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Na nova Constituição republicana de 1891, a responsabilidade dos juízes passou a ser processada e julgada pelo Supremo Tribunal Federal, com exceção dos próprios ministros do Supremo, que seriam julgados pelo Senado Federal. Entretanto, as garantias constitucionais dos magistrados dirigiam-se apenas aos juízes federais, deixando, a princípio, os juízes locais desamparados por essa proteção. Na República, existiam duas Justiças: a federal, de competência da União, e a local, organizada pelos Estados, que também se responsabilizavam por legislarem sobre o respectivo processo. A Justiça estadual compunha-se de Tribunais de segunda instância, juízes de direito nas comarcas, Tribunais do júri, juízes municipais nos termos, juízes de paz nos distritos e, em regra, eletivos (LEAL, 2012, p. 191).

Em razão dessa ausência de proteção, os líderes oligárquicos mantiveram sua velha ascendência sobre a atividade dos juízes locais, que julgavam de acordo com as conveniências das elites.

[...] há consenso a respeito do controle oligárquico do Poder Judiciário nos estados durante a Primeira República, posto que a inexistência de garantias constitucionais da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos dos juízes estaduais era parte do compromisso político coronelista (KOERNER, 1994, p. 59).

Elucidativo é o exemplo do político da oligarquia do Rio Grande do Sul que determinou a abertura de procedimento de responsabilidade de magistrado que o desagradou:

[...] no dia 28 de março de 1896, ao abrir a sessão do Tribunal do Júri da comarca de Rio Grande, anunciou o Dr. Alcides de Mendonça Lima, seu Presidente, que deixaria de aplicar - por entendê-la contrária às Constituições federal e estadual - a lei nº 10, de 16 de dezembro de 1895, na parte referente a recusas de jurados e ao voto a descoberto, mandando observar em tais pontos a lei antiga. Veiculada a notícia na Reforma, logo no dia seguinte interpelou o autocrata presidente do Estado, Dr. Júlio Prates de Castilhos, ao juiz de direito, sobre a veracidade do fato, e, colhendo a lacônica e incisiva resposta afirmativa, ofendido nos seus brios, ordenou ao Desembargador Procurador Geral que promovesse sem perda de tempo a responsabilidade penal do juiz faltoso. E a denúncia veio logo, datada de 1º de abril [...] (NEQUETE, 1993, p. 20).

Magistrados incorformados, consoante Victor Leal (2012, p. 192), recorreram ao Supremo que entendeu aplicáveis as regras de imunidade às autoridades judiciais estaduais. No entanto, apenas na reforma de 1926 perfilhou-se o princípio: “Art. 6º O Governo Federal não poderá intervir em negócios peculiares aos Estados, salvo: [...] II) para assegurar a integridade nacional e o respeito aos seguintes princípios constitucionais: [...] i) a

inamovibilidade e vitaliciedade dos magistrados e a irreductibilidade dos seus vencimentos [...]” (grifou-se).

Os juízes temporários, porém, não se encontravam resguardos pela emenda constitucional. A numerosa categoria de juízes temporários permanecia à mercê das exigências e seduções dos governantes menos ciosos da independência e dignidade do Poder Judiciário. O poder e a influência das liderenças regionais sobre os juízes temporários, portanto, mantiveram-se significativos na Primeira República e impediram a realização da atividade judicial imparcial. Mesmo

[...] os juízes de direito, que eram bacharéis em direito e vitalícios, eram controlados pela intimidalçao e pelo favorecimento. Assim, as debilidades da organização judiciária [...] resultavam [...] do interesse das situações políticas estaduais. Este interesse determinava a ligação de juízes, promotores, serventuários da justiça e delegados de polícia no generalizado sistema de compromisso do coronelismo (KOERNER, 1994, p. 59-60).

Em razão do movimento de 1930 e da chegada de Getúlio Vargas ao poder, editou-se o Decreto n.º 19.398/30, que abalou as garantias do Poder Judiciário com a suspensão de todas as garantias constitucionais dos magistrados e alterou suas atribuições. Na Constituição de 1934, porém, as garantias da Emenda Constitucional de 1926 foram restauradas, assegurando-se a inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e vitaliciedade. A referida Constituição ainda trouxe significativas mudanças na estrutura institucional do Poder Judiciário que impactaram profundamente na responsabilização dos juízes. O texto constitucional definiu a carreira da magistratura (art. 104) e exigiu a aprovação em concurso público para ingresso nessa carreira.21 Além disso, estabeleceu o sistema de promoções, definindo os casos e os requisitos objetivos a serem observados para essas circunstâncias.

