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Nos itens anteriores, iniciamos a apresentação de algumas das significações que permeiam as representações que os surdos possuem sobre escola. Significações sobre questões ligadas à aprendizagem, que podem fazer referência ao local e ao modo mais apropriado para que ela ocorra. Nesse sentido, algo nos pareceu muito forte: a idéia apresentada por alguns surdos de que, para aprender, é preciso copiar.

Vejamos um pequeno trecho da entrevista realizada com uma jovem surda, aqui chamada Rute, que no período em que aconteceu a entrevista freqüentava, além da instituição, o curso supletivo oferecido por uma escola regular:

Valério: VOCÊ LÊ E ESCREVE? Rute: MAIS OU MENOS... NÃO SEI!

Valério: ESCREVE?

Rute: ESCREVER EU SEI... JÓIA! Valério: VOCÊ ESCREVE?

Rute: SIM.

Valério: ONDE MAIS VOCÊ ESCREVE? ONDE? ONDE? Rute: VOU PENSAR! NÃO SEI!

Valério: ONDE?

Rute: COISA... LIVROS COISAS...

EU TENHO PORTUGUÊS, MATEMÁTICA, SÓ! FAÇO ATIVIDADES E ESCREVO.

A PROFESSORA ESCREVE NA LOUSA E EU COPIO, ESCREVO E APRENDO.

Nota-se que, no trecho acima, além do aprender como conseqüência direta do ato de copiar, um outro fator parece emergir: para ela, o domínio da escrita também está ligado ao ato de copiar. Nota-se também o impacto causado pela questão: VOCÊ LÊ E ESCREVE? Pois afinal, quais seriam os significados atribuídos pela jovem surda às idéias de ler e escrever? Ler é o mesmo que reconhecer palavras isoladas nos textos e escrever é o mesmo que conseguir copiar?

O conceito de leitura parece não ser claro e isso pode ser exemplificado com a continuidade da entrevista:

Valério: VOCÊ LÊ OUTRAS COISAS?

LÊ QUALQUER COISA, OUTRAS COISAS? Rute: OUTRAS COISAS?

Valério: LEITURAS...

Rute: MAIS DIFÍCIL... EU SEI SÓ PALAVRAS, COISAS...

HISTÓRIA COM SINAIS SÓ... PALAVRAS, PALAVRAS SÓ.

EU NÃO SEI O SINAL DAS PALAVRAS.

Valério: LER? Rute: SÓ LER.

Valério: QUALQUER COISA VOCÊ LÊ? Rute: NÃO! LEITURA SÓ!

Como podemos perceber, há uma aparente confusão sobre os conceitos ler e escrever. E o que dizer sobre a noção de aprendizagem tão relacionada à atividade de cópia? Pois, parece-nos que essa é a situação vivenciada pela jovem surda na escola regular da qual ela participa na chamada “inclusão”: A PROFESSORA ESCREVE NA

LOUSA E EU COPIO, ESCREVO E APRENDO. Essas idéias também estão presentes nas

falas do segundo entrevistado, aqui chamado Murilo:

Valério: ONDE MAIS VOCÊ ESCREVE? QUAL O LUGAR? ONDE? Murilo: NA MINHA CASA, LÁ.

OS LIVROS EU LEIO E COMPRO LIVRO.

LEIO EU COPIO, COPIO E APRENDO.

LER... EU GOSTO DE FAZER ISSO EM CASA, LER... SÓ.

Valério: E AQUI? (na instituição)

Murilo: AQUI EU GOSTO DE LER PALAVRAS.

SÓ GOSTO DE PALAVRAS, SÓ.

Este discurso de que “ao copiar eu aprendo” está ligado ao que foi apresentado no Capítulo II na discussão de Lodi, Harrison e Campos (2002) sobre o fato de que estamos assistindo à formação de sujeitos surdos que pressupõem que ler é sinônimo de reconhecer

palavras e escrever, uma habilidade de treino e cópia.

No geral, os jovens surdos nas atividades de leitura reconhecem poucas palavras e o sentido da frase sempre tem que ser explicado pelos professores em sinais. O segundo

entrevistado também demonstra essa relação entre leitura e o reconhecimento de poucas palavras:

Valério: VOCÊ LÊ?

Murilo: EU... POUCO, POUCO.

LEIO PALAVRAS, PALAVRAS SOLTAS, SÓ. POUCO, POUCO... POUCO. SÓ.

