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1. LINGUÍSTICA QUEER – UMA LINGUÍSTICA APLICADA

3.2 Processos de referenciação e predicação e modos de inter-relação

3.3.1 A ressignificação e a republicação

Essa narrativa foi ressignificada por Leandro Gomes de Barros, um paraibano educado pela família do Padre Vicente Xavier, proprietário de

fazenda, e da qual era sobrinho por parte de mãe. Foi considerado o rei dos

poetas populares do seu tempo (Barros nasceu em 1865 e faleceu nos anos de

1918). O poeta viajava pelo Nordeste1, divulgando e vendendo seus versos,

de acordo com as informações da Casa Rui Barbosa. Esse poeta foi casado com Venustiniana Eulália e teve quatro filhos. Conforme Borges (1998), a

narrativa foi republicada de 1960 até os anos 1980. Nessa republicação o contexto sociocultural vigente é o do século XX, no qual, principalmente,

enfocando aqui o período de republicação do folheto em análise, década de

1970, em que o movimento feminista ganha força e provoca mais ainda o debate por condições de igualdade de gênero. Ressaltamos, no Capítulo 02, que o movimento feminista na sociedade ocidental evoluiu no século XX, impulsionado pela década de 1960, em que a industrialização permitiu inserir a mulher no mercado de trabalho. Mas, antes dos anos 1960, nos fins de 1950, a filósofa Simone de Beauvoir lançou o livro “O segundo sexo”, em que a filósofa trata que ser homem ou ser mulher não é algo natural, mas que foi se naturalizando, num processo de aprendizagem através da cultural, no sentido de reprodução na qual se ensina a criança, desde muito pequena, como agir e como se comportar de acordo com o que tem sido definido como “feminino” e “masculino”. A publicação de Beauvoir é o marco para o feminismo, pois trata da condição de opressão que a mulher vivência nos diferentes aspectos, como histórico, filosófico, econômico, político, social, principalmente, o biológico.

A primeira republicação da “História da Donzela Teodora” foi nos anos de 1960, contexto em que a mulher estava na esfera doméstica e o homem na esfera pública. Nesta época, a mulher era vista como se, biologicamente, fosse contemplada com habilidades para cozinhar, costurar,

bordar, cuidar das crianças, educar etc. Essa privação da mulher era visível em

muitos aspectos, inclusive no quesito educação, no qual existiam diferenças gritantes nos currículos das escolas para o feminino. Dentre as principais atividades, as meninas aprendiam corte e costura, podendo almejar no máximo a profissão de docente.

Relacionado a esse script cultural, Albuquerque Júnior (2013) discute que o homem nordestino é um tipo tradicional, voltado para a preservação de um passado regional que estaria em declínio. Assim, o nordestino é definido como

1 Nesse período, o Nordeste ainda não tinha sido inventado, pois, como postula

Albuquerque Júnior (2013), o recorte regional Nordeste surgiu em torno da segunda metade da década de 1910.

58 | P á g i n a um homem que se situa na contramão do mundo moderno, que recusa as superficialidades provocadas pelo novo/diferente, pois ele é conservador, masculino, rústico e áspero. De acordo com o pesquisador “o nordestino é definido como um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise, um ser viril (...)” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 150). Assim sendo, as relações de gênero eram aqueles em que o homem se contrapunha a qualquer tipo de mudança que pudesse ocorrer nas identidades, bem como nos papeis estabelecidos para os gêneros. No Nordeste, portanto, a figura da(s) mulher(es) também era (são?) masculinizadas e reproduzem em seus próprios discursos essa ideia. A partir dessa compreensão, podemos pensar sobre a performatização da mulher em “A História da Donzela Teodora”.

Sobre o cordel, devemos entender que a função social que esse gênero literário ocupava na sociedade nordestina era a de ser um dos principais veículos de informação, quando ainda não existia o rádio e o jornal era um veículo escasso. Estava presente nos mercados, nos serões familiares e nas feiras livres (LIMA, 2014). Leandro Gomes de Barros viajava pelo sertão, vendendo e divulgando seus folhetos, pois essa certamente era a única forma da população ter conhecimento dos fatos que ocorriam na sociedade. Barros provavelmente escreveu para os sertanejos, as sertanejas, os cangaceiros, as cangaceiras, os cantadores, os tocadores, os comboieiros, os feirantes, as feirantes e os vaqueiros.

