• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – RÁDIOS COMUNITÁRIAS

II.6 Brasil: RC, a nossa realidade

II.6.3 A repressão

Com a lei aprovada, ficou a impressão de que era fácil montar rádios comunitárias e conseguir a concessão era “um detalhe”. Resultado: proliferaram as rádios de baixa potência sem autorização. Com isso aumentou a repressão, e também as denúncias de abusos dos agentes da Anatel e Polícia Federal no fechamento das rádios e detenção dos que atuavam nelas.

31 Conforme a legislação, as rádios comunitárias recebem autorização de funcionamento e não concessão. Na prática é uma

“concessão” do Estado para que elas operem, mas o termo concessão é aplicado somente para emissoras de rádio e TV comerciais.

O fechamento de rádios não autorizadas é mais que uma ação fiscalizatória do Estado. Entendemos como uma ação política com objetivos bem definidos: reprimir a voz dos que não têm poder.

A repressão como ação política foi reconhecida pelo Governo Luiz Inácio Lula da Silva. O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI)32, criado por Decreto Presidencial em 26 de novembro de 2004, reconhece isso. Em seu relatório final está registrado que: 1) rádios sem autorização podem ser comunitárias; 2) rádios

com autorização podem não ser comunitárias. Isto é, existem rádios comunitárias

que não possuem autorização oficial para operar são reprimidas. Já o Dossiê “Querem calar a voz do povo” registra que ações da Anatel e Polícia Federal são direcionadas para emissoras que contrariam interesses do poder local (prefeitos, vereadores, deputados), não reprimindo as emissoras sem autorização sob o comando desse poder.

Ainda de acordo com o Dossiê “Querem calar a voz do povo”:

Com ou sem mandato judicial, usando de violência, grosserias, abuso do poder, agentes da PF invadem casas, estúdios, salas de rádio, armados de fuzis e metralhadoras. Na operação é comum as pessoas serem algemadas e até espancadas; homens, mulheres e crianças são constrangidas diante do aparato bélico; portas são arrombadas; apreendem os equipamentos, os documentos da rádio, CDs, e até pôsteres pregados na parede! Não se trata mais de ações administrativas, mas políticas. (SJPDF, 2005, p. 35)

O mesmo documento relata que, em outubro de 2004, foi fechada a Rádio Comunitária Constelação. Instalada em Belo Horizonte, era controlada por deficientes visuais. Como ela não tinha autorização de funcionamento, teve seus equipamentos apreendidos, e seus dirigentes (todos cegos) foram presos e levados num camburão da polícia. No dia 2 de setembro de 2005, dois dias após uma ação (violenta) da PF sobre a rádio em que atuava, em Teresina (PI), Maria da Conceição Oliveira morreu de ataque cardíaco.

Durante todo o ano de 2004, foram realizadas 4.089 ações de combate ao funcionamento de entidades de telecomunicações (incluindo radiodifusão) não-outorgadas em todo o País, sendo que 81% dessas ações foram referentes a rádios comunitárias. O resultado foi o fechamento de mais de 2 mil rádios no Brasil apenas em 2004 - ou seja, número duas vezes maior do que o número de rádios comunitárias outorgadas e com funcionamento autorizado pelo poder legislativo em todos os 7 anos de existência do serviço de radiodifusão comunitária no País. (LOPES, 2005a).

Eis dois relatos de ação policial:

1) Rádio Valente (BA) - setembro/2000

Armados até os dentes, Policiais Federais bateram no portão da Rádio Comunitária pedindo que Sampaio abrisse; como as pessoas que batiam no portal não se identificaram, mesmo depois de insistentes pedidos da pessoa que se encontrava na rádio, o funcionário disse que iria abrir. Então eles saltaram o muro, quebraram a porta que dá acesso a rádio e começaram espancar o colaborador da rádio. Como se não bastasse, algemaram o rapaz e começaram a fazer o interrogatório ali mesmo no local. Depois de tudo isso, levaram todos os equipamentos da rádio comunitária. (SJPDF, 2005, p. 71)

2) Rádio Bicuda (RJ) – setembro/2002

Pois bem, neste dia 29 de setembro, a Polícia Federal invadiu a emissora com diversos homens armados. As três pessoas que estavam no local foram impedidas de usar telefones. Uma moradora ainda tentou fotografar o que estava acontecendo, mas teve seu filme apreendido. Uma casa foi invadida, sem mandato, na busca do transmissor. Pessoas foram ameaçadas.

Mas, a polícia não lacrou o transmissor. Ela simplesmente roubou todos os equipamentos da emissora, muitos doados pelo próprio Ministério da Saúde, avaliados em mais de R$ 20 mil e possuidores de nota fiscal. Bem como, roubou também o acervo da programação da rádio, CDs virgens e até objetos pessoais.