Tais trechos de entrevistas mostram algumas das significações dadas pelos surdos à escrita, à leitura, à aprendizagem. Em resumo, podemos dizer que ler está sendo entendido como reconhecer palavras isoladas, enquanto que ser competente na escrita, para eles, está bem longe de ter autonomia, e antes, significa ter sucesso nas atividades de cópia que fazem parte de suas práticas também fora da instituição, seja em casa, ou seja na escola freqüentada por alguns deles. Durante a pesquisa, percebemos que a concepção de aprendizagem esteve fortemente ligada ao copiar.

Assim, as atividades de cópia eram freqüentes na dinâmica adotada por alguns professores e podem ser vistas a partir de dois pontos: o primeiro, a partir da valorização conferida principalmente pelo instrutor surdo; e o segundo, pelo prestígio conferido aos alunos que conseguiam ter sucesso nessas atividades.

Já é tão difícil para estes jovens (que estão em fase de alfabetização) escreverem o português (que não é a primeira língua para eles) e o instrutor surdo ainda exige que a escrita seja em letra cursiva e não em letra bastão.

Notas de Campo, 25/05/2006.

O instrutor surdo valorizava muito as atividades de cópia. Em diversas situações, foi possível constatar que em tais atividades, a surda Rute sempre era a primeira a terminar. Muitas vezes o instrutor mostrava as folhas produzidas (copiadas) por ela, tecendo elogios, dizendo que a escrita era bonita e retinha. Ao mostrar as folhas dos demais jovens, dizia que estava “mais ou menos”, pois a escrita era torta e não tão bonita, mas que eles estavam aprendendo. O instrutor sempre falou da importância da escrita, da necessidade de treinamento, com a justificativa de que para o surdo é importante saber cada vez mais palavras. Nota-se uma valorização da escrita e, conseqüentemente, daqueles que apresentam melhor desempenho em tal habilidade. Várias situações de cópia de textos puderam ser presenciadas e a seqüência adotada pelo instrutor durante as entrevistas, nos fez lembrar da seqüência de término das cópias, da primeira garota até o último garoto.

Importante explicitar que o instrutor surdo, que conduziu as entrevistas, foi chamando um jovem de cada vez para responder as perguntas, enquanto os demais

permaneciam na mesma sala, sentados, esperando o chamado do instrutor. Entretanto, foi possível perceber que a escolha pela seqüência de entrevistados realizada pelo instrutor surdo não foi aleatória. Antes de chamar o primeiro entrevistado, o instrutor surdo disse:

Valério: ESPERE UM POUCO.

ATENÇÃO! QUALQUER UM DE VOCÊS VEM AQUI. ESPERE UM POUCO, NÃO!

VOCÊ, PORQUE ELA JÁ ESTÁ ACOSTUMADA. VEM VOCÊ!

Num primeiro momento, o instrutor diz que qualquer um dos jovens surdos poderia ser o primeiro entrevistado, mas logo muda de idéia e chama a Rute, dizendo que ela já está acostumada. Contudo, intriga-nos essa fala de que ela está acostumada. Acostumada a quê? A ser filmada? A ser entrevistada?

Durante o longo período de observações foi possível a participação, além da situação das entrevistas, apenas de mais um encontro filmado: o episódio em que a pesquisadora teve que dar, em sinais, esclarecimentos sobre a sua pessoa, a sua profissão e a sua pesquisa – já citado anteriormente. Parece-nos que todas as situações de filmagem, até pela questão do espaço e do contexto, seguem a mesma dinâmica, ou seja, todos os jovens são chamados a responder as mesmas questões, cada um ao seu tempo. Isso nos leva ao pensamento de que, se é em relação à filmagem e à entrevista que o instrutor fala, se a garota apontada por ele está acostumada, todos os outros jovens também estão acostumados. Mas, o que fez a diferença na hora da escolha do instrutor?

Estamos levantando a hipótese de que a competência nas atividades de cópia foi o fator determinante para a seqüência adotada por ele no dia das entrevistas. Outras seqüências poderiam ser formadas, se outras práticas e atividades fossem consideradas. Existe aquele que se destaca nas situações de jogos, aquele que se destaca na execução dos sinais, nos desenhos, na narrativa de histórias, nos esportes, no conhecimento das notícias da atualidade. Entretanto, parece-nos que tais práticas não são tão valorizadas quanto as práticas que evidenciam a competência da escrita e, por extensão, da leitura.

