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6.1 SOBRE SER CRIANÇA: A CONSTITUIÇÃO DO

6.1.2 A resistência infantil

Outro dado que enriquece a discussão acerca dos processos de socialização diz respeito à resistência infantil às ordens e conselhos advindos dos adultos. Corsaro (2011, p. 170) cita que “muitas das descobertas de como as crianças desafiam e até zombam da autoridade adulta em suas brincadeiras sugerem que esse comportamento pode ser um recurso universal das culturas infantis”. Sem a pretensão de tratar do conceito de cultura infantil, parece-nos que burlar a regra adulta instiga a criança a praticar tal ação, essas brincadeiras transgressoras parecem ser mais atraentes.

As condutas infantis resistentes às palavras dos adultos estiveram relacionadas no parque àquelas ordens que buscavam controlar o corpo infantil em suas brincadeiras, impor limites para os corpos que se colocam nesse espaço. As preocupações dos adultos justificadas pelos seus critérios de segurança, já tratadas, muitas vezes, não são compartilhadas pelas crianças, como podemos notar na cena abaixo:

Cena 1 – No parque, uma criança se pendura no galho de uma árvore ao lado das PS. Uma das PS fala para a criança: “brinca direito, coisa chata!” A criança não desce do galho. A mesma criança sobe mais alto que o galho onde estava anteriormente. Outra PS vê e fala: “Marcelo, desce daí!”. A criança desce alguns galhos, mas não desce da árvore. (Relatório dia 13/04/2011).

Algo interessante a ser destacado é a reação das docentes diante de situações que elas consideram perigosas: “brinca direito, coisa

chata”, “desce daí”, são ações que buscam intervir diretamente

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falas são explicativas no sentido de esclarecer e construir uma consciência em relação aos perigos oferecidos pelos brinquedos do parque. As falas adultas são sumárias, não se alongam demais quando veem crianças subindo nas árvores ou nos telhados dos brinquedos e logo providenciam a “palavra de ordem”, quase sempre com acentuado volume. Os registros deixam patente que não há argumentação, o adulto limita-se a interromper as experiências infantis, exterminando a possibilidade das crianças participarem dessas decisões. Parece-nos que, para além do fato evidente de os adultos serem responsáveis pela segurança das crianças, muitas das brincadeiras infantis no parque são condicionadas pela decisão unilateral dos primeiros, o que acaba por aplacar o processo criativo das atividades infantis.

Guardamos uma dúvida na interpretação destas condutas, o que significa “brincar direito”? Seria brincar em segurança ou seria fazê-lo sem dar trabalho para as professoras? Certamente as implicações não são as mesmas sobre as atividades infantis no espaço do parque. De qualquer maneira, nem sempre o “brincar direito” da professora tem eficácia no controle dos corpos infantis que se mostram ativos e inquietos, descontrolados, se quisermos, já que sempre querem subir, correr e pular. Não obstante, a transgressão das crianças nesses episódios parece ter um limite, quando o adulto lhes impõe uma punição ou ao menos a ameaça de puni-las:

Cena 2 - Uma criança sobe sobre o telhado de um brinquedo do parque grande da creche. A PS diz: “desce daí”, a criança só se abaixa e não desce. A PE G5 vê e diz em voz alta: “um, dois, três. Vão para a sala”, a criança diz: “não”, PE então diz: “então sai rápido”, a criança desce do brinquedo. (Relatório 05/09/11).

Nesta relação conturbada entre a ordem adulta e a resistência infantil, podemos identificar a presença de ações extremadas diante da ineficácia da autoridade adulta no controle das crianças, como valer-se de certo “jogo” de punição. A criança resiste até que sua presença no espaço do parque seja ameaçada, quando a professora fala para ela descer da árvore, ela desce alguns galhos e não da árvore, o mesmo acontece quando a professora ordena que desça do brinquedo e ela apenas se abaixa. Porém, quando a intervenção transmite claramente uma punição para a conduta infantil, “um, dois, três. Vão para a sala”, a

criança cede diante da possibilidade de ficar sozinha na sala enquanto as outras estarão no parque. Neste caso, a sala pode ser interpretada como a prisão do corpo infantil irrequieto, uma espécie de punição para quem teima em não civilizar-se nos moldes que as docentes oferecem. É necessário destacar que a resistência das crianças "traquinas" constitui- se como mecanismo de protesto e reação às condições que lhe são impostas pelos adultos, especialmente nas brincadeiras realizadas no parque da instituição, espaço convidativo ao movimento e a atividade lúdica. O “brincar direito” dos adultos destoa dos desejos infantis que a impulsionam a brincar, como podemos perceber na cena seguinte:

Cena 3 - A PE diz em voz alta: “bumbum no balanço, bumbum no balanço!”. Uma das crianças que está em pé no balanço desconsidera e continua brincando desta maneira. (Relatório dia 17/10/11).

O “bumbum no balanço” retrata o que é brincar corretamente para os adultos, mas para as crianças que anseiam conhecer e vivenciar novas experiências de movimento, balançar-se sentado não mais a mobiliza, seu desejo é outro, balançar-se em pé e cada vez mais alto. A não compreensão por parte dos adultos em relação aos desejos que incitam as crianças a participarem de suas brincadeiras e o estabelecimento prévio daquilo que pode ou não fazer, parece construir lentamente um corpo domesticado, dócil e quieto, que deve obedecer às intercessões advindas dos indivíduos mais velhos e poderosos. Em contrapartida, a desobediência dos arteiros infantis mostra-nos que essa construção do corpo não ocorre de maneira linear, tampouco harmoniosa, é sempre um conflito decidir entre seus impulsos e os critérios estabelecidos pelos adultos que lhe aplacam esses impulsos. Muitas vezes, como podemos extrair das cenas citadas neste tópico, as crianças testam a aplicação destes critérios quando estão brincando, testam os limites de segurança aceitáveis pelos adultos para continuarem com suas atividades.

Considerando a discussão que delineamos até este momento, a resistência ou transgressão infantil emerge como elemento anticivilizador dos processos de socialização das crianças, uma reação às normas presentes nas ações das professoras que tentam impor uma organização específica para o corpo no espaço e nos implementos, uma forma de resistência ao processo civilizador que lhe instaura o controle

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das emoções e efetiva um refinado autocontrole. Essas formas de resistência atestam que as crianças não são seres passivos em seus processos de socialização, resistir é também constituir-se na oposição, tanto quanto na aceitação e na adesão.