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A “representação” precisa ser discutida e não apenas citada

No presente estudo tratamos das diferentes representações que as pessoas ouvintes podem apresentar sobre a pessoa surda e sobre a própria surdez. Entretanto, na tentativa de se conhecer aquilo que o surdo tem a nos dizer, emergiu a necessidade de também conhecer suas próprias representações, entre outras, de escola, aprendizagem, escrita, conhecimentos matemáticos, língua de sinais, cultura e de si mesmo.

Hoje, no momento da qualificação, com a argüição da banca, percebi que um novo conceito estava se fazendo muito presente em meu trabalho: a “representação”. Várias vezes falei das representações dos ouvintes em relação aos surdos e ainda das representações dos surdos em relação à escrita, à leitura, à Matemática, etc., sem maior precisão conceitual. Com a ajuda das professoras Marilda, Alexandrina e Jackeline, descobri que: A “representação” precisa ser discutida e não apenas citada.

Notas de Campo, 27/10/2006.

Assim, percebemos que o próprio conceito de representação, assim como os outros discutidos nesse trabalho, necessitava de maior atenção e da explicitação de nosso posicionamento em relação ao mesmo. Para tanto, buscamos acrescentar à discussão, as idéias de Silva (2000, 2006), Woodward (2000) e Favorito (2006).

Silva (2000) coloca que o conceito de representação tem uma longa história que lhe confere uma multiplicidade de significados. De acordo com o autor, a representação tem-se apresentado, nessa história, em suas duas dimensões: a representação externa – por meio de sistemas de signos como a pintura ou a própria linguagem; e a representação interna ou mental – ou seja, a representação do “real” na consciência. Segundo o autor, o pós- estruturalismo questiona a noção clássica de representação. Primeiro, por rejeitar, sobretudo, “[...] quaisquer conotações mentalistas ou qualquer associação com uma suposta interioridade psicológica” (p. 90). No pós-estruturalismo, segundo o autor, a representação é concebida unicamente em sua dimensão de significante, ou seja, como sistema de signos. Nessa concepção, a representação não é, nunca, mental ou interior, mas é, sempre, marca

ou traço visível, exterior. Segundo, porque, nessa perspectiva, a representação incorpora as características de indeterminação, ambigüidade e instabilidade atribuídas à linguagem.

Aqui, a representação não aloja a presença do “real” ou do significado. A representação não é simplesmente um meio transparente de expressão de algum suposto referente. Em vez disso, a representação é, como qualquer sistema de significação, uma forma de atribuição de sentido. Como tal, a representação é um sistema lingüístico e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder (SILVA, 2000, p. 90).

Em comunhão com tais idéias, Favorito (op. cit.) também coloca que: “A representação tal como um sistema lingüístico e cultural é uma forma de atribuição de sentido, de produção de significados” (p. 52). Seguindo as idéias de Silva (1995, 2000), a autora coloca que a força dos sistemas e regimes de representação está vinculada a um processo de produção de significados sociais através dos diferentes discursos, ou seja, para a autora, os significados são criados.

Nos diversos modos de representar o mundo social estão implicadas perguntas sobre quem está autorizado a conhecer e representar o mundo, isto é, o vínculo entre conhecer e representar se constrói na base de relações de poder. Claro está, portanto, que a concepção de representação aqui utilizada não se associa às idéias de mimese, reflexo ou representação do real, nem de representação mental (FAVORITO, 2006, p. 55).

Como podemos perceber, a autora adverte-nos de que os processos de representação são perpassados por relações de poder. E ainda, dentro dessa concepção de representação, poderíamos dizer que a realidade é concebida como tendo sido construída discursivamente. Portanto, faz-se necessária a desnaturalização dos processos de representação a partir de uma análise cuidadosa que vise a “[...] mostrar como todas as representações são construídas, com que propósitos, por quem e com que componentes [...]” (Sarup, 1996 apud Favorito, 2006).

Woodward (2000), ao fazer referência às idéias de Hall (1997)43, coloca que a

representação atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no seu interior. Para a autora:

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito (WOODWARD, 2000, p. 17).

De acordo com as idéias apresentadas pela autora, é por meio dos significados produzidos pelas representações que podemos dar sentido à nossa experiência e àquilo que somos. A autora sugere ainda que tais sistemas simbólicos tornem possível aquilo que somos e ainda aquilo no qual podemos nos tornar.

Assim:

43 Woodward (op. cit.) faz referência ao seguinte texto: HALL, S. The work of representation. In:

HALL, S. (Org.). Representation: cultural representations and signifying practices. Londres: Sage/The Open University, 1997.

A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar (WOODWARD, 2000, p. 17).

