• Nenhum resultado encontrado

E agora? As práticas da instituição também são escolarizadas!

Um dos principais motivos que propiciaram a escolha da instituição como local para a pesquisa foi a crença de que, por não se tratar de uma escola, as práticas em seu interior seriam diferentes daquelas que compõem um cenário escolar.

41 Algumas convenções foram necessárias para a apresentação das análises e devem ser

explicitadas. As falas dos surdos estarão em letras maiúsculas e as falas da pesquisadora permanecerão em letras minúsculas. Os trechos do diário de campo serão apresentados em itálico e no interior de pequenos quadros. Quando houver necessidade de destaque, as falas aparecerão em negrito. Quando houver necessidade de algum comentário ou explicação, eles serão colocados entre parênteses. Algumas falas foram transformadas em subtítulos do capítulo e, por essa razão, estão em itálico.

Muitas diferenças puderam ser notadas quando comparadas com as práticas existentes na escola regular na qual é sugerida a inclusão do surdo e de tantos outros. Como exemplo poderíamos citar o fato de que, na instituição, a LIBRAS é privilegiada como língua de comunicação e de instrução em todas as atividades, o que de longe acontece na escola inclusiva.

Entretanto, para nossa surpresa, na dinâmica de algumas atividades, principalmente naquelas propostas pelo instrutor surdo, muitas semelhanças puderam ser notadas entre as práticas da instituição e as práticas escolarizadas:

Se não fosse pela língua de sinais, eu poderia dizer que as práticas da instituição em muito se assemelham às da escola: alunos sentados – com pouca ou nenhuma participação e o professor em pé – conduzindo a explicação que só acontece após a cópia de um texto retirado de um mesmo e único livro didático, seguindo ainda a seqüência dada pelo mesmo. O que eu conseguirei mostrar com esse trabalho? E agora? As práticas da instituição também são escolarizadas!

Notas de Campo, 23/03/2006.

Não queremos aqui conferir nenhum tipo de crítica às práticas deste ou daquele professor e/ou aluno, estamos apenas tentando narrar alguns dos muitos episódios que foram presenciados durante a pesquisa.

Sem almejar o julgamento entre a melhor ou a pior atitude ou concepção, queremos apenas ressaltar o fato de que muitas crenças comuns às práticas escolarizadas influenciaram também as atividades realizadas na instituição. Apesar disso, foi possível identificar alguns surdos que em alguns momentos rompiam com o modelo escolar. Como por exemplo o Danilo, que costumava interromper a explicação a qualquer momento para acrescentar algo que para ele era relevante, mesmo com a indiferença dos colegas e com a explícita proibição do instrutor surdo que não gostava que sua explicação fosse interrompida.

Ao mesmo tempo, muitos surdos continuaram presos ao modelo escolar em vários momentos. Como no caso de Murilo, Rute e Samuel que se recusaram a ir a um passeio extraclasse por não considerarem este momento como de aprendizagem, já que o aprender, para eles, parecia estar somente na sala de aula.

Como podemos perceber, não foi somente a partir da perspectiva dos professores que as aulas da instituição, em determinados momentos, seguiram os mesmos moldes da escola, pois, certas vezes, as atitudes de alguns alunos também pareceram mostrar a expectativa por uma prática que se aproximasse daquela desenvolvida na escola.

Alguns surdos não querem ir ao passeio e insistem em dizer que nesse dia podem ficar em casa, pois não haverá aula... Parece que eles não reconhecem tal atividade como momento de aprendizagem, embora a estagiária se empenhe em dizer que eles aprenderão muito.

Notas de Campo, 21/10/2006.

Para alguns surdos, e mesmo para muitos daqueles que compõem o cenário educacional no exterior da instituição, o ato de aprender está ligado exclusivamente à sala de aula. Pensamento este que contradiz a concepção de aprendizagem defendida no presente estudo, pois é importante ressaltar mais uma vez que estamos concebendo a aprendizagem a partir da perspectiva apontada por Wenger (2001), como algo que não se liga apenas à escolarização, mas antes, e como já explicitado anteriormente, como um fenômeno social, como algo inerente aos grupos sociais. Poderíamos aqui estabelecer relações com as perspectivas apontadas pela Etnomatemática, nas quais a aprendizagem dos conhecimentos matemáticos também não se limita aos espaços escolares, o que pode ser estendido para outros tipos de conhecimento, visto que em tais perspectivas acredita-se que em todas as culturas e em todos os tempos, o conhecimento é gerado pela necessidade de respostas a problemas e situações distintas e, portanto, está subordinado a um contexto natural, social e cultural (D’ Ambrosio 1996, 2002).