Não pretendemos dizer que todos os professores surdos, em todos os contextos, conferem tal valor à escrita no processo de aprendizagem. O trabalho de Gesser (2006), cujo foco de investigação é a aula de LIBRAS para ouvintes, ministrada por um professor surdo, pode nos mostrar uma situação bem diferente. No contexto apresentado pela autora, o professor de LIBRAS não valorizava a escrita em suas aulas e se incomodava quando as alunas ouvintes anotavam. Contudo, elas tinham a dificuldade de desvincular a aprendizagem da língua de sinais do ato de escrever. Afinal, em nossa sociedade ouvinte, constantemente nos prendemos à idéia de que aprendemos quando copiamos e que, com o registro escrito, poderemos retomar algum conhecimento esquecido. Parece-nos que nesse

contexto, eram as alunas ouvintes que estavam relacionando o ato de aprender (os sinais) ao ato de escrever, ou seja, ao ato de registrar por escrito. Registro este que poderia ser utilizado caso elas esquecessem algum sinal.

Na verdade, como apontado no item 2.1., nossa sociedade como um todo tem valorizado extremamente a escrita. A partir de uma perspectiva grafocêntrica, a escrita é vista como se fosse indispensável para qualquer grupo social. Nesse sentido, confere-se prestígio àqueles que dominam a escrita, enquanto aqueles que não a dominam, segundo os moldes impostos pela cultura dominante, são considerados socialmente deficientes.

Como discutido no Capítulo II, sabemos que no modelo autônomo de letramento (Street, 1984 apud Mendes, 2001), a escrita é correlacionada ao progresso e o grupo que a possui é considerado superior. Já no modelo ideológico, não há a crença na existência de apenas um tipo (neutro) de letramento, mas um pressuposto de que as práticas de letramento mudam de acordo com o contexto. O que nos permite o pensamento de que cada grupo social poderá conferir valores diferentes à escrita, ou seja, há diferentes possibilidades de relação com a escrita.

Trabalhos como o de Mendes (2001) e de Souza (2001) mostram-nos que o que se observa na apropriação da escrita por diferentes grupos indígenas é que estes têm dado significados próprios, não desvinculados das formas de representação, de suas comunidades.

Souza (op. cit.) alerta-nos para as diferentes possibilidades de escrita em contextos diferenciados. Segundo o autor, o povo Kaxinawá não aprendeu a escrita passivamente, como uma mera tecnologia, mas se apropriou e a transformou, adaptando-a e moldando-a à imagem de sua própria cultura. Contudo, poderíamos estender a idéia defendida pelo autor para o contexto de educação de surdos, visto que o autor tenta desnaturalizar um modelo único de escrita.

Sabemos que, também no caso dos surdos, pode haver a apropriação46 da escrita,

como o trabalho de Silva (2005) evidencia. A autora apresenta alguns exemplos de como a escrita do surdo pode privilegiar outros aspectos diferentes daqueles esperados pela sociedade letrada ouvinte. Casos como o de Letícia que, ao tentar escrever a palavra “manequim”, usa uma tradução literal da LIBRAS e escreve “mulher duro”, ou como o de

Paulo, que cria uma nova forma para iniciar o seu texto e, ao invés dos convencionais “Era

uma vez...” ou “Um dia...”, escreve “Começar” – recurso próprio da Língua Brasileira de Sinais e muito usado quando surdos vão iniciar o relato de histórias. De acordo com a autora, ao utilizar a escrita de outra forma, o que ela chama de “português surdo”, fazendo

46 Em nosso estudo, o termo “apropriação” está sendo entendido a partir do sentido apresentado por

Certeau (1996, apud Mendes, 2001) no qual os dominados se apropriam do saber dominante em moldes diferentes aos usos do poder, residindo aí, a resistência.

analogia ao termo “português índio” cunhado por Maher (1996) ao salientar as diferenças específicas entre o português falado por professores índios e o português padrão, o aluno surdo deixa sua marca de identidade e mostra a sua criatividade ao utilizar caminhos fora da ordem estabelecida para o português. Valendo-se do estudo de Silva (2005), Gesser escreve:

Assim, pode-se dizer que o surdo se re-apropria, re-emprega a escrita de outra forma, como um “português surdo”, e, ao marcar “sua própria história com essa língua e com essa maneira de escrever”, o surdo imprime nela marcas de sua identidade (GESSER, 2006, p. 137).

