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ENIGMAS COTIDIANOS: OUTROS SIGNIFICANTES PARA TOMÁS

4. O CASO DE TOMÁS: OS SUJEITOS, AS REDES E A TESSITURAS DO

4.1. ENIGMAS COTIDIANOS: OUTROS SIGNIFICANTES PARA TOMÁS

Compartilho da idéia de que o que move a pesquisa com os cotidianos se encontra nos atos humanos, nas ações, nas maneiras de fazer, nas formas de viver, na rotina invisível e considerada equivocadamente, banal, sem importância porque naturalizada. Subvertendo as verdades intransponíveis e tentando identificar e valorizar detalhes pouco reconhecidos, vamos deixando emergir enigmas (PAIS, 2003) que desafiam compreensões que se ocupam exclusivamente de teorias gerais sobre o social. Procuramos ver nos desvios e no aparentemente repetível e trivial dia-a-dia as brechas epistemológicas que permitem ao pesquisador ampliar a compreensão de como a vida se faz no cotidiano e auscultar realidades menos tangíveis.

Os enigmas cotidianos, no dizer de Pais (op. cit.), estão postos numa dimensão do real não facilmente identificável, já que os significados que atribuímos à realidade estão, muitas vezes, ancorados em signos sociais compartilhados por um coletivo que tende a naturalizar os fatos sociais, e que, ao fazê-lo, vai escondendo e invisibilizando outros possíveis significados. Embora esses significados atribuídos coletivamente sejam construções que possuem validade significante, isso não implica serem as únicas leituras possíveis do real. A cada significado dado a uma realidade é possível desdobrar novas leituras e, portanto, atribuir-lhe novos significados.

Reconhecer e desvendar enigmas implica, então, mergulhar com todos os sentidos, e não apenas com a cognição, no cotidiano, buscando outras formas de perceber o mesmo;

reconhecer e acolher a diversidade de significantes; acreditar que cada ato cotidiano possui dobras invisibilizadas que, ao serem desdobradas, revelam faces ocultas que permitem outros significados para o real.

É assim que considero ser possível entender as ações de Tomás como enigmáticas. Ao reconhecer que existe ambivalência em seu comportamento no ambiente escolar, ou seja, que tanto é real o seu fracasso num determinado espaço quanto o seu sucesso em outro, vamos desdobrando esse sujeito, complexificando-o, diluindo a idéia e o lugar engessado do saber e do não saber no cotidiano escolar, ampliando o espaço para que as diferenças se exponham e sejam plenamente legitimadas e valoradas com mais eqüidade. Uma outra leitura sobre esse sujeito pode aparecer enriquecendo a compreensão acerca dele e possibilitando intervenções mais eficazes.

Entendendo, portanto, o cotidiano como esse espaço/tempo em que os atos enigmáticos estão dispostos e se constituem em redes culturais e intersubjetivas - muitas vezes minúsculas e invisíveis - que se movem e nas quais os sujeitos fabricam diversas ‘maneiras de fazer’ e artes de viver e conhecer, vou me perguntando: quem é Tomás? Quem é esse sujeito que, sem saber e sem ser visto pela escola, escancara com tanta naturalidade as suas próprias ambivalências, deixando à mostra, igualmente, as ambivalências da própria escola que, ao mesmo tempo o acolhe e o rejeita? O que ele vai expondo ao participar dos jogos, ao organizar seu time, ao conseguir perceber, antecipar e defender as jogadas e ataques de seus adversários? Onde conseguiu compor essas maneiras de ver, de ser e de fazer? O que ele expõe ao mostrar-se incapaz de fazer corretamente os exercícios escolares, de aprender os conteúdos ensinados?

Da mesma forma, pergunto-me: que instituição histórico-social é essa que, tendo legalmente como função primordial oferecer educação, informação e conhecimento a todos, sem distinção de sexo, raça, cor, religião e classe social, não consegue ver em seu interior a riqueza das diferentes formas de expressão e redes de conhecimento expostas pela heterogeneidade de seus sujeitos? De que forma essa importante instituição social – a escola - pode ser um espaço/tempo de ampliação das capacidades, das escolhas, das potencialidades individuais, com a valorização das diferenças e o respeito à coletividade?