Com isso, a autora enfatiza a existência de um vínculo entre a produção de significados e a produção44 das identidades que são posicionadas nos (e pelos) sistemas de

representação. Aqui podemos perceber uma relação entre representação e identidade e parece-nos que tais conceitos estão entrelaçados.

Silva (2000) coloca que identidade e diferença estão em uma estreita relação de dependência. Para ele, identidade e diferença são inseparáveis. Mais que isso, de acordo com as idéias apresentadas pelo autor, podemos perceber que identidade e diferença são o resultado de atos de criação lingüística, ou seja, identidade e diferença não são, segundo o autor, “elementos” da natureza, não são essências, não estão aí à espera de serem reveladas ou descobertas, respeitadas ou toleradas. Para ele, elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendente, antes, são criações do mundo cultural e social.

Ao trazer as idéias de Silva (op. cit.) à discussão que se estabelece no presente estudo pretendemos evidenciar um terceiro elemento na relação entre representação e identidade: a diferença. Pois, segundo o autor, assim como a identidade, também a diferença é o resultado de um processo de produção simbólica e discursiva. Deste modo, identidade e diferença, de acordo com as idéias apresentadas pelo autor, estão em estreita conexão com relações de poder. Para ele, identidade e diferença não são, nunca, inocentes.

A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir. Como vimos, dizer “o que somos” significa também dizer “o que não somos”. A identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre “nós” e “eles”. Essa demarcação de fronteiras, essa separação e distinção, supõem e, ao mesmo tempo, afirmam e reafirmam relações de poder. “Nós” e “eles” não são, neste caso, simples distinções gramaticais. Os pronomes “nós” e “eles” não são, aqui, simples categorias gramaticais, mas evidentes indicadores de posições-de-sujeito fortemente marcadas por relações de poder (SILVA, 2000, p. 82).

E, como nos coloca o autor, a identidade e a diferença estão estreitamente associadas a sistemas de representação. E por meio da representação, a identidade e a

44 Embora o termo “produção” seja utilizado pela autora, optaríamos pelo termo “formação” de

identidades, por acreditarmos que o processo de formação de nossas identidades não é fixo e acabado, não podemos conceber a identidade como um produto final.

diferença ligam-se a sistemas de poder. Para o autor, quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. Assim, para ele:

Questionar a identidade e a diferença significa, nesse contexto, questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação. [...] Não é difícil perceber as implicações pedagógicas e curriculares dessas conexões entre identidade e representação. A pedagogia e o currículo deveriam ser capazes de oferecer oportunidades para que as crianças e os/as jovens desenvolvessem capacidades de crítica e questionamento dos sistemas e das formas dominantes de representação da identidade e da diferença (SILVA, 2000, p. 91 – 92).

Como podemos perceber, o autor confere um lugar de destaque para o currículo como uma prática que interfere no processo de formação de identidades sociais45. Para ele,

o currículo não pode ser visto simplesmente como um espaço de transmissão de conhecimentos, pois está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos (Silva, 2006). Entretanto, momentaneamente, interessa-nos, principalmente, uma outra vertente apontada pelo autor: o questionamento das formas dominantes de representação da identidade e da diferença, pois, como nos coloca o próprio autor:

Em geral, tende-se a naturalizar as identidades sociais, as formas pelas quais os diferentes grupos sociais se definem a si próprios e pelas quais eles são definidos por outros grupos. As identidades só se definem, entretanto, por meio de um processo de produção da diferença, um processo que é fundamentalmente cultural e social. A diferença, e portanto a identidade, não é um produto da natureza: ela é produzida no interior de práticas de significação, em que os significados são contestados, negociados, transformados (SILVA, 2006, p. 25)

Favorito (2006) coloca que na medida em que os significados não são fixos, estáveis, há um espaço de luta para que tais significados possam ser questionados, desconstruídos, disputados e refeitos. Silva (op. cit.) aponta que a indeterminação é o que caracteriza tanto a significação quanto a representação. Para ele, a representação não é um campo passivo de mero registro ou expressão de significados existentes, nem um campo equilibrado de jogo. “Por meio da representação travam-se batalhas decisivas de criação e de imposição de significados particulares: esse é um campo atravessado por relações de poder” (p. 47). Com isso, Silva remete ao questionamento sobre quem está autorizado a representar o mundo, a si mesmo e aos outros.

Assim, tendo apresentado anteriormente algumas das representações dos ouvintes acerca da pessoa surda e da surdez, passaremos agora, após definirmos o que estamos entendo por representação, a examinar algumas das possíveis representações que os surdos deste estudo apresentaram durante o processo de observação e de entrevistas, sem

45 Para estudo detalhado ver: SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a

perder de vista os questionamentos apontados por Woodward (2000), sobre o poder da representação e sobre como e por que alguns significados são preferidos, relativamente a outros.