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4.5 A EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA E DO CORPO NA

5.1.2 As técnicas corporais

Assim como os cuidados, a transmissão de técnicas corporais desponta como importante característica do processo civilizador que se engendra no espaço do parque. O ato de assoar, técnica corporal que Maria do G5 domina e emprega (na cena descrita no tópico anterior), é resultado de um processo de aprendizagens que se medra e molda-se nas experiências sociais, um conjunto de saberes atravessados pelas interdições sociais que tomam o corpo como instrumento, munindo-o de técnicas necessárias para a vida no âmbito de determinada sociedade. Isto quer dizer que as técnicas corporais não são inatas, tampouco são as mesmas em todas as sociedades. Elas são, antes de tudo, expressão do estágio do processo civilizador de uma sociedade, exprimem as características de como as pessoas nela vivem.

Marcel Mauss (1974) nos auxilia a entender as relações entre o indivíduo e o grupo, entre o fisiológico e o social, a partir de uma

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perspectiva em que a estrutura impõe sua marca nos indivíduos por meio das necessidades e atividades que delineiam um uso rigoroso do corpo. Para compreender as técnicas corporais é preciso ter um ponto de vista que contemple as relações entre o biológico, o psicológico e o social, é preciso considerar o “homem total” (MAUSS, 1974, p. 215).

Mauss entende o corpo como artefato cultural, construção simbólica e histórica, e parte da premissa que o homem fez de seu corpo um produto de técnicas e representações sociais, modelos de comportamento e estereótipos que são vagarosa e eficazmente introvertidos. “O primeiro e mais natural objeto técnico e ao mesmo tempo meio técnico do homem é seu corpo” (MAUSS, 1974, p. 217). A experiência do corpo é, portanto, sempre cultural, vincula-se a seu contexto peculiar, e sobre ele incidem técnicas corporais que são assimiladas com maior ou menor sucesso em suas atividades diárias. “A educação fundamental de todas essas técnicas consiste em fazer adaptar o corpo a seu emprego” (MAUSS, 1974, p. 232). Incorporar as técnicas é um processo de aprendizagem que se desenvolve nas relações com outros indivíduos, um sistema simbólico de construção coletiva que define o emprego do corpo na sociedade. Neste processo, para o autor:

A criança, como o adulto, imita atos que obtiveram êxito e que ela viu serem bem sucedidos em pessoas em quem confia e que têm autoridade sobre ela. O ato impõe-se de fora, do alto, ainda que seja um ato exclusivamente biológico e concernente ao corpo. O indivíduo toma emprestado a série de movimentos de que ele se compõe do ato executado à sua frente ou com ele pelos outros. (MAUSS, 1974, p. 215).

Na definição de técnicas corporais, dois elementos principais são fundamentais: a tradição e a eficácia. “Chamo de técnica um ato

tradicional eficaz” (MAUSS, 1974, p. 217). Não há transmissão da

técnica entre as gerações se não há tradição, as próprias técnicas corporais são fruto de tradições distintas que conferem ao corpo seus usos e significados sociais, portanto, o processo de educação está inteiramente relacionado com a tradição, na medida em que se materializa com base nas convenções tradicionais de um determinado contexto histórico-cultural. Já a eficácia refere-se à possibilidade de um gesto técnico cumprir o objetivo previsto com satisfação. Por meio disso

podemos perceber as mudanças históricas nas técnicas corporais, sendo o esporte campo exemplar neste aspecto: as técnicas exigidas nos diversos esportes foram sofrendo modificações consideráveis tornando- as, cada vez mais, eficazes no cumprimento de seus objetivos. Tomemos o salto em altura, em que os atletas tentam superar uma barra horizontal colocada na altura escolhida. Na primeira técnica desenvolvida nesta modalidade, o estilo tesoura, o atleta atacava a fasquia primeiro com uma das pernas e depois o restante do corpo. Muitas mudanças incidiram sobre esta técnica inicial, revolucionando-a quando os atletas passaram a saltar superando a fasquia curvando as costas, passando por último com as pernas. Com o apuramento e refinamento da técnica, os resultados melhoraram, recordes foram quebrados, definindo a utilização da técnica, de um estilo ou outro, a partir da eficiência apresentada.

De outro modo, Norbert Elias nos auxilia a compreender o papel desempenhado pelas técnicas corporais na vida pessoal e social ao destacar, a partir do estudo da sociedade de corte na Alta Idade Média, que certas técnicas corporais guardam em si um valor distintivo, diferenciando as pessoas “finas” da corte dos “grosseiros”. Dizia o poema de Tannhauser: “Um homem refinado não deve arrotar na colher quando acompanhado. É assim que se comportam pessoas na corte que praticam má conduta”, “não é polido beber no prato, embora alguns que aprovam esse grosseiro hábito insolentemente levantem o prato e o sorvam como se fossem loucos” (ELIAS, 1994b, p. 96). Não obstante, identifica que certas técnicas corporais são, lentamente, investidas de sentimentos de vergonha e repugnância na vida pública até tornarem-se âmbito exclusivo do privado28 (ELIAS, 1994b).

