional e da civiltà putanesca.

135 Em 1911, o médico O. Simonot fez exames em 2 mil mulheres e conclui que “a prostituição é uma afecção orgânica patológica “ e diz que isso tem origem hereditária (“uma modificação química, biológica, do plasma herdado”), pois a miséria não era justificativa, visto que nem todas as miseráveis se prostituíam, descartando as hipóteses da sociogênese da prostituição (Ariès; Duby, 2012, p. 355). Ações do governo de Hitler, por exemplo, impõem os exames pré-nupciais, proíbe casamento de homens com doenças e lhes impõe a esterilização como reforço à ordem moral. A “sifilifobia” só termina após a 2ª Guerra Mundial, com a descoberta dos antitióticos.

padrões de interesse – era contraposta à subordinação feminina, realçando características de sensibilidade e de fragilidade. E assim seja!

Dessas constatações, os registros feitos na pesquisa, extraídos de discursos e documentos analisados da época, realçam a coerência com os padrões sociais e morais vivenciados no período, tornando a concepção do “ser mulher” uma categoria em si mesma para ser apontada, por sinalizarem elementos concretos de justificação - ou contrariedade – em relação aos estereótipos reproduzidos na sociedade em geral e entre os interlocutores no processo constituinte.

Os fragmentos destacados a seguir mostraram a importância de percepção da conceituação dos papéis sociais debatidos, como decorrente das próprias pré- compreensões trazidas no conjunto sócio-cultural dominante e, algumas vezes, de uma disputa de sentidos, como fissuras no modelo.