Contudo, a idéia de que a aprendizagem está relacionada apenas à escolarização parece ser ainda muito forte em nossa sociedade e foi reforçada, muitas vezes, ainda que inconscientemente, por alguns profissionais da instituição e pelos próprios surdos. Vejamos um dos textos trabalhados em uma das aulas (18/05/2006) observadas na instituição:

A Escola

Na escola passamos a fazer parte de uma nova comunidade, formada pelos colegas, professores e funcionários.

É aí que aprendemos a ler, a escrever, a contar42

e a conviver com pessoas estranhas à nossa família. Na comunidade escolar, todos têm os seus deveres,

mas também têm seus direitos.

Na realidade, a proposta da aula era, com o auxílio do texto, propiciar o aprendizado de sinais desconhecidos e ainda discutir os “direitos” e os “deveres” de alunos e professores no ambiente escolar, mas inerente ao texto existe a idéia de que o aprender acontece na escola. Contudo, não há problema algum em se pensar na escola como local para a aprendizagem. O que nos intriga é o pensamento de que a escola é o único local para a aprendizagem. Avançando um pouco mais, talvez seja possível dizer que além da crença na

existência de um único local para a aprendizagem, poderia existir, inerente a esta, a idéia de que existe também um único modelo para se trabalhar dentro desse espaço.

O trabalho de Mendes (1995), ao focalizar a construção da interação nas aulas de Matemática ministradas a um grupo de professores índios realizadas numa aldeia Guarani, levanta dois descompassos em tal interação. Um descompasso refere-se às diferenças culturais entre as estruturas de participação, ou seja, entre professor não-índio e seus alunos índios. E o outro descompasso

[...] está relacionado às diferenças de expectativas sobre a aula de matemática apresentadas por professor e alunos. Enquanto o professor se mostrava preocupado em desenvolver uma proposta de ensino diferenciada, a expectativa do aluno aparecia ligada ao modelo tradicional de ensino (MENDES, 1995, p. 30).

Mendes (op. cit.) coloca que a expectativa apresentada pelos alunos estava ligada à escola formal do não-índio. Havia, portanto, o anseio de que o professor ensinasse de acordo com o modelo tradicional adotado nas escolas do não-índio existentes no exterior da aldeia. A expectativa dos alunos índios centrava-se no modelo escolar, isto é, para eles estudar Matemática era escrever as contas no papel. Existia uma ênfase na escrita, na cópia. Ficar conversando em torno de situações fora do contexto escolar, como estava acontecendo na aula proposta pela pesquisadora, não era entendido como uma aula de Matemática. Nesse mesmo estudo, a autora faz referência ao momento em que os Guarani escreveram um manifesto pedindo aulas de gramática no estudo do português.

Alguns surdos do presente estudo também parecem reconhecer e desejar esse modelo escolar tradicional, apesar da existência de propostas diferenciadas por parte da instituição, que se vê ainda cobrada a atender às expectativas dos surdos de que sua educação seja semelhante a dos alunos ouvintes. Para nós, tais expectativas vêm das representações que estes possuem sobre escola, aprendizagem e outras, construídas mesmo que eles tenham permanecido pouco (ou nenhum) tempo na escola formal.

Em conversa informal com a pedagoga, que conduzia a turma, foi possível perceber que também alguns familiares dos surdos esperavam que a instituição cumprisse com o papel da escola, quer seja, ensinar os conteúdos aos quais os surdos não tiveram acesso no ambiente escolar. E mais do que isso, esperavam que a instituição pudesse, finalmente, alfabetizar. É como se a instituição fosse a última chance para os jovens e adultos surdos que não obtiveram sucesso na escrita e na leitura do português, mesmo após anos de permanência na escola inclusiva e ainda, para aqueles que, por pouco ou nenhum tempo, estiveram nela.

Em resumo, podemos dizer que, embora a nossa opção tenha sido realizar um estudo numa instituição não escolar, muitas das práticas escolarizadas estão presentes também nesse contexto. Elas se inserem na instituição, seja pela postura de alguns

professores ou pela postura de alguns surdos, e ainda pela expectativa de seus familiares. Posturas e expectativas estas que se relacionam às representações que os mesmos possuem sobre escola. Entretanto, o desespero inicial que se instalou após tal constatação acabou perdendo lugar para novas motivações que deram outros rumos à pesquisa. Rumos que implicaram a necessidade de novos conceitos e, conseqüentemente, a necessidade de novas revisões bibliográficas, para que conceitos como o de “representação”, retratado no próximo item, pudessem fazer parte da discussão já estabelecida.