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A RESISTÊNCIA PRESENTE NOS MOVIMENTOS COMPLEXOS NÃO AUTORIZADOS:

5. O CASO DAS 'CRIANÇAS DO CAIC': CORPOSSUJEITOS, PODER

5.2. A RESISTÊNCIA PRESENTE NOS MOVIMENTOS COMPLEXOS NÃO AUTORIZADOS:

Repensando a experiência vivida com as crianças no CAIC, percebo, hoje, que a ação das crianças e a falta de ação dos professores evidenciavam um momento em que o poder disciplinar era confrontado através da desordem. Nesse momento, ficavam explícitos os limites na ação dos professores sobre o outro, sujeito a ser normalizado. O caos configurado pelas crianças, que realizavam movimentos complexos e valorizados em um contexto desordenado, que deveria ser reprimido, ressalta na reflexão a constituição e emergência dos processos de resistência.

Embora fossem ações corporais de extrema habilidade, não estavam sendo executadas dentro dos espaços e tempos reservados e esquadrinhados no formato escolar; portanto, não tinham legitimidade e eram desqualificadas e identificadas como atitudes a serem reprimidas e remodeladas. Nossa perplexidade diante das ações das crianças demonstra o despreparo para lidar com: a complexidade do cotidiano; a diluição do poder do saber que deve, necessariamente, emanar do professor para o aluno e nunca do aluno para o professor; as diferenças na forma da constituição da subjetividade humana, entendendo-a como um processo em que sempre estarão presentes a auto-eco-organização de sistemas autopoiéticos, tendo a deriva estrutural como elemento fundamental; a comunicação humana, entendendo-a como um processo que, por comportar ruídos, exige diálogo permanente.

O poder disciplinar presente nas escolas, especialmente aquele relacionado à corporeidade dos sujeitos escolares, demanda atitudes, por parte dos professores e demais autoridades, de controle e modelagem das ações permitidas e proibidas aos alunos. No entanto, o cotidiano escolar nos vai mostrando que, por mais forte e eficaz que seja o poder disciplinar, sempre existem brechas por onde a vida escorre. A riqueza dos estudos com os cotidianos desponta exatamente nos momentos em que nos damos conta de que a complexidade dos acontecimentos e fatos sociais nos indica que não existem determinações

prévias nas ações humanas, embora haja os contextos sociohistóricos e culturais que balizem essas ações.

Recorro a Certeau (1994) para compreender as formas de resistência, as astúcias e as táticas dos sujeitos ordinários frente a um poder que parece a tudo querer e poder controlar. Busco compreender não só o movimento da escola de disciplinarização dos corpos infantis, mas como as ‘crianças do CAIC’ se relacionavam com a ação escolar.

A tática é movimento dentro do campo de visão do inimigo, e no espaço por ele controlado. Ela não tem portanto a possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o adversário num espaço distinto, visível e objetivável. (...) Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. (...) Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia (op. cit.: 100-101).

Certeau remete-se às muitas maneiras de fazer dos sujeitos ordinários como forma de representar as táticas. Refiro-me principalmente a uma delas, a qual considero ter relação direta com a questão da corporeidade no ambiente escolar e, em especial, com o caso em discussão: as maneiras de ocupação do espaço. Certeau afirma que, ao caminhar, o sujeito (re)faz o espaço.

As práticas espacializantes ou caminhadas dos sujeitos que lhes permitem converter o lugar em espaço dão conta de uma infinidade de inter-relações que são inapreensíveis a um olhar que deseja a totalidade das ações. Por outro lado, evidencia diversas formas de ocupação dos espaços que caracterizam o rompimento dos limites do determinado, autorizando a criação de práticas sociais. Para explicar melhor essas práticas espacializantes, Certeau utiliza duas imagens simbólicas: o mapa e o percurso.

Mapa seria um relato autorizado, em linguagem científica, dos lugares, definido geometricamente sob a forma de um quadro, onde se vê o lugar relatado. Essa noção aproxima-se da idéia da arquitetura vigilante, panóptica, citada por Foucault. O percurso, diferentemente, é relatado no movimento de quem vai ao local e refaz, na própria ação de seu corpo, o espaço pelo qual percorre.

Os dois formatos dão conta de relatar lugares e espaços; porém, os elementos de que fazem uso para o seu relato fornecem um material de características extremamente distintas. Se o mapa permite a visualização de uma aparente totalidade, com traçados retilíneos e

medidas geométricas, na tentativa de capturar o todo através do relato dos lugares, o percurso traz a ‘feitura dos espaços’, e, ao fazê-lo, expõe a impossibilidade da visão de totalidade, de verdade e de vigilância total alardeada pelos mapas, dando visibilidade à criatividade dos sujeitos e tornando os lugares ‘espaços praticados’.