Deve-se anotar, entretanto, que a exigência de concurso público somente se aplicava aos juízes estaduais, excetuando-se os juízes federais, cuja nomeação continuava escolha pessoal do Presidente da República, a partir de lista com cinco integrantes, elaborada pelo Supremo Tribunal Federal em escrutínuo secreto, na forma do art. 80 do texto

21 Importante observar que a Constituição da República, de 1891, não trouxe a previsão de concurso público para

o ingresso na carreira da magistratura, entretanto oportunizou aos Estados a definição das regras de nomeação dos seus magistrados, tendo alguns Estados exigido, nas Constituições estaduais, concurso para a nomeação de juízes. "Na primeira república, o sistema de nomeação pelo Executivo foi mantido no âmbito da magistratura federal abrindo-se a possibilidade para o governo local, através de suas constituições, decidir sobre o melhor modelo a ser adotado pela magistratura estadual, em decorrência de seu poder de auto-organização. Assim surgiram as primeiras previsões de concurso público em algumas constituições estaduais, a exemplo da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Bahia, Mato Grosso, todas promulgadas em 1891" (PASSOS; FEITOSA, 2017, p. 139).

constitucional.22 A partir das garantias constitucionais asseguradas aos magistrados, houve sensível redução da utilização da responsabilidade judicial como forma de coação, passando os magistrados efetivamente a serem dotados de independência no exercício de sua função. Essa circunstância, entretanto, mudou no Estado Novo,23 em que Getúlio Vargas exerceu o governo de forma autoritária, outorgou a Constituição de 1937 e passou a exercer enorme controle sobre o Poder Judiciário. Houve, assim, redução das competências do Judiciário, eliminando-se a Justiça Federal de primeira instância, afastando-o da análise de questões políticas, bem como permitindo a reversão da decisão judicial que declarasse a inconstitucionalidade de determinada lei pela simples justificativa de o Presidente considerar a lei necessária ao interesse nacional.

O apequenamento do Poder Judiciário no Estado Novo pode ser representado pelo Decreto-Lei n.º 1.564/1939, que tornou sem efeito diversas decisões tanto da Suprema Corte quanto de todos os demais juízes do Brasil contrárias aos interesses da União Federal.

Artigo único - São confirmados os textos de lei, decretados pela União, que sujeitaram ao imposto de renda os vencimentos pagos pelos cofres públicos estaduais e municipais; ficando sem efeito as decisões do Supremo Tribunal Federal e de quaisquer outros tribunais e juizes que tenham declarado a inconstitucionalidade desses mesmos textos.

Deve-se registrar que o art. 171 do texto constitucional vigente permitia que o Presidente da República alterasse as regras da Constituição da República ou as ignorasse durante os períodos de estado de emergência ou de guerra – que foram frequentes – de tal modo que todas as garantias constitucionais previstas aos magistrados poderiam ser ignoradas ao talante do chefe do Executivo. Assim, pairava sobre os magistrados o receio de sofrer punições, como exoneração e lotação em comarcas distantes, caso não decidissem segundo os interesses do Estado totalitário.

Também se editou o Decreto-Lei n.º 1.608/1939 (conhecido como Código de Processo Civil de 1939), que previu expressamente, em seu art. 121, a possibilidade de imputação de responsabilidade civil aos juízes negligentes em relação às providências processuais

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"No âmbito da magistratura federal, o ingresso mediante concurso foi retardado até a década de 1960, com a recriação da Justiça Federal sob a égide do Regime Militar. Institui-se tal modelo de seleção através da Lei 5.010 de 1966 completando o processo de profissionalização e burocratização da magistratura pela via autoritária do regime. Nesse período, já por volta da década de 1970, retomaram-se os discursos sobre a necessidade de avaliação da qualificação técnica dos magistrados, quando surgiram as primeiras escolas de magistratura para suprir as deficiências na formação dos juízes" (PASSOS; FEITOSA, 2017, p. 140).

23 Estado Novo foi o regime político brasileiro no período de 1937 a 1946, governado de forma autoritária por

Getúlio Vargas sob a justificativa de necessidade de se impedir o movimento comunista que se instalava no país e de promover um ajuste do arranjo político para atender às necessidades econômicas do país (SKIDMORE, 2007).

recomendadas legalmente, bem como nos casos de condutas comissivas de conluio, fraude ou dolo. Além de responderem pelos danos causados por suas decisões, penalizavam-se os juízes que contrariassem os interesses do Executivo, ínsito a um regime autoritário baseado em pensamento nacionalista.