Durante horas os três companheiros da rádio foram mantidos na Polícia Federal, apenas libertados sob fiança e agora terão que responder a processo. (SJPDF, 2005, p. 74)

Quando o Estado reconhece que nem toda rádio comunitária com concessão é comunitária de fato33 temos aqui uma auto-constatação da existência de

irregularidades no processo de concessão. Conforme Lima e Lopes (2007)34, mais

da metade das autorizações concedidas pelo Ministério das Comunicações foram obtidas por políticos e religiões. Muitas rádios comunitárias de qualidade tiveram seu processo arquivado ou protelado, porque a concessão foi dada ao político ou à religião com influência no Minicom.

A repressão do Estado às emissoras sem autorização tem se baseado em dois dispositivos legais35:

1º) Artigo 70 da Lei 4.117/62, o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT):

Art. 70 Constitui crime punível com a pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou

33 Relatório final do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI).

34 Mais adiante (item 1.6.9) abordaremos mais detalhadamente esse estudo. 35 Eles são usados ainda hoje.

utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta lei e nos regulamentos.

Parágrafo único. Precedendo ao processo penal, para os efeitos referidos neste artigo, será liminarmente procedida a busca e a apreensão da estação ou aparelho ilegal.

Redação dada ao Artigo 70 pelo Decreto-Lei 236, assinado pelo general Humberto Castelo Branco, em 28 de fevereiro de 1967.

2º) Artigo 183 da Lei 9472/97, Lei Geral de Telecomunicações (LGT).

Art. 183. Desenvolver clandestinamente atividades de telecomunicação: Pena - detenção de dois a quatro anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, e multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, direta ou indiretamente, concorrer para o crime.

A partir das denúncias apuradas, o Dossiê citado sistematizou os elementos comuns nas ações de repressão praticadas por agentes da Anatel e PF:

Abuso de autoridade – agem sem mandado, humilham os acusados, não respeitam seus direitos civis, arrastam tudo que encontram pela frente. Prepotência dos agentes – se apresentam como juízes e donos da verdade, não aceitam nenhum argumento.

Exposição desnecessária de armamento – precisa metralhadora e fuzil para fechar uma rádio com duas pessoas desarmadas? Precisa algemar? Constrangimento de crianças e adultos – há vários casos de crianças colocadas diante das armas dos agentes da PF

Despreparo total no lidar com movimentos organizados – eles não sabem o que fazer quando a população se reúne para defender a rádio. A reação dos policiais, principalmente, é sempre atabalhoada, histérica, alucinada.

Despreparo quanto aos direitos humanos – a PF e a Anatel não respeitam os direitos do cidadão.

Covardia contra o povo pobre – os agentes (da PF e Anatel) sabem que o povo das rádios comunitárias é gente pobre e que não tem condições nenhuma de resistir à ação deles, nem mesmo do ponto de vista jurídico. Isso alimenta a prepotência dos agentes.

Ocultamento de identidade – a lei obriga os agentes a se identificarem. No entanto, eles raramente fazem isso. No fundo eles sabem que a ação envolve covardia, ilegalidade, abusos de autoridade,... Por isso, é melhor se esconder.

Ocultamento de registro da ação – Em todas as ocasiões em que a PF ou Anatel tiveram suas ações flagradas por uma câmara de vídeo ou fotográfica, a reação foi de violência, ameaçando com armas os que estavam registrando. É mais um sinal de que eles sabem que se trata de ação covarde e ilegal.

Parceria com a grande mídia – há vários relatos de militantes das rádios sobre a presença de emissora de TV comercial ou jornal de grande circulação logo após o fato consumado. Em alguns casos, a TV comercial acompanha a blitz. Estes veículos, fazendo um jornalismo de segunda categoria, se encarregam de reproduzir a versão da polícia, censurando a voz dos que foram agredidos. (SJPDF, 2005, p. 28)

Eis o relato de um caso exemplar. O nome do autor é mantido em sigilo no Dossiê “para evitar represálias”.

Rádio Angra – Porto Alegre/RS – outubro de 2002

No dia 03/10/2002, bateram na porta que conduz à rádio, agentes da Polícia Federal e agentes da Anatel, com um mandato de busca e apreensão dizendo que era da 2ª vara federal criminal. O coordenador da operação da polícia federal não apresentou sua carteira funcional, mas disse que iria entrar para levar os equipamentos, o horário deveria ser entre 8h00 e 8:30 da manhã. Eu pedi que esperasse alguns instantes porque estava só com roupas menores e camiseta e iria vestir-me. Ele aguardou e eu abri a porta. No lado de fora, mas já dentro do meu terreno, estavam posicionados três agentes da PF, um de cada lado da porta, e um atrás dele. Ao adentrar já entraram consigo só três agentes com armas em punho e coletes a prova de balas e logo em seguida entraram os demais, uns 3 ou 4, mais 2 ou 3 agentes da Anatel. [...]

Logo que entraram eu disse a eles que iria ligar para o meu advogado e eles não permitiram que eu fizesse a ligação; eu disse que teria esse direito e mesmo assim ele me foi negado.

Um dos agentes disse que se eu atrapalhasse a operação ele iria algemar- me por desacato a autoridade.