Maior volume e complexidade das técnicas corporais mantém estreita relação com a transformação do comportamento humano, de forma que, quanto mais avançada uma sociedade, maior a exigência por

28 Norbert Elias mostra em sua pesquisa como os hábitos de assoar e escarrar vão sendo excluídos lentamente, da cena pública. Os manuais de comportamento e civilidade, os tratados, os poemas, atestam às mudanças em relação a estes hábitos, que adquirem, vagarosamente, restrições e regras, até tornarem-se âmbito do privado e serem excluídos das relações sociais. Para o autor, “Os hábitos são condenados cada vez mais como tais, em si, e não pelo que possam acarretar a outras pessoas. Desta maneira, impulsos ou inclinações socialmente indesejáveis são reprimidos com mais rigor. São associados ao embaraço, ao medo, à vergonha ou à culpa, mesmo quando o indivíduo está sozinho. Grande parte do que chamamos de razões de 'moralidade' ou 'moral' preenche as mesmas funções que as razões de 'higiene' ou 'higiênicas': condicionar as crianças a aceitar determinado padrão social. A modelagem por esses meios objetiva tornar automático o comportamento socialmente desejável, uma questão de autocontrole, fazendo com que o mesmo pareça à mente do indivíduo resultar de seu livre arbítrio e ser de interesse de sua própria saúde ou dignidade humana.” (ELIAS, 1994b, p. 153).

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técnicas corporais refinadas e diversificadas. Essa exigência, cada vez maior, é uma espécie de legado da sociedade para as novas gerações e atinge a infância desde muito cedo, fazendo com que as crianças aprendam técnicas específicas e os momentos adequados para utilizá- las. A incorporação delas proporciona maior autonomia às crianças, possibilita que façam algo que antes dependiam da intervenção adulta, como por exemplo, comer com talheres ou ir ao banheiro sozinhas. As técnicas corporais constituem-se, portanto, como necessidade iminente para uma vida adulta e autônoma, como pré-requisito para ser inserido na sociedade e desempenhar a função social de um adulto.

Como toda criança será um adulto (a menos que sua vida seja abreviada pelo falecimento precoce) e todo adulto foi criança, as técnicas corporais devem ser entendidas e trabalhadas a partir desse contexto histórico da vida humana. Do contrário, novamente correríamos o risco de esperar das crianças o que não podem cumprir. Certas técnicas corporais exigem amadurecimento do organismo e não podem ser realizadas por crianças muito pequenas. Por exemplo, a técnica de saltar exige que a criança fique na posição ereta e tenha força suficiente para projetar seu corpo acima do chão, e isto não o pode ser esperado, por exemplo, de um bebê de 5 meses.

Nos momentos do parque, as técnicas corporais parecem desempenhar funções diversas, possibilitando que as crianças controlem suas necessidades fisiológicas, mantenham-se higienizadas (como no caso de assoar o nariz), são também potencializadores das experiências infantis. Por meio da incorporação de tais técnicas, as crianças valem-se delas em suas brincadeiras, proporcionando que brinquem no campo imaginário com técnicas que utilizam ou veem, como alimentar um bebê com talheres ou confeccionar um bolo com a areia.

As técnicas corporais desempenham, portanto, uma função civilizadora nos processos de socialização, o contato e as brincadeiras com tais técnicas promovem uma forma de relação das crianças com a sociedade, um diálogo mudo entre a elas e a maneira como os adultos vivem, desencadeando práticas condizentes com o conhecimento e os hábitos disponíveis no âmbito de determinada sociedade.

Esta questão também é tratada por Walter Benjamim quando discorre sobre a relação entre o jogo e os hábitos. Para ele:

[...] é o jogo, e nada mais, que dá à luz todo hábito. Comer, dormir, vestir-se, lavar-se devem ser inculcados no pequeno irrequieto de maneira

lúdica, com o acompanhamento do ritmo de versinhos. O hábito entra na vida como brincadeira, e nele, mesmo em suas formas mais enrijecidas, sobrevive até o final um restinho de brincadeira. Formas petrificadas e irreconhecíveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro terror, eis o que são os hábitos. (BENJAMIM, 2009, p. 102).

Seguindo as sugestões de Benjamin, a relação entre as técnicas corporais e as brincadeiras infantis antecede a incorporação de todo hábito, a técnica é experimentada pela criança na brincadeira e a brincadeira auxilia a criança compreender o papel social das técnicas. A figura do pequeno irrequieto é domada pelos hábitos que se instauram lentamente.

Técnica, brincadeira e hábito formam um esquema complexo que sofre com interpretações equivocadas no contexto da Educação Infantil. Há no cotidiano uma equivocada ideia de que a técnica coíbe a criatividade e espontaneidade das crianças. A relação entre estes elementos é muito mais íntima e se opõe ao equívoco citado, pois, o domínio da técnica é o domínio do próprio corpo, o mesmo que é o primeiro brinquedo da criança. Brincar pressupõe a instrumentalização técnica, mesmo a brincadeira mais simples é possibilitada pela técnica; experimentá-la é uma brincadeira. Neste sentido, a técnica se torna um elemento fundamental e libertador, na medida que as crianças se munem das variadas técnicas corporais também absorvem os perigos, seus usos sociais e as possibilidades plurais de brincadeiras que elas autorizam ou promovem.

Apesar de ser fundamental na potencialização das brincadeiras infantis e, por conseguinte, na constituição dos hábitos, posteriormente, a técnica não deve ser entendida como a finalidade do processo educativo, é, antes de tudo, o meio pelo qual a criança promove sua brincadeira, fornece subsídios para as crianças criarem maneiras peculiares de brincar.