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CAPÍTULO II – RÁDIOS COMUNITÁRIAS

II.8 Um modelo de rádio comunitária

Uma questão primária em rádio comunitária é exatamente defini-la: o que é rádio comunitária? Ou, em outros termos, o que seria uma rádio comunitária de qualidade?

Uma definição de rádio comunitária é dada pela Lei 9.612/98. Mas essa mesma lei que estabelece princípios e fundamentos para as RCs, acatados por dirigentes de rádios comunitárias e estudiosos, também – como foi visto – impõe uma série de restrições. Os fundamentos da rádio expressos na lei são de ordem ética, filosófica, enquanto as restrições estão no campo da política, embora apareçam como de ordem técnica. Diante dessa contradição, e após constatar que o Estado tem agido contra esse tipo de emissora, descartamos a definição legal (do Estado) para rádios comunitárias.

A legislação tem tantas restrições76 que não seria justo aceitá-la como

referência única. Considere-se ainda que o Ministério das Comunicações demonstrou estar sujeito a influências de “coronéis” (LIMA, V.; LOPES, 2007), que conseguem concessões burlando a lei. O Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) confirma que existem “rádios autorizadas, mas que não são comunitárias; e rádios

75 A Lei 9.612/98 veta o proselitismo religioso nas RCs e o seu controle por religiões. 76 Vide Capítulo VI desta Dissertação.

não autorizadas que funcionam como comunitárias”. Não é, portanto, a concessão oficial que garante a legitimidade da RC.

Uma vez que a definição legal para as rádios comunitárias está contaminada por uma posição ideológica de Estado (contrária a esse tipo de emissora), o nosso desafio era encontrar uma definição que servisse aos nossos objetivos epistemológicos. Tivemos, assim, que construir um modelo de rádio comunitária - uma definição para o que é “rádio comunitária de fato”, ou “de qualidade”. Este modelo foi essencial para distinguir o que é e o que não é RC.

O nosso ponto de partida foram os critérios definidos por alguns autores: critérios técnicos e políticos que delimitam o espaço conceitual em que se situam as rádios comunitárias. Eles definem minimamente o que é uma “RC de qualidade”.

Nossa decisão em estabelecer o que é uma RC a partir de determinados critérios assume um caráter fundamental nesse trabalho uma vez que é comum emissoras de baixa potência, principalmente as legalizadas, apresentarem-se à comunidade como rádio comunitária, embora estejam sob o comando de religiões, empresários, políticos. São aberrações, engodos, que confundem a comunidade e também o estudioso do tema. Rádios deste tipo podem trazer elementos que a fazem “mais ou menos” comunitária. Algumas se apresentam como “rádios populares”, ou “democráticas”, por abrirem espaços para expressão da população, mas fazem isso sem abrir mão do comando político e administrativo da emissora.

É fundamental que, a partir de determinados critérios, tenhamos claro o que é uma rádio comunitária. Deste modo vamos ter uma fronteira de trabalho bem definida e evitamos cair no engodo criado por falsas RCs. Para os fins desta pesquisa, ao tratarmos de rádios comunitárias, ou rádios comunitárias “de qualidade”, estamos nos referindo a este modelo aqui estabelecido.

Um dos autores a estabelecer critérios para definir uma rádio como comunitária foi a professora Cicilia Peruzzo. Para ela uma rádio comunitária “de qualidade” deve ter:

b) Democracia. Possuir sistemas de gestão compartilhada, funcionando com órgãos deliberativos coletivos, tais como conselhos gestores, editoriais e assembléias públicas;

c) Controle social. A programação deverá ser acompanhada e fiscalizada, no sentido de verificar sua adequação aos interesses da comunidade e aos princípios da lei, por um Conselho formado por entidades da comunidade local;

d) Pluralismo. Ser plural, no sentido de permitir que todos os segmentos da comunidade tenham o direito de se expressar no veículo em igualdade de condições;

e) Não ter fins lucrativos. Os recursos da propaganda devem ser destinados ao custeio, manutenção de pessoal e/ou reinvestimento no próprio veículo ou em ações para a comunidade;

f) Compromisso social. Promover ações que visem o desenvolvimento e a organização da comunidade;

g) Conteúdo Local. Valorizar e incentivar a produção local;

h) Sem proselitismo. As religiões não podem usar a rádio para realizar cultos, missas, pregações;

i) Educar para a cidadania. Tem compromisso com a educação para a cidadania no conjunto da programação;

Aos critérios definidos por Peruzzo para uma RC “de qualidade” estamos acrescentando:

- Jornalismo com a comunidade. Ela deve fazer um jornalismo que tem na comunidade o seu foco principal. Não é um jornalismo para, mas com a comunidade; a comunidade faz o jornalismo que lhe interessa.

- Programação musical de qualidade. A RC valoriza a diversidade de expressões musicais; promove os artistas locais; não recebe remuneração para tocar música (jabá); não toca músicas que estimulem a violência, racismo, discriminação, exclusão. Este conjunto de ações possibilita a construção de uma

estética da comunidade; é a comunidade que determina o belo - distinguindo o que é de qualidade – e não mais a indústria cultural.

- Postura educacional. Rádio é escola. Sua missão é transmitir o saber. E o que melhor reflete isso é a concepção socratiana da mayéutica citada por José López Vigil:

Sócrates chamou de maiêutica [...] ao seu método filosófico de investigação e aprendizagem. Se tratava de descobrir [...] a verdade que estava adormecida na mente de cada pessoa. Como a parteira que educe ao feto e o traz à luz, quem educa também ajuda a extrair as ideias mais honestas, os melhores conceitos de outras pessoas. Sob esta ótica, educar seria facilitar o pensamento próprio. Mais que repassar conhecimentos, a pedagogia socrática aponta para o desenrolar da personalidade, o desenvolver, descolar, as potencialidades do ser humano. (LÓPEZ VIGIL, 2008, p. 149, tradução nossa).