Disseram: “nós vamos vasculhar toda sua casa”. Já neste curto espaço de tempo meus filhos estavam a minha volta, apavorados, e eles com armas pesadas de guerra, e meus filhos no meio deles, e não tiveram nem a sensibilidade de colocar as armas num lugar menos agressivo para as crianças. Eu estava envolvido com eles e meus filhos ao mesmo tempo, pois estavam assustados e eu tentando acalmá-los. Como eu senti que não resolveria continuar com aquilo e a pressão psicológica contra nós não iria acabar entrei em minha casa, aonde já se encontravam agentes da PF vasculhando tudo e mesmo porque a rádio é uma extensão da casa. E abri o cofre e passei o transmissor a mão de um agente da PF.

Neste momento desci da casa para a rádio e eles continuaram a vasculhar tudo na casa, até abriram o alçapão do forro. Após a entrega do transmissor perguntei o que ainda procuravam. E me disseram que num primeiro momento como eu não havia dito o local do mesmo, queriam o transmissor “potente”. Neste momento fiquei de espanto, pois já tinha entregue o que eles queriam, assim mesmo não acreditaram em mim e continuaram a busca. [...]

A Sra. Nádia Calero, agente da Anatel, credencial 410-7, disse que eu tinha botado em dúvida a sua palavra.

Paralelamente, na parte da casa, vim saber depois de meu filho maior (5 anos) e do menor (4 anos), que houve uma tentativa de suborno pelo agente que coordenava a operação da PF, perguntando-lhes onde estava o outro transmissor e se dissessem eles ganhariam um saquinho de balas de dar tiro (!), e o filho menor observou e me falou depois na minha volta pra casa que era o homem que escrevia tudo. Como os dois meninos não sabiam de nada, chamou-os de mal-educados. [...]

Assim, recolheram todos os equipamentos, CDs, atas de fundação, livro. Tinha até um agente vendo televisão na minha sala.

Logo após observar isso, lembrei-me que minha esposa tinha guardado R$ 180 para as despesas de casa no guarda-roupa, bem a vista de todos, já que confiamos um no outro, meus filhos não mexem. Fui ver se estava lá o mesmo e não encontrei o dinheiro.

Nesse entremeio, fui e senti o constrangimento, pois eles fulminaram-me, dizendo que era grave a acusação. E nesse instante bateu a intimidação, dando de recuo, dizendo a eles que talvez eu tivesse me enganado. Mas aí um dos agentes me forçou a ligar para minha esposa que estava

trabalhando. Ao falar-lhe tentei persuadi-la que o dinheiro estaria em outro lugar, com medo de represálias a mim e meus filhos. E que depois o acharia. Mas o agente federal me ordenou dizendo para que eu não desligasse. Falou com minha esposa e ela teria confirmado de que o dinheiro estaria lá, mas não estava.

Terminada a operação, PF e Anatel me conduziram até a PF na Avenida Paraná, e fui conduzido à ante-sala do delegado federal, Genito Cerzola Correia. O coordenador da operação entrou na sala e a porta estava aberta e ouvi ele dizendo que minha casa era uma maloca e que eu estava ali porque tinha sumido da minha residência R$ 180, como ocorreu de fato. Então entrei na sala. E o coordenador estava ainda falando algumas coisas a respeito e eu fui fazer uma intervenção e ele mandou calar a boca e de volta para ante-sala. Fui chamado de vagabundo pelo delegado. Depois ele disse “vou mandar a Anatel te monitorar e se tu estiveres no ar, vou mandar botar o pé na tua porta e te prender”. Ouvindo isso perguntei se estava liberado e ele disse que sim. Então me virei e sai daquele inferno de coações e humilhações, como se fosse um verdadeiro traficante de drogas. Quero perguntar quem vai nos tratar destes traumas psicológicos? E toda essa barbárie desnecessária. Alguém tem que ser responsabilizado ou então a democracia faliu e estamos vivendo novamente a verdadeira ditadura. (SJPDF, 2005, p. 29).

Em 2005, foram fechadas 1086 emissoras de rádio que funcionavam sem autorização. Isso equivale à média de 90/mês ou 3 por dia. No ano seguinte a Anatel foi mais eficiente ainda, atingindo a média de 95/mês.

O Quadro abaixo quantifica as ações de repressão da Anatel e PF a partir de 200436.

Quadro I: Emissoras sem autorização que foram lacradas e sofreram apreensão e ação conjunta da Anatel e PF, de 2004 a 2010.

Ano Lacradas Apreensão Ação Anatel/PF

2004 710 260 260 2005 1086 177 177 2006 1137 221 221 2007 1024 152 152 2008 996 160 160 2009 728 115 115 2010* 431 40 39 TOTAL 6112 1125 1124

Fonte: Anatel (Resposta ao Req. de Informação nº 5313, do dep. Edson Duarte, em 30/08/10) * Trata-se do primeiro semestre do ano: 01/01/2010 a 30/06/2010.