Essas maneiras de fazer o espaço indicam que cada sujeito, ao traçar com seu próprio corpo os caminhos percorridos, vai escrevendo nos lugares e inscrevendo em si mesmo espaços sempre diferenciados, que são marcas particulares e únicas de cada sujeito e de suas inter-relações. Se existem os lugares arquitetonicamente organizados, esses mesmos lugares podem vir a se tornar espaços a serem percorridos e traçados pelos diversos sujeitos que se entrecruzam e lhes dão significado e sentido.

A escola aparece novamente como local privilegiado de formação iniciática desta moldura corporal ou da vigilância panóptica do poder disciplinar, no dizer de Foucault. Os mapas escolares indicam categoricamente a correta utilização de cada ambiente. Temos, portanto, locais do conhecimento e locais da ludicidade; locais do silêncio e da fala; locais do consenso e do conflito; locais de concentração e de dispersão.

Sua proposta de rotina de aulas, recreios, divisão e utilização dos lugares, etc, parece obedecer a um formato baseado em códigos jurídicos e científicos de enquadramento das crianças e jovens através também de seus corpos. Não basta, portanto, que os movimentos sejam perfeitos; é preciso que se inscrevam nos espaços, tempos e modos previstos nos planejamentos, norteados pelos mapas. Assim, movimentos perfeitos em tempos e espaços irregulares são desqualificados.

Entretanto, nas práticas dos sujeitos, esse enquadramento não se dá sem contradição. As contorções e violências dos corpos e a decifração das leituras cruzadas vão denunciando o domínio e anunciando a resistência. Ações plurais, as quais Certeau denomina enunciações, muitas vezes inapreensíveis a observações menos atentas, integram errâncias, astúcias e práticas de oposição que fundamentam as táticas dos sujeitos e a feitura de percursos que transformam os lugares em espaços percorridos. Tais operações se fazem presentes desafiando o poder, fazendo emergir novos textos em novos corpos e ultrapassando as fronteiras do previsto.

Se Foucault nos permite compreender as novas formas de exercício do poder que, desde o século XVIII, utilizam-se dos corpos como alvo para imprimir fortes marcas de submissão na subjetividade humana e em seus respectivos movimentos contra-ofensivos, Certeau nos oferece possibilidades de pensar em como esses movimentos contra-ofensivos estão presentes também nas diversas formas de resistência expressas na arte de fazer e viver

dos sujeitos em suas práticas cotidianas. Se o poder disciplinar fosse uma enorme mão que tentasse apertar uma massa em sua totalidade, as astúcias e táticas seriam as formas de algumas partes da massa escaparem por entre os dedos, constituindo outros diferentes conjuntos, que, apesar de continuarem com a mesma composição dos ingredientes da massa, no movimento de escaparem vão se diferenciando, afirmando-se em suas diferenças enquanto outros.

Pode-se dizer que essa seria uma questão central da dificuldade da escola, e especialmente da Educação Física, em aceitar e entender as ações das crianças do CAIC como resistências, gingas e, portanto, como conhecimento e em entender e aceitar que os sujeitos possuem diferentes percursos existenciais que lhes possibilitam igualmente diferentes formas e expressões de vida, e que isso pode ser entendido como expressão e produção de conhecimentos. Isso significa ainda abrir mão da idéia de conhecimento como manifestação exclusiva de um quantitativo de conteúdos; abrir mão da idéia de conhecimento verdadeiro e único; abrir mão da idéia de conhecimento como manifestação exclusiva da cognição; abrir mão das tentativas homogeneizadoras, buscando aceitar o outro como legítimo outro e não como uma forma diversa de ser o mesmo (SKLIAR, 2003); entender como conhecimento outras manifestações ou respostas ao mundo que não sejam aquelas de exclusividade do projeto de sociedade da classe dominante.

No ambiente escolar a busca constante pela classificação dos sujeitos a partir da eleição do que é determinado como padrão, especialmente através das respostas e ritmos de aprendizagem iguais, vai sendo imposta pela constante comparação, hierarquização e, por fim, exclusão daqueles considerados inadaptados e incapazes. Vão se firmando os lugares, fixados por hierarquia, daqueles alunos considerados dentro do padrão, que aprendem o que deve ser aprendido e o que é importante aprender; e os lugares dos inadaptados, fora do padrão, que não conseguem aprender o conteúdo escolar e, portanto, passam a ser considerados os incapacitados para a aprendizagem, sendo invisibilizadas as suas outras capacidades e aprendizagens.

