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4.5 A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA E DO CORPO NA

5.1.3 O medo da dor: incorporando o processo

Explorar e refletir sobre as experiências infantis no espaço do parque e as pressões civilizadoras que aí circulam, faz-nos buscar

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elementos, muitas vezes sublimados, que primam pela produção de um corpo civilizado. Pinto (2002, p. 17) destaca que “as pesquisas apontam para o estabelecimento de dinâmicas de contenção gestual e emocional da criança nos contextos escolares sendo a prática pedagógica dos professores um importante espaço para a efetivação da produção do

corpo educado.” Nossas observações mostram que na Educação Infantil

as dinâmicas de contenção gestual e emocional ultrapassam os limites das práticas pedagógicas (como os momentos de atividade orientada ou Educação Física) e abarcam toda a rotina dessa etapa da Educação Básica. A presença do adulto nesses diferentes espaços e tempos, suas ações nas relações com as crianças, parecem coagi-las a partir de um mecanismo, destacado por Norbert Elias como eficaz agência civilizadora: o medo29.

Os medos sociais são correspondentes ao estágio do processo civilizador da sociedade, a mudança no comportamento humano é acompanhada por mudanças no conhecimento disponível, na organização social, nas relações interpessoais e medos sociais. O medo que se instaura na constituição subjetiva do indivíduo por meio das interações é resultado do que a estrutura e a situação da sociedade tornaram necessário a si própria, os medos não são os mesmos em todos os países do planeta, estão atrelados aos seus contextos locais e, mais ainda, ao contexto familiar.

Brandão (2005) ao discutir as ideias de Norbert Elias sobre o medo e a violência, destaca que:

O fato de os seres humanos incorporarem em sua estrutura psicológica essas modalidades de visão, retroativa e prospectiva, é que lhes confere a características de serem previdentes e dotados de memória, diferenciando-os dos animais, por saberem que, um dia, irão morrer. O medo da morte resulta da possibilidade de antever, ou seja,

29 Para Norbert Elias, o medo desempenha um papel social importante no autocontrole das condutas, atuando como barreira que impede o indivíduo de agir conforme suas emoções, freia seus impulsos. O sentimento de medo tem relação com o espírito de previsibilidade, a violência física e o status social, medo das possíveis consequências de um ato, da degradação social ou da morte. Na constituição do Estado, este mecanismo de ajuste das condutas tornou-se ainda mais importante, era uma necessidade a sincronia das condutas em territórios cada vez mais amplos, para haver Estado era preciso haver atitudes em comum. O medo de transgredir as regras e leis estipuladas pelo Estado age regulando o comportamento dos indivíduos, uma homogeneização da conduta a partir dos medos sociais, contribuindo, assim, para a pacificação dos espaços sociais.

da existência de uma visão prospectiva, a qual indica uma finalidade inexorável. Os mais variados tipos de medo que o homem sente são resultantes de sua capacidade de previsão, com graus variados de precisão, daquilo que poderá lhe ocorrer no futuro, seja esse futuro distante ou próximo. (BRANDAO, 2005, p. 5).

Quando estão brincando no parque, o medo que se instaura nas crianças, assimilado principalmente das relações com os adultos, mas também no contato entre os pares, freia e controla a vontade de realizar brincadeiras julgadas perigosas. As crianças parecem internalizar os medos adultos relacionados aos danos ao corpo, demonstrando a força civilizadora que age sobre elas. A cena descrita abaixo nos fornece um panorama desta ordem:

