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A RESPONSABILIDADE DOS JUÍZES NA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

O principal marco de processo de redemocratização do Brasil, em fins do século XX, foi a elaboração da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A Assembleia Constituinte tinha alguns objetivos claros, especialmente o de romper com o intervencionismo do Executivo no funcionamento dos demais poderes, afastando as práticas de pressão e ingerência do governo sobre o funcionamento dos poderes Legislativo e Judiciário e assegurando a independência harmônica entre os poderes, bem como o de promover as liberdades individuais das pessoas.

Em decorrência dessa circunstância, a Constituição de 1988 assegurou ao Poder Judiciário autonomia administrativa e financeira. Rejeitou-se a sujeição dos agentes judiciais às pressões políticas dos demais poderes em troca de recursos, bem como se assegurou a independência funcional dos magistrados. Tais decisões rompiam, assim, com o modelo de limitação das liberdades dos juízes, tendo em vista a possibilidade de suspensão de todos os seus direitos funcionais pelos militares, com aplicação de "penalidades" em caso de entendimentos contrários ao regime militar.

Nesse sentido, foi destacado capítulo exclusivo no texto constitucional (Capítulo 3 do título 4 da Constituição) para disciplinar as atividades, deveres e garantias do Poder Judiciário. Expressamente é destacada no art. 99 a autonomia administrativa e financeira aos Tribunais, permitindo autonomia orçamentária. Assegurou-se, também, a independência funcional aos magistrados, com a previsão das garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos (art. 95) e das regras e hipóteses para promoção funcional (GARCIA, 2014, p. 142). Reduzia-se, por meio dessas garantias, o poder de influência dos demais poderes sobre o trabalho dos juízes. Entretanto, para solidificar a democracia, não bastam a independência e a autonomia jurisdicional; os magistrados precisam exercer suas funções de forma íntegra, respeitando a confiança que lhes é depositada pela sociedade, como detentora do poder constitucional.

The judiciary needs to be independent of outside influence, particularly from political and economic powers. But judicial independence does not mean that judges and court officials should have free rein to behave as they please. Indeed, judicial independence is founded on public trust, and to maintain it, judges must uphold the

highest standards of integrity (TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL, 2007, p. 40).24

Provavelmente em razão do fim do período ditatorial, de maior intensidade da interferência na atuação dos magistrados e da utilização do instituto da responsabilidade como forma de pressão política, os constituintes entenderam que não seria razoável, para o momento político, prever especificamente a responsabilidade dos juízes. Apenas se registrou, de forma ampla, a responsabilidade de todos os funcionários públicos. Entretanto, estabeleceu-se que a responsabilidade é regressiva em relação ao Estado e somente há de se falar em responsabilidade civil do servidor público nas situações em que ele atua com dolo ou culpa.

Somente o Estado é responsável perante as vítimas de evento danoso, cabendo a esse, se entender adequado, responsabilizar regressivamente o funcionário público que praticou o evento danoso, mediante procedimento com observância das garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório.

O Supremo Tribunal Federal possui entendimento25 pacificado de que o art. 37 da Constituição, ao prever a responsabilidade subsidiária dos agentes públicos, determina que eles respondam por suas condutas danosas diretamente às vítimas. Assim, somente a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado prestadora de serviço público que vier a ser responsabilizada pela vítima do evento danoso causado poderá pretender a imputação de

24 "O Judiciário precisa ser independente de pressões externas, principalmente dos poderes políticos e

econômicos. Entretanto, a independência judicial não significa que os juízes e os tribunais devam ter poderes livres a seu critério. Na verdade, a independência judicial está fundada na confiança pública e, para mantê-la, os juízes devem obedecer aos padrões mais elevados de integridade" (tradução livre).

25 "EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA

DO ESTADO: § 6º DO ART. 37 DA MAGNA CARTA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. AGENTE PÚBLICO (EX-PREFEITO). PRÁTICA DE ATO PRÓPRIO DA FUNÇÃO. DECRETO DE INTERVENÇÃO. O § 6º do artigo 37 da Magna Carta autoriza a proposição de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns. Esse mesmo dispositivo constitucional consagra, ainda, dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular. Recurso extraordinário a que se nega provimento (STF, RE n.º 327.904/SP, relator ministro Ayres Brito, Julgado em 15-08-2006 e publicado em 25-08-2006)".

Importante observar que a questão da possibilidade de responsabilidade direta dos agentes públicos perante as vítimas do dano voltará a ser analisada pelo Supremo Tribunal Federal, tendo o ministro Marco Aurélio de Melo reconhecido a repercussão geral do Recurso Extraordinário n.º 1.027.633/SP, permitindo que a referida matéria seja julgada pelo Plenário da Suprema Corte.

responsabilidade pelo referido dano ao funcionário público a ela vinculado, de modo a obter a restituição das despesas do dano.

A responsabilidade do agente público diante do Estado depende da comprovação da sua culpa ou dolo na prática do evento danoso. Isso significa que o Estado responde objetivamente perante as vítimas do dano causado por seu agente público, ou seja, a sua responsabilidade independe da prova de que o funcionário público agiu de forma deliberada, com o propósito de causar o dano (dolo), ou de forma negligente, imprudente ou sem a necessária perícia (culpa). Basta que seja provada a conduta do agente público causadora de um dano para gerar a responsabilidade. Entretanto, na via regressiva para obter a restituição de suas despesas de indenização do referido dano, o Estado precisa comprovar que seu servidor agiu com dolo ou culpa na prática do ato lesivo para poder responsabilizá-lo.

Essa é a previsão constitucional de responsabilidade aplicada aos juízes, na condição de agentes públicos e integrantes do Poder Judiciário. Além dessa previsão, o texto constitucional ainda menciona a possibilidade de os juízes responderem por crimes comuns e por crimes de responsabilidade, indicando a competência para julgar as referidas condutas a depender da autoridade que venha a cometê-la, conforme os arts. 96, III;26 102, I, alínea c;27 105, I, alínea a;28 e 108, I, alínea a.29

Apesar de o texto constitucional tratar de crimes de responsabilidade, na verdade não delimita especificamente a conduta criminosa como ilícito penal, conforme evidencia a Lei n.º 1.079/1950. Apenas indica os atos políticos considerados de maior gravidade a serem punidos

26 "Art. 96. Compete privativamente:

III - aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.

27 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I - processar e julgar, originariamente:

c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente;"

28 "Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:

I - processar e julgar, originariamente:

a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais;"

29 "Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais:

I - processar e julgar, originariamente:

a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral;"

com as penas previstas nos instrumentos normativos específicos que criam os crimes de responsabilidade. Até a presente data, não foi editada lei que defina os crimes de responsabilidade dos magistrados, havendo tipificação tão somente de crimes de responsabilidade para os ministros do Supremo Tribunal Federal.

Os crimes comuns cometidos pelos magistrados a que o texto constitucional faz referência são os ilícitos criminais que podem ser praticados na condição ou não de agente público, previstos em diversos diplomas normativos, em especial, no Código Penal.

O texto da Constituição Federal ainda estabelece, como garantia do magistrado, em seu art. 93, VIII,30 a necessidade de decisão por voto da maioria absoluta do Tribunal a que está vinculado o juiz ou do Conselho Nacional de Justiça para a aplicação de penalidades de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado por interesse público.

A responsabilidade administrativa dos magistrados, por sua vez, não foi objeto de tratamento constitucional, sendo regulada por dispositivos normativos infraconstitucionais, especialmente pela Lei Complementar n.º 35/1979, conforme será analisado posteriormente.

30 "Art. 93, VIII - o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público,

fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa [...]".