- Publicidade ética. A RC não faz publicidade de produtos e serviços que não

sejam de interesse da comunidade. A propaganda não conflita com o papel educativo da RC e o seu compromisso com a comunidade; ela se adequa a essa relação em que o ouvinte e o “transmissor” se confundem. Toda propaganda se submete à ética.

- Canais de prestação de contas. É o instrumento da Ouvidoria. A

comunidade pode interpelar a emissora com sugestões e críticas77.

Sobre essa liberdade manifestada como exercício de democracia (um princípio das RCs), o dramaturgo alemão Bertold Brecht disse:

O rádio seria o mais fabuloso meio de comunicação imaginável na vida pública, constituiria um fantástico sistema de canalização, se fosse capaz, não apenas de emitir, mas também de receber. O ouvinte não deveria apenas ouvir, mas também falar: não se isolar, mas ficar em comunicação com o rádio. A radiodifusão deveria se afastar das fontes oficiais de abastecimento e transformar os ouvintes nos grandes abastecedores. (BRECHT apud ORTRIWANO, 2008, p. 57, grifo do autor).

No nosso entendimento (LUZ, D., 2007, p. 24), enquanto meio de comunicação, a RC teria as seguintes funções sociais:

Provocar a reflexão - A RC deve provocar as pessoas a pensarem. Ao sugerir questionamentos, queremos que a comunidade reflita sobre seu cotidiano, sobre os grandes temas nacionais e internacionais e sobre os

77 Este critério foi apresentado como sugestão pelo professor Fernando Oliveira Paulino, ao participar da banca de Defesa

temas que lhe afetam diretamente; que ela reflita sobre sua realidade; sobre sua vida.

Fazer perguntas - A função da rádio comunitária [...] é fazer com que as pessoas façam perguntas, questionem, pensem. [...] A rádio pode até ter sua opinião, mas a boa rádio deixa ao ouvinte a possibilidade dele criar sua posição.

Formular propostas com a população - A RC deve atuar para que os problemas da comunidade sejam resolvidos por todos. A participação é fundamental. As pessoas devem ser incentivadas a buscar soluções em conjunto e a formular novas propostas e projetos de interesse da comunidade.

Educar - A rádio comunitária deve se comportar – sempre! – como uma escola. Sua função maior é ensinar. Por isso, quem faz rádio comunitária tem uma grande responsabilidade junto à comunidade.

Promover a arte e a cultura - Uma das missões da RC é promover os artistas locais, e a arte de qualidade. É através da rádio que a comunidade conhece os seus artistas. [...] A rádio promove a cultura ao mostrar os hábitos locais, as tradições, a música de raiz e a música moderna; ao levar informações importantes de outras regiões; ao estimular a busca do conhecimento.

Aprender com o povo - A boa rádio comunitária é aquela que se constrói com o povo, com a sua comunidade. É aquela que aprende na troca de informações entre a comunidade.

Questionar o latifúndio da comunicação - Uma das funções da rádio comunitária é contar a história das rádios comunitárias. E aí, revelar como se constituiu no país o latifúndio da comunicação – o que é, como agem os ruralistas da comunicação.

Fazer a crítica aos meios de comunicação - Como muita gente ainda não percebeu o que representam os grandes meios de comunicação, é importante que a rádio faça a crítica aos programas e às emissoras.

Enfrentar os grandes temas - Não podemos manter os tabus, preconceitos, discriminações. Precisamos discutir os temas atuais da humanidade, e aqueles que dizem respeito direto à comunidade. Uma das missões da RC é trazer os grandes temas para o debate. A RC é o lugar para se discutir racismo, reforma agrária, aborto, sexualidade precoce, programas infantis, homossexualismo, prostituição,...

Desaprender o que é ultrapassado - Muita coisa que existe no nosso cotidiano a gente sabe que é ultrapassado, mas ainda não enterramos. Em sua maioria, são conceitos e visões que nos foram impostas por essa elite. Cabe à rádio comunitária enterrar esse defunto.

Ser moderna - A RC deve ser moderna, mas não exatamente no sentido tecnológico. Mais importante que usar equipamentos de última geração é a rádio ter uma programação de qualidade, ser educativa, promover a cultura, promover a cidadania, ser criativa, ser honesta com o público. Ser moderna é também ousar na programação, criar programas interessantes, bem- humorados, mas educativos.

Não ter medo do novo - O papel da RC é ser algo diferente, original, algo que não foi feito ainda. Por isso não podemos ter medo do novo. O novo é uma nova idéia, uma nova proposta, um novo programa, uma nova concepção de radiojornalismo.

Mostrar a realidade - (A RC) mostra o lugar, mostra o povo do lugar, mostra o país. Debate questões locais, nacionais, internacionais. [...] Mobiliza o povo para as grandes causas. Provoca a reflexão e a ação.

Cumpre ainda observar uma questão conexa. Na definição do que é rádio comunitária, intencionalmente não estabelecemos distinção entre aquelas que transmitem por radiofreqüência (usando transmissores) ou “por fios”, como é o caso das rádios “de poste” ou “rádios cornetas”. A Lei 9.612/98 trata exclusivamente de

RC em radiofrequência. Não faz referência às “rádios cornetas”. Estas, para funcionar, precisam de alvará da Prefeitura - não é da competência do Ministério das Comunicações opinar sobre o tema. De acordo com os critérios de qualidade aqui apresentados, também “rádios- cornetas” podem ser consideradas comunitárias78.