Na tentativa de entender um pouco mais acerca das ambivalências que percebo em Tomás e nas escolas, parece-me necessário discutir duas noções fundamentais: a de sujeito e a de ‘tessitura do conhecimento’. Qual noção de sujeito pode comportar a idéia de ‘viver no conhecimento e conhecer vivendo’ propalada por Maturana & Varela e a de ‘tessitura do

conhecimento’, (ALVES e OLIVEIRA & AZEVEDO, 2001) por meio das quais venho desenvolvendo essa pesquisa?

Para discutir as possibilidades de pensar outras prováveis ‘tessituras do conhecimento’ que acontecem em redes de relações nas quais, de forma recursiva, os ‘corpossujeitos’ se auto-organizam e se autoproduzem, organizando, produzindo e sendo produzidos ao mesmo tempo pelos fios da trama cultural e sócio-histórica à qual estão enredando e sendo enredados, buscarei tensionar a noção de sujeito essencialmente racional da modernidade. Mesmo sabendo dos possíveis equívocos e distorções em que posso incorrer, arrisco-me a entrecruzar algumas idéias desenvolvidas especialmente por Morin (1975, 1996), Maturana & Varela (2001) e Assmann (1998).

Assumo que a tessitura da noção de sujeito com a qual dialogo figura-se como uma dentre outras possíveis, elaborada a partir da leitura e articulação dos autores que elejo. Considero ser o risco da certeza e do fechamento de um conceito pior e mais nefasto para o tipo de pesquisa que me proponho a fazer do que o risco do equívoco.

As metodologias de pesquisa que primam pela objetividade e neutralidade do pesquisador consideram ser necessário, a priori, instituir os percursos da pesquisa, bem como definir as categorias que serão utilizadas para análise dos dados coletados, que irão confirmar ou negar as hipóteses predeterminadas. Ao fechar um conceito ou determinar uma categoria de análise para a compreensão do ‘objeto’, o pesquisador é levado a focar sua atenção muito mais nas categorias de análise do que nos sujeitos sobre/com os quais pesquisa. É como pensar a realidade antes de vivê-la; estabelecer possibilidades para essa realidade sem levar em consideração os sujeitos e suas incontáveis maneiras de ser e de fazer; determinar a existência a partir de dados preestabelecidos que sempre serão menos ricos do que a própria existência.

Diferentemente desse modo de proceder e pesquisar, a metodologia de pesquisa com os cotidianos implica tecer compreensões e conhecimentos na realidade e com os sujeitos que nela habitam, possibilitando diferentes formas de intervenção. Como pesquisadora e fazendo uso dessa metodologia, estou mais interessada, no contexto em que pesquiso, em indagar sobre as possíveis tramas que vão enredando suas/nossas subjetividades, numa tentativa de pensar outras prováveis intervenções no ambiente escolar, fundamentalmente aquelas relacionadas à disciplina Educação Física.

Utilizar a metodologia da pesquisa com os cotidianos significa estar aberta para que a necessidade de discussão das noções apareça à medida que mergulho no cotidiano e encontro

o imponderável, o acontecimento, o inusitado e inexplicável. Não iniciei essa pesquisa pensando em discutir a noção de sujeito. Porém, ao me deparar com a ambivalência do comportamento de Tomás, me vi diante de um enigma. A noção de sujeito, de conhecimento e de construção de conhecimento com a qual vínhamos trabalhando na escola não comporta a ambivalência: ou o sujeito sabe o que tem valor na escola e tem sucesso escolar ou ele não sabe e, portanto, fracassa e é reprovado. Da mesma forma, essa noção não comporta a idéia de que existam conhecimentos considerados importantes expressos corporalmente.

A escola, e nela me incluindo, não foi capaz de ver em Tomás um sujeito com conhecimentos significativos. No entanto, quando complexificamos as noções de sujeito, de conhecimento e de tessitura do conhecimento, tornamo-nos capazes de articular as ações de Tomás, desdobrando as conclusões elaboradas a seu respeito. Passamos a entendê-lo a partir de sua complexidade, da qual fazem parte a pluralidade (multiplicidade) e a singularidade (unicidade) própria de cada ser humano, composta por sua história de vida, que envolve uma complexa trama bio-sócio-cultural.

Assumindo os riscos, alerto, portanto, para a provisoriedade e dinamicidade própria de qualquer noção sobre a qual estaremos ancorados, o que traduz nossas/minhas possibilidades e limites de compreensão e aprofundamento para cada momento.