Na ressignificação, o poeta construiu a narrativa com os elementos de origem europeia (como a referenciação de um reino distante) e os de cunho popular, como, por exemplo, as questões de adivinhação propostas pelos sábios:

- Diz-me donzela, o que Deus sob o céu primeiro fez? respondeu: o sol e a lua

e a lua por sua vez é por uma obrigação cheia e nova todo mês (BARROS, 1975, p. 9)

Nessa estrofe, a resposta da personagem faz parte do conhecimento religioso, e certamente integrava o contexto sócio-histórico do qual o poeta

estava inserido. Assim, o sol e a lua têm o valor simbólicos na cultura cristã,

pois quando são introduzidos pelo “eu” fazem referenciação ao princípio de gênesis. No livro Gênesis (Antigo Testamento) no capítulo 1, versículo 14, versículo 15 e versículo 16, temos:

14 Disse Deus: Haja luminares no firmamento do céu para

separar o dia da noite. Sirvam eles de sinais para marcar estações, dias e anos,

59 | P á g i n a 15 e sirvam de luminares no firmamento do céu para iluminar

a terra. E assim foi.

16 Deus fez os dois grandes luminares: o maior para governar

o dia e o menor para governar a noite; fez também as estrelas.

No folheto “O testamento da Cigana Esmeralda”, também podemos ver essa reiteração do discurso religioso cristão:

O menino sonhador José, filho de Jacó foi quem decifrou os sonhos

do grande rei Faraó nos sete anos de seca quem havia de queimar pó

(BARROS, 1974, p. 4).

No livro Gênesis, capítulo 41, versículo 14 e 15, diz-se:

14 Então, Faraó mandou chamar a José, e o fizeram sair à

pressa da masmorra; ele se barbeou, mudou de roupa e foi apresentar-se a Faraó.

15 Este lhe disse: Tive um sonho, e não há quem o interprete.

Ouvi dizer, porém, a teu respeito que, quando ouves um sonho, podes interpretá-lo.

De acordo com a leitura que realizamos, podemos afirmar que há um caráter religioso nesses cordéis, em que o discurso do “eu” é propagado através das “citações” que são reiteradas, como no caso da recorrência ao discurso bíblico. Nesse sentido, é forjado o modo de inter-relação desses discursos no qual há uma solidariedade total entre o discurso do “outro” e o discurso do “eu”, uma vez que o discurso do “outro” é dito pelo “eu”,

caracterizando o discurso indireto livre. Assim, questionamos: serão a(s)

mulher(es) discutidas considerando esse viés, ou seja, por esse discurso que se torna uma autoridade moral vinculante para autorizar sentidos?

Na perspectiva de uma leitura queer questionamos por que esses folhetos foram republicados na década de 1970? Assim, é preciso entender a língua(gem) e seus sentidos na temporalidade, ou seja, o que permitiu que tais folhetos fosse republicados Essas são algumas indagações que perpassam quando pensamos o perfil de mulher autorizado por ele e a luta dos movimentos sociais, sobretudo, a do feminismo na década de 1970. Carvalho (2011) fala que a partir de 1975 surge a “Década da Mulher” como consequência das lutas dos movimentos feministas que tiveram início em 1970. Para a estudiosa em política social, vários encontros foram organizados tendo como pauta a discriminação da mulher, enquadrando-a nos planos de desenvolvimento. Assim, tiveram encontros como “Conferências Mundiais das Nações Unidas” em Copenhague (1980), Nairobi (1985), e Beijing (1995). Carvalho (2011) cita que, com base na Declaração Universal dos Direitos

60 | P á g i n a Humanos, foi confirmada a convenção internacional sobre a abolição de todas as formas de discriminação contra as mulheres (CARVALHO 2011). Essas conferências e debates passaram a ser um espaço para o fortalecimento das questões de gênero, pois buscavam estratégias coletivas para a implementação de políticas públicas que visassem combater qualquer tipo de discriminação. Além de pensar o feminismo no Brasil de modo mais amplo, pensamos como o feminismo no Nordeste, pois foi nessa região que os folhetos circularam.

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