Entretanto, num primeiro momento, fomos levados ao pensamento de que os surdos do presente estudo não demonstraram nada semelhante no que se refere à apropriação da escrita. É importante ressaltar que não foi presenciada nenhuma atividade de produção autônoma de escrita, mas somente as atividades de cópia. Contudo, a própria cópia mostrou-se um elemento de resistência e apropriação.

No Capítulo II, quando tratamos das experiências de letramento no processo de escolarização do surdo, colocamos, seguindo as idéias de Góes e Tartuci (2002), que na escola regular, na chamada “inclusão”, o “copiar” acaba sendo um tipo de estratégia para que o aluno surdo possa se manter “vivo” no ambiente escolar.

Entretanto, ao escolhermos uma instituição não-escolar para o nosso estudo, acreditávamos que num ambiente onde a língua de sinais era utilizada como meio de comunicação e instrução, as atividades de cópia não apresentassem esse caráter de resistência e apropriação, ou seja, uma estratégia para garantir certo tipo de participação nas atividades propostas por alguns profissionais da instituição.

Contudo, notamos que as atividades de cópia causavam certo ar de satisfação nos alunos surdos da instituição que conseguiam executá-las rapidamente. Esses eram considerados, também pelo grupo de surdos, como os mais espertos e, como prêmio, era permitido que ficassem descansando enquanto aguardavam os outros terminarem. Se é possível dizer que o instrutor surdo apresenta uma significação sobre a escrita que se aproxima do modelo autônomo de letramento, por acreditar que a aquisição da escrita fará os alunos surdos progredirem, também é possível dizer que o próprio grupo de surdos confere certo valor ao domínio da escrita, devido à constante comparação entre eles e os ouvintes.

Para exemplificar o exposto acima apresentamos um trecho das anotações da pesquisadora realizadas com base no processo de observações:

Hoje, decidi também copiar o texto, tentando me ocupar enquanto esperava por eles... Copiei em letra cursiva, pois estou tentando me acostumar com essa prática, visto que às vezes, sou chamada a escrever palavras no quadro e o Valério não gosta muito da minha letra, diz que é confusa, pois mistura os tipos de letra... Então, ele apaga tudo e mostra o jeito certo de escrever... Mesmo demorando mais que o usual, terminei primeiro que todos eles. Então, começaram a comentar que eu sou rápida, escrevo bem e que eles demoram. Mais uma vez, vejo o domínio da escrita relacionado ao sucesso na cópia. E, apesar de não gostar das comparações, digo que eles são bons nos sinais, enquanto eu, só estou começando a aprender.

Notas de Campo, 24/08/2006.

Retomando a discussão que se fez no Capítulo II sobre a importância do aprendizado do português para os surdos, deve-se ressaltar, com base nas idéias apresentadas por Souza (2002), que alguns grupos de surdos têm tentado mostrar que, para ser brasileiro, apenas arbitrariamente há a necessidade de saber português. Seja na modalidade oral ou escrita, mesmo sem saber a língua nacional, pessoas surdas ou ouvintes conseguem satisfazer a maior parte das suas necessidades com o uso de sua própria linguagem minoritária (LANE, 1992). Entretanto, segundo o autor, a tragédia está no fato de que a educação dessas pessoas se dá exclusivamente na língua que elas não conhecem. Poderíamos, então, questionar os motivos que levam tais grupos à necessidade de aprendizado da língua nacional.

E ainda, como nos propõem Lodi, Harrison e Campos (2002), poderíamos concluir que a aprendizagem da escrita deve ser relativizada e pensada segundo as necessidades e particularidades de cada grupo social.

O trabalho de Cavalcanti (2004), cujo contexto de pesquisa é o indígena, mostra-nos as significações de professores índios sobre letramento e, conseqüentemente, sobre escola e escrita. Contexto no qual a escrita tornou-se importante como o principal meio de contato com a sociedade dominante. Mesmo assim, há o questionamento do aprendizado da leitura e da escrita como solução para todos os problemas, ou seja, há uma oposição à supervalorização da escrita, pois se acredita que a educação indígena de qualquer povo existe mesmo sem a escrita. Além de um outro tipo de valorização para a escrita, o texto apresenta, ainda, o fato de que a escrita pode ser feita em outras modalidades como, por exemplo, com o uso de desenhos e não apenas de palavras.

Assim, encerramos este item com o apontamento de mais um elemento que, durante o processo de pesquisa, mostrou-se relevante para a discussão estabelecida no presente trabalho: o desenho.