O ambiente escolar, ao promover a classificação dos alunos por meio do modelo padrão, vai exercendo o papel de controle dos sujeitos através de um poder autorizado e, de certa forma, valorizado socialmente. Premiando os que se aproximam do modelo e sentenciando os que dele se afastam, a instituição escolar vai colocando em funcionamento operações de exercício do poder disciplinar com vistas à normalização social referida por Foucault. Relacionam-se os atos individuais; diferenciam-se os indivíduos a partir desses atos;

classificasse-os a partir da medida hierárquica de maior ou menor proximidade com o padrão. Essas são ações que coagem sem necessariamente punir; normalizam sem reprimir; enquadram sem castigar; excluem sem homogeneizar.

Compreender as estratégias utilizadas por um poder que não tem face (FOUCAULT, 2005), mas que engendra suas teias na própria formação da subjetividade; que está em todos os lugares e em parte alguma; que invade não simplesmente os comportamentos dos sujeitos através de castigos, mas de suas vontades, de suas ambições, de seus desejos mais íntimos, primitivos e privados, parece-me fundamental para darmos conta de compreendermos a vigilância à qual todos estamos expostos e expomos os outros. No entanto, o caráter totalizador que muitas vezes damos a esse poder não nos auxilia a potencializar as condições e capacidades de resistência, criação, produção e socialização de conhecimentos que se viabilizam e se exibem, especialmente no cotidiano escolar.

Parece urgente, portanto, perceber que, por mais paradoxal que pareça, muitas vezes é através da corporeidade que as crianças articulam suas astúcias e suas táticas para livrarem-se da submissão a que estão expostas pelo poder disciplinar no ambiente escolar. Aos mapas fixados e determinados de ocupação e esquadrinhamento dos lugares, os sujeitos escolares respondem com a feitura de espaços inusitados e repletos de criatividade. Os movimentos das crianças do CAIC vão nos mostrando mais do que pujantes habilidades: resistência e criação ancoradas numa feitura própria dos lugares predeterminados. Transformando os lugares em espaços praticados, vão percorrendo, marcando e transformando os mapas escolares; inscrevendo, através da sua corporeidade, uma história que, embora possua um contexto sociocultural comum, possui igualmente a singularidade dos sujeitos e das redes criadas pelas relações que estabelecem.

É ainda Morin (1975:82) quem nos ajuda a compreender a função das transgressões e rebeldias juvenis, a partir de um núcleo cultural comum, como fontes de criação das variações e das novidades. Desde os hominídeos, a reprodução cultural se beneficiou das transgressões infanto-juvenis para operarem diversificações progressivas e regressivas na cultura. A alta complexidade do humano se relaciona diretamente ao grande tempo de exposição ao aprendizado cultural da infância e da juventude, o que indica um importante ponto de diferenciação entre o humano e os demais animais. Assim, apesar de todo o trabalho educativo de inserção em uma determinada cultura e do aprendizado dela, é típico e saudável apresentar comportamentos transgressores e rebeldes nessa fase da vida, embora não se tenha

nunca a certeza de que esses comportamentos farão desencadear variações progressivas ou regressivas no indivíduo ou na sua sociedade.

De qualquer forma, as transgressões nos indicam a impossibilidade de controle total das ações e atitudes humanas. O cotidiano demonstra a enorme riqueza de possibilidades que podem ser exploradas pela escola, tomando a diferença não como problema, mas como fonte abundante de possibilidades. Ampliam-se, portanto, as alternativas de trabalhos potentes para o mundo escolar. Enxergar transgressões como potência de aprendizado e não apenas como problema a ser simplesmente disciplinado e reprimido pode permitir um outro trabalho com as crianças, de efetiva ampliação das possibilidades individuais e coletivas de criação, produção e socialização dos conhecimentos.

Considerando ser o sujeito formado a partir das diversas possibilidades (deriva) que lhe são disponibilizadas através das inúmeras redes tecidas entre suas potencialidades biológicas e sua inserção sociocultural, entendo ser fundamental estarmos em permanente diálogo quando nos dispomos a exercer uma função pedagógica. Exercendo-a, busca-se fazer com que esse diálogo, em sua radicalidade, ocupe lugar central em todas as esferas da prática pedagógica e impulsione o reconhecimento da incontestável irredutibilidade do outro.

Ao revisitar o cotidiano escolar durante a pesquisa de campo, pude dialogar com os professores sobre esse assunto. Foi particularmente interessante perceber como a corporeidade nesse cotidiano está envolvida num jogo de visibilidade e invisibilidade, evidenciando as dificuldades que a escola enfrenta para compreender as resistências que as crianças apresentam ao poder exercido sobre elas, muitas vezes sem disso se dar conta. O reflexo mais nefasto desse esquema parece ser o jogo de culpabilização que os sujeitos escolares vivenciam frente à ‘babelização’ que parece reinar entre professores e alunos, cuja mais visível conseqüência é o aparecimento, o aumento e a ‘fabricação’ de determinadas doenças, tanto de professores quanto de alunos.