Cena 1 - Uma criança do G4, Simone, atravessa o parque chorando muito. Quando a PS e a PA veem, correm até a criança. A PA segura no braço de Simone e vai com ela para dentro da creche. Um pouco distante, percebo que o nariz da criança sangra. Escuto a PA que acompanha a criança falar: “viu, caiu da árvore”. Elas adentram na creche. A PA volta para o parque junto com Simone, ela traz gelo dentro de uma sacola. A PA fala para a criança: “o Simone, vocês não podem subir na árvore, vocês ainda são muito pequenos, viu Simone”. A PS e Sofia que segura o gelo sobre o nariz, sentam próximas de onde estou localizado no parque. A TL vem até o parque e vê a criança machucada sentada com a PS. A TL pergunta: “machucou neguinha?”, a PS responde: “ela caiu da árvore”, a TL diz: “ai, ai, ai, viu?”. Simone caminha até onde estou e pergunta: “sabia que eu caí da árvore?”, respondo: “eu vi. Tu achas a árvore perigosa?”, Simone responde: “acho, só para os mais velhos que pode”. (Relatório dia 14/07/2011).

A preocupação flagrante de preservação do organismo físico é facilmente notada na cena descrita, o medo edificado nas falas dos

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adultos para a criança que acabara de se machucar transmite a pressão civilizadora sobre o comportamento infantil. Observando a fala da criança podemos detectar como o corpo vai sendo contido pela aprendizagem dos medos sociais, neste caso, o medo da dor. Mesmo que sua vontade de subir nas árvores seja grande, aos poucos vai deixando de ser irresistível por intermédio do medo de sentir novamente a dor. O medo modela e controla a forma de expressar os desejos na infância, instaurando-se como mecanismo de autocontrole.

Este modelo de educação, que se pauta, sobretudo, pela eficiência, acaba por ocasionar situações que limitam e privam as crianças de brincadeiras consideradas “perigosas” e que ofereçam riscos à integridade física. Pela repressão ou permissão, a produção do que estamos denominando de corpo civilizado tem como premissas a higienização, o controle dos desejos e emoções e a apreensão de técnicas corporais específicas, processo em que o medo exerce considerado papel.

Sobre os mecanismos que almejam educar o corpo e torná-lo civilizado, Elias comenta que:

[...] já é muito claro que os seres humanos estão se tornando mais complexos e internamente divididos de uma maneira muito específica. Todo homem, por assim dizer, enfrenta a si mesmo. Ele “disfarça as paixões”, “rejeita o que quer o coração” e “age contra seus sentimentos”. O prazer ou a inclinação do momento são contidos pela previsão de consequências desagradáveis, se forem atendidos. E é este, na verdade, o mesmo mecanismo através do qual os adultos – sejam eles os pais ou outras pessoas – instilam um “superego” estável nas crianças. A paixão momentânea e os impulsos afetivos são, por assim dizer, reprimidos e dominados pela previsão de aborrecimentos posteriores, pelo medo de uma dor futura, até que, pela força do hábito, esse medo finalmente contenha o comportamento e as inclinações proibidos, mesmo que nenhuma outra pessoa esteja fisicamente presente, e a energia dessas inclinações seja canalizada numa direção inócua, sem o risco de qualquer aborrecimento. (ELIAS, 1993, p. 227).

Ao verem atribuídos significados negativos para certas condutas infantis, visando reprimi-las, controlá-las, e positivos para outras, incentivando-as e instigando-as, paulatinamente as crianças modelam suas personalidades a partir dos conteúdos embutidos nas interações sociais com os adultos e com os pares. Neste cenário, uma questão se coloca: como valorizar a diversidade e multiplicidade dos comportamentos infantis no processo de educação do corpo que se pretende civilizado?

Pensamos que é no interior das práticas e ações pedagógicas, nos conteúdos das relações intra e intergeracionais que, paulatinamente, o corpo infantil constrói suas marcas e significados. O corpo, ele mesmo, incorpora um arsenal de medos, condutas, gestos e posturas considerados civilizados, formas de sublimação socialmente construídas e perpetuadas. Com o tempo de convívio social, sua dependência relacional modela, mudando a estrutura da consciência e sentimentos individuais, da relação entre as paixões e seu controle.

5.2 O PARQUE INFANTIL: UM LUGAR QUE (IM)POSSIBILITA A