Com a redemocratização, a Constituição de 1946 resgatou as garantias dos magistrados, de modo a assegurar o exercício das competências do Poder Judiciário de forma independente. Embora os Estados pudessem ainda criar cargos de juízes temporários, a Constituição conferiu-lhes vitaliciedade após dez anos de contínuo exercício do cargo. Havia, como assinala Victor Leal (2012, p. 194), margem para abusos, como a dispensa e perseguição das autoridades que tinham sua estabilidade garantida. Verifica-se, assim, que o período de 1946 a 1964 foi marcado pela atuação mais independente dos magistrados, restringindo a responsabilidade de juízes aos casos de danos causados a partir de condutas criminosas, especialmente decorrentes de corrupção.

Com o Golpe Civil/Militar de 1964, entretanto, essa realidade se alterou profundamente. Os militares passaram a utilizar o Judiciário como aparato para a manutenção do regime ditatorial e para convolar a hipertrofia do poder Executivo, bem como de suas decisões arbitrárias (BORGES; BARRETO, 2016, p. 119).

No início do regime, ainda se assegurava certo grau de independência, o que pode ser verificado na concessão de habeas corpus a presos políticos e aos denominados “inimigos internos” da segurança nacional. Destaque-se, ainda, o elevado percentual de sentenças absolutórias de primeira instância proferidas pela Justiça Militar, que chegou a 85% com confirmação em grau de recurso (KUBIK, 2009, p. 14). No entanto, essa postura acabou gerando tensão com o Poder Executivo que, em sequência, reduziu consideravelmente essa independência e passou a controlar mais estritamente a atividade judiciária.

Os militares converteram o aparato Judiciário a seu serviço. Nesse período, verificou- se intensa violação de direitos humanos, com violentas repressão a manifestações contrárias ao regime. O Ato Institucional conferiu ao Presidente da República enormes poderes, inclusive para emendar a Constituição e estabelecer a realidade política que lhe aprouvesse. O Ato Institucional n.º 2 assegurava ao Presidente da República o poder de suspender as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade dos juízes. Decisões jurídicas desafiadoras do regime militar poderiam ensejar o banimento do magistrado, considerado nocivo à segurança nacional (Ato Institucioal n.º 13).

Deve-se registrar que o Ato Institicional n.º 2 teve, como um de seus fundamentos, inibir a revogação pelos juízes das decisões dos inquéritos policiais, que era o instrumento institucional (Decreto-Lei n.º 53.897/64) utilizado pelos militares para promover a perseguição e eliminação dos “inimigos internos”(ALVES, 1984, p. 46). A interferência, por meio de responsabilidade dos magistrados, figurou com frequência no regime militar, penalizando-se os juízes, inclusive ministros do Supremo Tribunal Federal, por decisões contrárias aos seus anseios. Exemplo dessa sanção foi a aposentadoria compulsória dos ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Embora alguns magistrados corajosamente concederam habeas corpus, a Comissão Nacional da Verdade verificou que a grande maioria se declarava incompetente para discutir assuntos de segurança nacional e remetia os autos para a Justiça Militar (BRASIL/CNV, 2014, v. 1, p. 239; BORGES; BARRETO, 2016, p. 121).

Em 13/12/1968, o AI-5 enfeixou poderes discricionários nas mãos do Presidente da República. Houve o fechamento do Congresso Nacional por 10 meses; a suspensão das garantias de vitaliciedade e inamovibilidade dos juízes; a exclusão de qualquer apreciação judicial dos atos praticados conforme o AI e seus Atos Complementares; a cassação de Ministros do Supremo, a redução da composição da Corte, de 17 para 11 membros; a restrição do habeas corpus; a limitação do uso de recursos extraordinários aos Tribunais e a abolição do recurso ordinário nos casos de mandados de segurança denegados pelos Tribunais (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL, 2014).

O período do regime militar foi, portanto, de intensa sanção dos magistrados pelo Poder Executivo, mas não em razão de corrupção ou de prática de crimes, mas por decisões contrárias ao interesse desse governo autoritário. Juízes perderam seus cargos, sofreram afastamentos e banimentos na ausência das garantias constitucionais da vitaliciedade, estabilidade e inamovibilidade (BORGES; BARRETO, 2016, p. 121). Todas as restrições impostas pelo Ato Institucional n.º 2 aos magistrados foram incorporadas à Constituição de 1967, fortalecendo o controle e a subordinação do Poder Judiciário ao Poder Executivo.

Além das possibilidades de responsabilidade administrativa, com a demissão de magistrados ou a sua remoção para comarcas distantes e com menor prestígio, também havia a possibilidade de responsabilidade civil dos juízes. O Código de Processo Civil de 1973, em seu art. 133, repetia a redação do art. 121 do CPC/1939, prevendo a responsabilidade civil dos juízes pelas perdas e danos causados em razão de comportamento negligente, quando deixasse de dar ao processo o impulso necessário à sua movimentação, e também em casos de conluio com as partes, fraude ou dolo na condução do processo.