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R ENASCENÇA : A DESTRUIÇÃO DA SÍNTESE ARISTOTÉLICA

2. EPISTEMOLOGIA DA COMPLEXIDADE

2.2. A CIÊNCIA MODERNA E A HEGEMONIA DA RAZÃO

2.2.2. R ENASCENÇA : A DESTRUIÇÃO DA SÍNTESE ARISTOTÉLICA

O Renascimento foi um momento histórico caracterizado, sob o ponto de vista filosófico e científico, por manifestações que correram à margem da evolução da ciência moderna. No entanto, as elaborações renascentistas tiveram grande importância para que o pensamento humano pudesse promover a ruptura com a cosmologia medieval, redimensionando o universo e a existência do homem.

Segundo Koyré (1991), a grande obra da Renascença foi a destruição da síntese aristotélica. Por mais paradoxal que pareça, a destruição não foi animada por um ideal científico, mas retórico. Sua marca fundamental foi o encontro com outras dimensões do conhecimento humano, como as magias, superstições e credulidades sem limites. O testemunho passou a ser a prova maior da veracidade dos fatos; o possível se sobrepôs ao real. O espírito renascentista ligava-se a ideais aventureiros que contribuíram para conduzir os homens à busca por novos mundos e à descoberta de novidades, tanto relacionadas a outras terras além-mar quanto a novas invenções e formas de expressão e vida. Do antigo apego aristotélico ao concreto e ao exacerbado senso de realismo passou-se, nessa época, à concepção inversa, em que o abstrato e o irreal se tornaram os fundamentos principais. Koyré acrescenta que “sempre que uma coleção de fatos e uma acumulação do saber se fizerem suficientes, sempre que se pôde prescindir de teoria, o século XVI produziu coisas maravilhosas” (1991:48).

A ausência de teoria a que se refere o autor se relacionava, fundamentalmente, à ruptura ocorrida no período com a cosmologia da Idade Média. A falta de uma outra ontologia que pudesse delimitar critérios valorativos permitiu que os homens ficassem, temporariamente, sem paradigmas sistematizados que estabelecessem as comprovações das verdades dos conhecimentos produzidos. Entretanto, a ciência moderna beneficiou-se da

desestruturação da hierarquia aristotélica provocada por essa atmosfera mágica e, inspirando- se em fontes filosóficas da Antigüidade, principalmente Platão, revolucionou o pensamento humano.

A cosmologia aristotélica medieval baseava-se em princípios opostos aos da ciência emergente do século XVII. Na física aristotélica, o espaço do universo fora da Terra era constituído por uma matéria de natureza diferenciada. Os movimentos do mundo dos astros eram causados por fatores de ordem metafísica; as características dos corpos celestes determinavam seus lugares fixos e estáveis no universo. Dominava, por fim, uma concepção geocêntrica do Cosmos, baseada na idéia de que a Terra era o corpo celeste mais pesado dentre os existentes. Daí ocupar o centro do Cosmos.

Koyré observa que “foi justamente a concepção inversa que abriu caminho aos diversos sistemas astronômicos que se opuseram à concepção aristotélica e nos quais o ponto de vista físico substituiu gradualmente o ponto de vista cosmológico” (1991:50). O raciocínio que emergiu com os estudos de Copérnico identificava na Terra e nos demais astros a mesma estruturação; rompia, ainda, com a idéia de estática, comprovando o movimento circular característico dos corpos celestes.

A teoria coperniciana apresentou-se como fundamental na medida em que, ao comprovar o movimento e a identificação das matérias do mundo sub e supralunar, desestruturou decisivamente o ideal hierarquizado e estático da cosmologia medieval. Abriu- se caminho para que a contestação ao Cosmos se apresentasse através de cada vez mais elaboradas teorias e descobertas, iniciando o percurso para a consolidação de uma nova forma de produzir os conhecimentos humanos.

Nessa perspectiva, a grande contribuição da Renascença foi a de ter possibilitado aos homens um instrumental mental capaz de lhes permitir revolucionar a compreensão do universo e de os incentivar a novas descobertas. A geometrização e a matematização, como linguagens para entender o mundo, típicas da ciência moderna, emergiram como resultado da revolução mental. O ambiente e o espírito fantástico do Renascimento, aliados às descobertas marítimas, bem como à volta aos escritos genuínos dos filósofos antigos, especialmente os de Platão, favoreceram enormemente o modelo de ciência então emergente. Enfim, tais características formavam, em conjunto, a especificidade fundamental deste momento histórico vivido pela humanidade.

Nesse cenário renascentista, a visão de corpo se modificou, acompanhando a forte atmosfera aventureira e mágica que pairava sobre o mundo. Brandão (2003) adverte que, apesar de isso valer para qualquer época histórica, especialmente para o Renascimento, seria

leviano e equivocado considerar uma única perspectiva de corpo, visto serem tantas as modificações e de tamanha dimensão.

No entanto, ele sugere ser a grande novidade do período o despojamento na observação do corpo humano em oposição à simples descrição a partir de um ideal divinizado, como se fazia na Idade Média. Essas mudanças, para além de produzirem uma ciência sobre o corpo, tornaram-se fontes para a nova ciência que se desenvolveu anos mais tarde.

No Renascimento, tanto na medicina como na arte, é possível observar uma forte ruptura com os pressupostos sacralizados da Idade Média. Brandão (2003:293) assim expressa o momento:

O corpo medieval era habitado por uma alma divina com a qual o artista, o cientista e o intelectual, fazendo-se análogos de Deus, acreditavam fundir-se ao produzir suas obras. Para isso, eles renunciam ao princípio da subjetividade e subordinam-se a uma lei heterônoma na qual o indivíduo se vê compreendido. O Renascimento dessacralizou esse corpo, juntamente com a natureza, o espaço e o tempo. Para isso aquela alma divina foi substituída pela alma do éthos, da natura e do páthos. (...) O que resta do corpo é o resíduo sobre o qual a ciência moderna se erguerá: um corpo sem alma e reduzido à mera facticidade. Esse corpo se expressa tanto na res

extensa de Descartes como na representação que lhe dá o médico holandês

nas suas lições em Pádua e nas figuras de seus livros. (...) Esse corpo, desprovido até mesmo da morte, proverá a ciência, a arte e a filosofia modernas.